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Bem pelo contrário!…

"As escolas carecem de românticos resilientes, conspiradores". Leia aqui o quinto texto inédito do educador José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



Todo o avô que se preze “estraga” os netos quanto pode. E eu devo reconhecer que não escapo à regra. Os “estragos” que opero no Marcos são inerentes ao vício da aventura que busco incutir-lhe. Desafio-o para riscos e sortes maiores que os possíveis nos estreitos limites de uma casa, ou os consentidos pelos limites simbólicos de uma vida de conveniência. Incito-o a adultar-se sem adulterar-se.

Acaso o Marcos venha a optar pela nobre missão de ensinar e educar, incitá-lo-ei a retomar os passos dos seus pais, que, discretamente, contrariam o pré-determinado devir das escolas que ainda temos. Hoje, como no futuro que será o do Marcos, as escolas carecem de românticos resilientes, conspiradores. Porém, a reinvenção dos caminhos não é mero capricho, nem poderá converter-se numa via-sacra. Por mais pontiagudas que sejam as pedras que roçarem os seus passos por inexplorados caminhos, convidá-lo-ei a empreender a demanda de um novo Graal. Mas também porque o amo, não lhe pedirei que beba o cálix do sacrifício. Bem pelo contrário!…

A geração do Marcos deverá romper com o fatalismo que sacrificou Giordano nas fogueiras da Inquisição e condenou Sócrates à fatal ingestão da cicuta. Ajudá-lo-ei a fintar o fado funesto que imolou Ghandi num punhal traiçoeiro e Luther King numa bala assassina. Um século após a execução de Ferrer, setenta anos decorridos sobre o assassínio de Janusz Korcsak nas câmaras de gás nazis, é tempo de contrariar o fatalismo que confirma as tentativas de mudança da Escola como sublimes imolações. Não quero cultivar memórias habitadas por histórias de mártires. Bem pelo contrário!…

É conhecida a anedota que refere a possibilidade de fazer viajar no tempo (ou de ressuscitar) um médico cirurgião e um professor que tenham vivido nos primórdios do século XIX. Diz-nos a anedota que, recolocados o médico e o professor nos seus locais de trabalho, o primeiro morreria de susto perante a sofisticação dos recursos disponíveis no bloco operatório onde aportasse. Por seu turno, o professor retomaria a aula interrompida há duzentos anos, mandando abrir a cartilha na página oitenta e três…

Trata-se de uma anedota, bem sabemos. Porém, é incontestável que os avanços da Medicina, enquanto ciência, introduziram na prática médica profundas transformações, tornando obsoletos conhecimentos e práticas de há dois séculos. E o que distinguirá as escolas do século XIX das escolas que hoje temos?

Mudaram-se os tempos, as matérias e materiais, enquanto o modelo se manteve inalterado: classes, turmas, aulas, lições, tempos de padrão uniforme, currículos segmentados, estanques, inadequados. Mais computador, menos sebenta, mais “data show” menos pau de giz, em pleno século XXI, a Escola mantém-se tributária de necessidades sociais do século XIX.

É por isso que falo ao Marcos de professores que, outrora, ousaram contrariar velhos desígnios, ou não reconheceram desígnio algum no seu vagabundear acidental pelas escolas. Também lhe falo da perplexidade dos que tentaram reinventar a escola que foi sua. Como aquele professor que me descrevia a sua passagem pelos calabouços da polícia política, uma polícia que lhe vigiava a correspondência e os passos. Contava-me que, ao longo de todo o tempo que dedicou à nobre missão de educar as novas gerações, assistiu à deserção de muitos professores, à desistência dos mais sonhadores, perante deslealdades e perfídias. E exclamava amiúde:

– Amigo Zé, tu és um crédulo, mas hás-de arrepender-te! O maior dos erros é dar a outra face. Se até mesmo o Cristo perdeu a paciência, até o divino ser se exaltou e desatou aos pontapés nas bancas montadas pelos vendilhões do templo!

Para esse velho professor, muitas tinham sido as noites passadas nos calabouços da polícia política, imenso o tempo de pensar um qualquer sentido para o anónimo sacrifício, enorme a tentação da desistência e da acomodação. E eu cimentei na sua amargura a minha irreversível decisão de recusar martírios.

Bem pelo contrário!… As crianças das escolas em que se desenha um devir luminoso não carecem de registos de actos sacrificiais ou da leitura de hagiografias pontuadas de renúncias. As novas gerações hão-de colher lições de vida em adultos seres não adulterados animados pelo dom da esperança. O Marcos há-de dispensar os exemplos plasmados em biografias de professores mártires.

Manda a verdade que acrescente um sinal de esperança ao aparente pessimismo. Porque importa conhecer o que de belo e inovador se fez pela Educação deste país, revelo ao meu neto a vida maravilhosa da Irene Lisboa, companheira de sonho do meu amigo de fala magoada e de outros professores condenados a degredos. Ainda hoje, os professores não-acomodados da geração dos pais do Marcos se defrontam com alguns teóricos, políticos e opinion makers nossos contemporâneos que, boçalmente, afirmam nos jornais que a degradação do sistema se fica a dever a “novas pedagogias”. “Novas pedagogias” que ninguém praticou, que nenhuma escola adoptou, que nem eles sabem dizer quais são…



Leia também os outros textos publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit





A caixinha dos segredos

Autor

Redação revista Educação


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