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In illo tempore

"Porquenãos e bonifácios faziam a apologia dos exames, talvez porque não soubessem distinguir um professor de um polícia." José Pacheco

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



Não há nada melhor que ficar atento ao olhar do Marcos, para confirmar que o não-verbal fala mais alto que o verbal. O meu neto fala com o olhar, adivinha intenções. Ou, então, serei eu quem lhe põe intenções no olhar. Não sei…O que sei é que conto ao meu neto histórias que muitos olhos recusam ler. Olhos viciados perderam dons, mas os seus olhos de criança ficam suspensos das reticências que, propositadamente, semeio no meu discurso. Ele observa-me, enquanto eu deito um olho às suas deambulações pelo meu escritório e outro ao jornal (vantagens de um avô estrábico). E foi um artigo de jornal que despertou um recanto da memória e me alertou para mais uma perversidade, entre as muitas que o modelo tradicional de escola engendra.



Os disparates que porquenãos e bonifácios debitam nos jornais são tantos, que, por norma, resisto à tentação de reagir, de comentar. Mas, desta vez, não resisti a partilhar com o meu neto e confidente uma reflexão. E logo deparei com uma dificuldade: os seres humanos de tenra idade não possuem a capacidade de digerir absurdos.



Outra solução não me restou, senão a de transformar a reflexão em história. Contei ao Marcos que,
in illo tempore

, era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tive de explicar ao meu neto o que era uma “turma”. Tarefa difícil! A cada olhar de estupefacção do Marcos, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de o Marcos perder o fio à meada.



Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o semblante incrédulo do meu neto derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão
in illo tempore

, para o tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam nos dias de hoje.



Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como é possível explicar-lhe que professores (
in illo tempore

, claro!) dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam?
 




De surpresa em surpresa, o Marcos foi-se apercebendo de outros absurdos. Associada à aplicação simultânea de testes, ocorria a probabilidade da utilização de cábulas e “copianços”.



In illo tempore

, porquenãos e bonifácios faziam a apologia dos exames, talvez porque não soubessem distinguir um professor de um polícia. Ou porque, ingenuamente, admitissem que educadores convertidos em “vigilantes” pudessem dar garantias de que nenhum dos alunos sujeitos à “roleta russa” de um exame ousasse “copiar”.





Fiz uma pausa na minha narrativa, para dar tempo ao meu neto de respirar fundo e recuperar da perplexidade. Li-lhe uma frase extraída do “Emílio” (de Rosseau):
“Tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”

. Depois, para o sossegar, disse-lhe que o Rosseau não tinha toda a razão. Que é possível reinventar a Escola, porque nem é obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Ferrière.







Eu sublinhava insistente a ancestralidade dos factos que ia narrando ao meu neto, sempre que pressentia a sua virginal perturbação.
In illo tempore

,

para sublimar a impaciência que conduz ao desespero, o avô brincava com os absurdos. Ilustrei essa possibilidade, evocando um episódio. Alguém me pediu opinião sobre a praga do “copianço” nos exames. Eu respondi que, sendo esse um fenómeno tão corrente, numa perspectiva de equidade e de democratização do ensino, se deveria dar a todos os alunos as mesmas oportunidades de “copiar”. Recomendei, pois, que se acrescentasse ao currículo oficial uma nova disciplina, que poderia ser designada por “métodos, técnicas e instrumentos de copianço”.





Retomei a seriedade da narrativa, que o meu neto merecia, para lhe apontar uma evidente perversão engendrada pelos exames. As provas eram distribuídas, de escola em escola, por técnicos de segurança e por policiais. E a permanência de professores nas salas de exame decorria do mesmo pressuposto que justificava o ridículo aparato policial do transporte e distribuição dos testes. Isto é, a atitude dos educadores investidos em funções de polícias assentava no pressuposto de que, até prova em contrário, todos os alunos submetidos a exame eram. seres potencialmente desonestos.



O que haveria de educativo nesta atitude?



A resposta foi um espanto de olhos esbugalhados. E eu insisti: consegues imaginar, querido Marcos, escolas onde nada se criava e tudo se copiava?






Nem eu! É coisa de antigamente. Só poderia ter acontecido
in illo tempore

, no reino dos porquenãos e dos bonifácios.




Leia aqui os outros textos já publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:




Gracias a la vida





Perfilados de medo





Entre dois fogos





Mais uma história da Ana





La porte-plume redevient oiseau





Redundâncias





Educar da cidadania





O pai do Watson





O Senhor Carlos





A divisão das orações





Bem pelo contrário!…





A caixinha dos segredos





O padre, o poeta e a professora de francês





Para os filhos dos filhos dos nossos filhos





Tempus fugit





Autor

Redação revista Educação


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