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Entrevistas

O conflito essencial

Para pesquisadora da Unicamp, escolas erram ao simplesmente conter ou punir as desavenças: é preciso fazer com que os alunos entendam a extensão dos danos que causam com atitudes que não levam o outro em consideração

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação


Telma Vinha

Os professores vêm tendo dificuldade com o que identificam como indisciplina. Sentem-se desrespeitados. Acreditam que regras mais duras são necessárias. Todas essas afirmações são verdadeiras e constituem um discurso batido no desolador cenário da educação brasileira. Mas, e se pensássemos que o problema não está no aluno, mas em uma escola intrinsecamente opressiva? Que os conflitos não são problemas externos que invadem a paz da escola, mas um dado da realidade social que deve servir como gancho para a formação de seres humanos mais bem preparados para a vida?


É assim, invertendo a lógica do discurso autovitimado do professor, que a pesquisadora Telma Vinha tem trazido a educadores de várias regiões do país uma perspectiva diferente para a gestão do conflito na escola – que emerge não apenas de seus estudos, mas de seu trabalho de campo, dentro de escolas públicas e particulares.


Pesquisadora da Universidade Estadual de  Campinas (Unicamp), onde também se doutorou, Telma é uma voz influente, com uma fala propositiva. Entre outras coisas, ela sugere que os adultos deixem de inventar tantas regras apenas para conter problemas e ajudem as crianças e adolescentes a ver a extensão do dano que são capazes de causar, colocando frente a frente agressor e agredido. Leia, a seguir, a entrevista concedida a
Paulo de Camargo

.


Muitas vezes, quando lemos sobre violência nas escolas, parece que o conflito é algo externo que invade, repentinamente, a celestial paz escolar. É assim mesmo?

A escola vê o conflito como algo atípico e antinatural. Os projetos voltados para essa área tratam a paz como a ausência de conflito, e esse é o primeiro engano. A discordância é necessária. É o que nos move. Hoje, muitas pesquisas mostram como o professor se sente afetado. Uma delas mostra que 47% dos professores dedicam entre 21% e 40% do seu dia a problemas de disciplina. Ou seja, para o professor, o conflito é um fenômeno danoso, quando poderia ser uma oportunidade de aprender.


Como a escola lida com esses problemas? Como eles poderiam se tornar uma forma de aprendizado?


É preciso dizer que o professor realmente sofre com a sensação de estar sendo desrespeitado, acha que já fez de tudo e está certo. Realmente, fez tudo o que sabia. É um quadro complexo, que gera mal-estar e insegurança e leva a escola a tomar sempre duas direções: ou tenta conter o problema, ou tenta punir. Entre as estratégias de contenção, estão iniciativas que levam a filmadoras e grades. Isso só vai gerar novos conflitos. Afinal, são jovens que não estão sendo educados, mas contidos. Por quanto tempo? A outra estratégia é a resolução rápida: existe um problema, e para resolvê-lo aplico uma punição ou crio uma nova regra. Estão usando boné para carregar drogas? Proíbe-se o boné. As crianças estão apostando cards? Proíbem-se os cards.


E o que deveriam fazer?


O que não se percebe é que quando se cria uma regra apenas para impedir que o problema ocorra, impede-se a aprendizagem. É pelo conflito, e não pela doutrinação do que é certo ou errado, que se aprende. No caso dos cards, perde-se uma oportunidade preciosa de trabalhar com alunos de 9, 10 anos sobre os valores e perdas envolvidos naquela brincadeira. Por que não sentar ao lado do aluno e, em vez de tirá-lo do conflito, mostrar o alcance das conseqüências dos seus atos? De situação em situação, a escola cria uma soma de regras para evitar conflitos, e os alunos crescem despreparados para as relações interpessoais. A educação de hoje tem um efeito nocivo para a sociedade não pela indisciplina, mas por preparar pessoas que não conseguem perceber perspectivas diferentes sem se sentir ameaçadas, pessoas que não sabem debater, argumentar.


Ou seja, além de não educar, as alternativas são deseducadoras?


Os mecanismos punitivos geram a lição de que se pode simplesmente quitar os débitos. A escola ensina os alunos a analisar tudo sob o ponto de vista do custo-benefício. Alguém rasgou um cartaz produzido por outro aluno? Paga-se com a suspensão e pronto. A vida não é assim: as pessoas ficam magoadas… Alguém investiu tempo para fazer aquele cartaz, terá perdas que não serão compensadas. Se a escola não coloca frente a frente esses alunos, jamais vão conhecer a extensão dos erros para as relações humanas.


Nesse exemplo simples do cartaz, o que poderia ser aprendido?


Vamos pelo princípio: a pessoa efetivamente autônoma que a escola quer formar é aquela regida por mecanismos de auto-regulamentação internos. A pessoa autônoma faz escolhas justas mesmo quando sabe que vai perder; pensa em quanto vai se sentir bem seguindo princípios nos quais acredita. Se quem rasgou o cartaz confessou e foi suspenso, sentirá apenas que foi um trouxa. Quem não contou, se safou. Os jovens precisam se sentir bem quando não agridem. Isso só se consegue quando colocamos as pessoas frente a frente. Desse ponto de vista, na resolução de conflitos os valores são transmitidos nos procedimentos, não nos resultados. Mas freqüentemente a escola abre mão dos princípios de justiça, de diálogo, de respeito em nome da resolução. Furtaram o dinheiro da professora? Humilha-se, pede-se a delação anônima… Ética não é remédio; é vacina!


A escola não espelha a sociedade em que está inserida? Ou seja, não é assim também no mundo adulto?

Os valores de uma sociedade estarão também dentro da escola; seus conflitos, idem. Isso é assim porque vivemos em uma sociedade heterônoma.
Temos inúmeros dados que mostram que os brasileiros pensam em termos de retorno concreto. Mas isso não quer dizer que todas as influências, incluindo as que vêm pela mídia, são deterministas. Há muito que fazer. Mas a escola não abre espaço para o tema e os professores também nunca foram preparados para lidar com o conflito. Na formação dos docentes, não existem estudos sobre conflitos, regras, disciplina, sendo que o educador vai dedicar grande parte do seu tempo a lidar com isso. Além disso, a escola inteira deve estar envolvida. Se a escola não for cooperativa, se o diretor não sentar junto e vir o problema de convivência como algo que deva ser investigado, há pouco o que fazer. Precisamos de uma gestão mais democrática, se pretendemos que o professor faça uma gestão de conflitos mais democrática. Senão, tudo o que se fará é lamentar, vitimizar ou doutrinar.


Quando escolhe o caminho da punição e das regras, a escola não é também opressora?


Estou cansada de conversar com alunos e ouvir que eles se sentem injustiçados, desrespeitados por professores que não sabem o nome do aluno, que dão cópia na lousa para mantê-los ocupados, fazem gozações, usam a avaliação como uma forma de ameaça… Tem lugar em que o banheiro é fechado à chave. Isso é humilhante. A escola passa a mensagem de que pensar e obedecer são coisas distintas. Colocam-se regras e cobrança sem que se proporcione a compreensão da sua necessidade. Quem é punido aprende apenas uma coisa: a não ser flagrado. Muito sintomática é a expressão: te pego lá fora. Esses alunos não aprenderam a dialogar, apenas foram contidos.


Onde entra a questão da autoridade, nesse contexto?


A autoridade é mais do que necessária, é vital no processo educativo. A criança entra no mundo da moral pela via da autoridade: a criança que segue uma regra não pensa se é justa ou necessária, mas quem mandou. Isso é uma etapa da vida. Com o tempo, por volta dos 8 anos, ela começa a questionar. A partir daí, só sou autoridade quando o outro me vê como autoridade. Em sala de aula, é preciso que o aluno reconheça a autoridade em mim, seja pelo meu conhecimento ou pelo meu comportamento ético. O professor que grita, que ameaça, que utiliza mecanismos de humilhação, de ironia, não precisaria fazer isso se tivesse autoridade.


Por que as regras são tão pouco obedecidas na escola?


A escola coloca no mesmo balaio regras boas e regras ruins, que vão confundir sobre o que vale a pena seguir ou não. É muito comum em palestras alguém perguntar sobre o que fazer com os alunos se eles vêm de meia branca e não com a preta. Briga-se pela cor da meia do mesmo modo que pela ofensa pessoal. Certo dia, em uma escola, uma professora mandou um aluno para fora porque estava de boné, mas contemporizou quando chamaram a aluna de piranha. Regras que são convencionais podem ser mudadas; princípios não podem ser contemporizados.


E qual critério as escolas deveriam adotar ao estabelecer regras?


As pesquisas mostram que são tantas proibições tolas, que os jovens passam a ver tudo como implicância dos adultos. O problema não é a falta de limites, mas o excesso de limites que confundem e são desnecessários. A pais e professores, sempre pergunto o seguinte: regras inevitavelmente levam a conflitos, mas pelo que vale efetivamente a pena brigar? As relações são muito mais importantes. Já viram professores em sala de aula, em programas de formação continuada? Fazem exatamente como os alunos dos quais reclamam: saem correndo, não voltam no horário, entram com a coca-cola na sala, pedem para ir ao banheiro assim que acaba o intervalo… será que essa atitude está questionando algum princípio vital para a autoridade? Eles estão sendo injustos ou desrespeitosos? Acho que não. Precisamos ir às causas dos conflitos, e a solução tem de representar princípios de justiça. Às vezes, o problema está mesmo em uma aula que ninguém agüenta. A escola tem de ser um lugar bom para se ir.


Em que etapa é mais efetivo o início do trabalho sobre resolução de conflitos?


Os estudos mostram que quanto mais cedo melhor. São, de fato, mais difíceis – mas não impossíveis – os programas de intervenção com adolescentes.  Devemos pensar que os problemas chamados de ‘indisciplina’ não são generalizados. Os estudos mostram que o perfil do brasileiro é muito mais de submissão do que de agressão, mas para isso a escola não liga. Os adultos dizem: esse é da paz, é gente boa. Contudo, os alunos submissos precisam também de ajuda. Alguém que diga: como você permitiu isso? Os professores querem bom comportamento, mas por sujeição. Em nossa proposta, a questão não está em trabalhar para resolver o conflito, mas muito mais: queremos fazer com que o conflito seja assertivo para o aluno, para o professor e para a sociedade. Ter uma escola preocupada em ensinar a lidar com o conflito, com o público e o privado, com as relações humanas, é um direito dos alunos, não importa se têm 7 ou 15 anos.


O que o professor pode fazer, na prática, diante de um conflito?


Há algumas orientações básicas. A primeira é ver os conflitos como naturais na relação educativa. O educador deve manter-se calmo e procurar sempre controlar suas reações, evitando a impulsividade. Outro passo importante é reconhecer que os conflitos pertencem aos envolvidos, o que não significa deixá-los à própria sorte. O professor deve agir sem tomar partido e sabendo que não é necessária uma resolução imediata. Como um mediador, não um negociador, o educador interfere descrevendo o problema, incentivando os alunos a falar sobre seus sentimentos e atos. É fundamental acreditar na capacidade dos alunos de solucioná-lo – o que não significa aceitar qualquer alternativa de resolução. Uma boa solução deve incidir sobre as causas e respeitar os princípios.

Autor

Redação revista Educação


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