NOTÍCIA

Ensino Fundamental

Autor

Laura Aguiar

Publicado em 10/09/2011

O poder das imagens

Ilustrações ganham cada vez mais importância nos livros infantojuvenis e apontam para uma renovação na literatura

A JANELA DE ESQUINA DO MEU PRIMO de Ernst T. Hoffmann: a partir do diálogo entre dois meninos sobre uma praça, o leitor acompanha o vaivém de pessoas ora a partir de aspectos particulares, ora em sua totalidade (caso da imagem acima, uma a visão panorâmica do local)

“Para que serve um livro sem figuras nem diálogos?”, perguntou-se Alice, entediada, pouco antes de decidir seguir o Coelho Branco até o País das Maravilhas. Quase cento e cinquenta anos depois (o livro de Lewis Carroll foi publicado pela primeira vez em 1865), as imagens continuam centrais para a conquista de jovens leitores – tanto que, ao longo dos últimos anos, elas vêm desempenhando papel cada vez mais relevante nas narrativas infantojuvenis.

A importância da ilustração e do projeto gráfico, constatável empiricamente em qualquer visita às livrarias, é confirmada por editores e pesquisadores, que apontam a diferença entre o livro com ilustração (aquele em que a imagem é apoio, apenas reforçando o que diz o texto) e o livro ilustrado, no qual ou se prescinde da palavra escrita ou ela atua juntamente com a ilustração.

O livro ilustrado – também chamado de livro-ilustrado, livro de imagem ou, em Portugal, álbum – não é, em si, uma novidade. Encontram-se antepassados seus nos séculos 18 e 19. O livro inclinado e O livro do foguete , de Peter Newell, exemplos de interação entre conteúdo e suporte, foram publicados pela primeira vez em 1910 e 1912, respectivamente; Maurice Sendak lançou Onde vivem os monstros , um dos clássicos do gênero, em 1963. No Brasil, Ziraldo publicou o famoso Flicts em 1969; em 1976, foi a vez de Juarez Machado apresentar o seu Ida e volta , e desde a década de 1980 Eva Furnari e Ângela-Lago vêm produzindo  livros com pouco ou
nenhum texto.

O que há de novo, hoje, é a quantidade de livros de imagem disponíveis (um fenômeno que se insere, e é importante destacar, em um crescimento geral da indústria do livro infantojuvenil) e o status que eles vêm conquistando. Recentemente, esses deixaram de ser apenas porta de entrada para o universo das letras e tornaram-se reconhecidos como literatura. O ilustrador, agora, não é apenas um profissional contratado para prover as “figuras” de uma história alheia: ele tem o mesmo peso do escritor, cria com ele ou é o único autor do livro. Na esteira desse movimento, o livro de imagem vem se consolidando também como campo de estudo nas universidades.

Que livro é esse?
O crítico e ensaísta inglês Peter Hunt afirma, em Crítica, teoria e literatura infantil (Cosac Naify, 2011), que o livro ilustrado é a única área da literatura infantil que evoluiu do “texto realista clássico para o genuinamente descontínuo e interativo”. O fato é que, por sua própria essência, o gênero se presta à experimentação e à inovação, tanto em termos de conteúdo como de suporte: de um lado, ele propicia projetos inovadores como formatos inusitados, diferentes técnicas de desenho e uso criativo de tipologias; por outro, os recursos visuais permitem a criação de narrativas não lineares, abertas a várias interpretações.

Por essa riqueza de possibilidades, vem se diluindo a ideia de que o livro de imagens se dirige apenas às crianças menores, não alfabetizadas, pois ele pode permitir diferentes níveis de compreensão e de fruição, conforme a maturidade do leitor. Outro elemento contribui para isso: os livros muitas vezes se dirigem também ao adulto que os apresenta à criança. Em um artigo publicado em 1996 na revista espanhola Peonza , Teresa Colomer, da Universidade de Barcelona, lembra que muitos dos livros de imagem infantis trazem referências implícitas a dados culturais do mundo adulto, levando em consideração o mediador da leitura. Dessa forma, “o gênero que parecia destinado a ser o mais simples da literatura infantil é o que produziu as maiores tensões sociais e estéticas, porque aproveitou os recursos de dois códigos simultâneos e implicou duas audiências distintas”.

Os exemplos de livros que transitam pelas fronteiras de idade se multiplicam. Um deles é a premiada trilogia composta pelos livros Onda, Espelho e Sombra (Cosac Naify), da sul-coreana Suzy Lee, narrativas que se desenvolvem sem palavras, baseadas apenas no traço a carvão, com economia de cores. A vida secreta das árvores , da WMF Martins Fontes, apresenta ilustrações e projeto gráfico requintados – com elaboradas gravuras de artistas indianos impressas em silk screen sobre papel artesanal – possíveis de serem fruídos como livro de arte, ao alcance de leitores de idades variadas.

Quando o livro ilustrado não apresenta uma narrativa, uma história, a determinação da idade do leitor torna-se ainda mais imprecisa. Não é difícil admitir que Zoom , do húngaro Itsvan Banyai, lançado no Brasil pela Brinque Books em 1995, seja tão atraente para uma criança quanto para um adulto: à medida que se viram as páginas, percebe-se que cada imagem apresentada é parte de um todo maior, como se o leitor estivesse reduzindo o zoom em uma fotografia.

A mesma lógica segue A janela de esquina do meu primo (Cosac Naify, 2010), do alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann. Na obra, de forte diálogo com as primeiras experiências cinematográficas, o leitor tem contato, por meio da observação de uma praça, ora em sua totalidade, ora a partir de alguns de seus aspectos particulares, com os grandes temas da urbanização nas emergentes metrópoles da virada do século 19 para o 20. Nesses exemplos, a multiplicidade de possibilidades de leitura torna desimportante a determinação da faixa etária para o leitor. Algumas editoras resistem a indicar a idade ou a série ideal para os livros de seu catálogo infanto juvenil; outras consideram que as indicações são referências úteis ao professor e devem ser tomadas como sugestões.  

AGORA NÃO, BERNARDO de David McKee: a indiferença do mundo adulto em uma história de múltiplas interpretações

Um aprendizado do olhar
Engana-se quem acredita que a leitura de imagens seja puramente instintiva ou fácil; compreender uma narrativa visual pressupõe uma alfabetização do olhar. Aprende-se a ler, mas também a ver – e o papel do educador é, também, mostrar como decifrar os códigos visuais, muitas vezes extremamente sofisticados. Infelizmente, nem sempre a escola sabe trabalhar com os livros de imagem. “Falta quem faça a tradução daquilo que diz a academia para a prática do professor, do bibliotecário, mesmo dos pais”, diz João Luís Ceccantini, professor da Faculdade de Letras da Unesp de Assis. Os educadores subaproveitam as possibilidades de leitura, as narrativas paralelas que podem se desenrolar a partir das tensões e diálogos entre o texto e a imagem. Vanessa Gonçalves, da Cosac Naify, conta que a ansiedade dos educadores por uma bibliografia específica resultou na criação de uma linha dedicada ao tema.

Talvez não seja exagero dizer que tanto o olhar da criança quanto o do professor precisam ser educados ou despertados.  Trabalhar a imagem é, em um primeiro momento, compreender o que diz o projeto gráfico, as cores, as técnicas e o estilo das ilustrações. O já citado Onde vivem os monstros traz uma longa série de “recados visuais” que, ao serem explorados, permitem um aprofundamento na compreensão do livro: as ilustrações se inserem em quadros que aumentam de tamanho à medida que a imaginação toma conta da personagem, até que rompem os limites e tomam conta de toda a página; o papel de parede do quarto se dilui, transformando-se no mundo “selvagem” em que a aventura se desenrolará (um exemplo clássico de imagem que oferece uma informação que em nenhum momento é dada pela palavra).

Ao mesmo tempo que pressupõe um aprendizado de leitura, o livro ilustrado traz também uma possibilidade de refinamento da percepção artística. O desenvolvimento técnico que resultou no grande aumento da oferta pode ter a contrapartida de trazer ao mercado livros calcados em estereótipos visuais e verbais. Em boletim da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Teresa Colomer aponta para a existência de obras “desequilibradas”, com “um texto banal devorado pela imagem e outros tantos que escondem sua falta de elaboração, transferindo para o leitor a responsabilidade de dar-lhe sentido”. Ceccantini concorda que entre os livros colocados nas estantes encontram-se obras banais, descartáveis, de intenção meramente didática. O risco, claro, é entrar no terreno pantanoso do gosto, ao definir o que é um “bom” ou um “mau” livro de imagem – de resto, uma tarefa tão delicada quanto a de definir o que é um bom livro infantil ou, simplesmente, um bom livro. O suporte teórico e uma familiaridade com os livros, seus códigos e objetivos, é o que dará ao educador os parâmetros para essa avaliação.

Leitor, espectador, jogador
Em 2005, o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), instituído em 1997 pelo Ministério da Educação, passou a incluir a categoria “livros de imagem” entre as obras que seleciona para distribuição nas escolas da rede pública do país. O fato, para Júlia Moritz Schwarcz, da Companhia das Letrinhas, contribuiu significativamente para o incremento da edição de livros ilustrados de alta qualidade no Brasil. Certamente, a inclusão da categoria foi também um reflexo de um movimento editorial que já vinha acontecendo, numa via de mão dupla. Pode-se relacionar o crescimento desse segmento à emersão de novas gerações nascidas e formadas sob o império da imagem?

É fácil argumentar que o interesse das crianças pela ilustração é atemporal, como atesta a própria fala da Alice de Lewis Carroll. Houve, porém, um longo caminho até que a ilustração pudesse ganhar prestígio equivalente ao do texto. Até pelo menos a metade do século 20, as ilustrações das obras literárias infantis foram secundárias, quase desprezíveis – algo como um bônus cuja ausência, se empobrecia esteticamente o livro, não comprometia seu entendimento nem seu interesse. O livro-ilustrado, caracterizado pela concisão ou pela ausência de texto, não podia ser visto com seriedade em uma cultura que sobrevalorizava a palavra. Não é mais esse horizonte que se abre aos leitores de hoje, de qualquer idade. Não apenas o uso de códigos visuais, mas a rapidez e a fragmentação das narrativas, a simultaneidade de ações, a metalinguagem – recursos típicos de grande parte dos atuais livros de imagem – parecem vir ao encontro dos interesses de crianças acostumadas ao universo visual e interativo das animações, da internet e dos games . O mercado editorial, assim, a um só tempo responde à demanda dessa “nova criança” e ajuda a forjá-la.

A intimidade da criança de hoje com a imagem pode resultar em algum conforto no manuseio do livro-ilustrado, mas não a dispensa daquele processo de educação do olhar. Ao adulto cabe ajudá-la na decifração dos códigos visuais, evitando  seu consumo rápido; em outros termos, é preciso propor atenção aos detalhes, contemplação – tempo e reflexão, enfim, o que vem na contramão dos estímulos atualmente oferecidos à infância.

Apesar da imensa quantidade de recursos gráficos disponíveis, o livro de imagem é um exercício literário. Não deve ser confundido com os livros-brinquedo, aqueles que, concebidos para aproximar a criança do objeto “livro”, podem acabar por distanciá-la, porque não entregam o que ele tem de essencial – o seu conteúdo. “É algo como colocar a verdura escondida no feijão”, compara Júlia Schwarcz. “Escondido” sob a forma de brinquedo, aquilo que faz a essência de um livro infantil – uma narrativa contada por palavras, imagens ou pelo entrelaçamento de ambos – nunca chega ao potencial leitor.

EM ZOOM de Itsvan Banyai, cada imagem apresentada é parte de um todo maior, o que faz com que o leitor tenha a sensação de estar reduzindo o zoom em uma fotografia

Interferências tecnológicas  
A exploração dos recursos visuais na literatura infantil conduz ainda a uma nova fronteira: a dos livros eletrônicos, ou e-books , território em que as editoras do Brasil e do mundo parecem ainda tatear timidamente. O desafio que se coloca a editores, escritores e ilustradores neste momento é o de usar as possibilidades da tecnologia sem transformar o livro em um longo game , num livro-brinquedo sofisticado. A Companhia das Letrinhas publicou um livro-ilustrado que aborda, com ironia, essa questão: É um livro , de Lane Smith, mostra ao leitor os encantos do objeto que não rola, não tuíta, não desconecta.

Curiosamente, um dos primeiros livros eletrônicos infantis a alcançar sucesso mundial é a versão para iPad de Alice no País das Maravilhas , vendida pela iTunes Store, que coloca movimento e cor nas ilustrações feitas por John Tenniel para a primeira edição. Alice cresce, encolhe, faz barulho, cai, derruba coisas. O “livro” pode ser chacoalhado, virado de ponta-cabeça, lido de trás para a frente. É um livro? É um jogo? É um estímulo ou um desserviço à leitura? As opiniões se dividem; o debate ainda está começando.
A menina que se aborrecia com histórias sem figuras está mais contemporânea que nunca.

Para saber mais

Livros
O amor e o diabo em Ângela-Lago, de André Mendes (Editora UFMG, 2007)

Como usar a literatura infantil na sala de aula, de Maria Alice Faria (Editora Contexto, 2004)

Crítica, teoria e literatura infantil, de Peter Hunt (Cosac Naify, 2010)

Era uma vez uma capa, de Alan Powers (Cosac Naify, 2008)

Ilustração do livro infantil, de Luís Camargo (Editora Lê, 1995)

Literatura infantil na escola: leituras do texto e da imagem, de Regina Yolanda (Instituto Teotônio Vilela, 2001)

Para ler o livro ilustrado, de Sophie Van der Linden (Cosac Naify, 2011)

Na internet (blogs e sites sobre literatura infantil ou de ilustradores, com reflexões sobre o ofício)

www.angela-lago.com.br
www.dobrasdaleitura.com
www.nelsoncruzilustrador.blogspot.com
www.ricardoazevedo.com.br


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