NOTÍCIA
"E se ouvíssemos professores contando memórias de quando ainda não eram professores?" Leia aqui mais um texto do educador português José Pacheco
Publicado em 10/09/2011
Não sendo por acasos que há acasos, o primeiro ano da vida do Marcos Rafael coincide com o último dos anos em que o seu avô será professor de crianças, pelo que somos da mesma idade e partilhamos experiências e memórias.
O Marcos tem uma memória prodigiosa, uma memória de tempos umbilicais e outras, que guarda só para si. Quando aceder à fala e souber comunicar na linguagem dos homens, será demasiado tarde para reaver uterinas memórias e muito cedo para verbalizar as outras. Elas serão guardadas, no seu mais secreto recanto, até que, passada a idade de ser velho, o Marcos regresse ao lugar da memória de todos.
É bem verdade que é uma só a memória dos homens. E memória é coisa que não falta aos professores. Os professores só pecam por três defeitos: o de nada escreverem do muito que sabem, o de não divulgarem as maravilhas que operam no segredo da sua sala, o de não denunciarem situações que se crê não aconteçam…
E se ouvíssemos professores contando memórias de quando ainda não eram professores? E se dissessem porque gostavam de ir a escola e do que não gostavam? Talvez pudéssemos ler algo assim. A minha primeira escola era mais pobre do que tudo o que se possa imaginar. A directora morava no último andar do velho edifício. Na sala, havia um quadro negro e umas carteiras a desfazer-se. Recordo o cheiro da tinta, a caneta de aparo, o mata-borrão… Eu carregava demasiado na caneta e borratava o caderno de duas linhas. Nem a palmatória de olhinhos aplicada a rigor me resolvia o problema. Bem pelo contrário!… Com o nervoso miudinho aumentava a pressão sobre a caneta e voltava a partir o aparo… Mas não quero lembrar mais isso. Gostaria de dizer que quase tudo o que aprendi, durante os quatro primeiros anos de escola, aprendi-o fora da escola.
Eu ia à escola, de manhã. De tarde, trabalhava na oficina do meu pai. À noite, ia para a casa de um senhor que morava no primeiro andar de meu prédio.
Era um tal cheirinho a livros naquele quarto! Todas noites, devolvia os livros já lidos e remexia prateleiras em busca de novidades. O senhor Carlos assistia à minha sofreguidão visivelmente satisfeito. Visivelmente, rejubilava por me ver sair de sua casa, levando nova remessa debaixo do braço. Eu subia as escadas, duas a duas, e, entrando em casa, espalhava os livros sobre a cama, para uma primeira escolha. Depois, sob a luz fraca e tremeluzente de um candeeiro a petróleo, noite adentro, esforçava os olhos na avidez de leituras urgentes: o Cavaleiro Andante, o Mosquito, o Pateta, a Fagulha..
O senhor Carlos era um homem era muito conhecido na minha rua, por não ter ido casar na igreja e por “ter ideias políticas”. Avisavam-me:
Vê lá com quem andas. Na tua idade, do que tu precisas é de bons exemplos! Ainda vais dar em ateu, ou comunista!
Na minha rua, o senhor Carlos era o único que tinha livros em casa, e era uma das raras pessoas que sabia ler. Não era professor, mas ensinou-me a amar a leitura, muito antes de eu ir para a escola. Hoje, eu sei que ele me ensinou a ler pelo método global de palavras, ainda que não soubesse que era um método. E mostrou-me, pelo seu exemplo, que há muitas maneiras de aprender. e de viver. Possuía uma estranha coragem de assumir a diferença, num tempo de medo e sombras. Creio mesmo ter modelado os meus afectos no amor que ele tinha pela sua companheira – um amor profundo e sem contrato. Aprendi, muito cedo e com pessoas simples, os dons da dádiva, da simplicidade e da coragem, ainda que continue a considerar-me em deficit no uso de tais dons.
Quando fui para a primária, eu já sabia ler. Mas não tive outro remédio senão disfarçar. Tinha que escrever letras em carreirinhas e fazer de conta de que não sabia ler. No meu primeiro dia de escola, o senhor Carlos juntou ao monte de livros de quadradinhos um livro grosso, que tinha escrito na capa:
“A oeste nada de novo”
. Foi o meu primeiro livro sem figurinhas. E disse-me:
Leva. Lê quando quiseres. Mas não mostres a ninguém
.
Explicou-me tratar-se de um livro proibido pela Censura. Explicou-me o que era a Censura. Explicou-me tanta coisa!…
Quantas vezes tive de voltar atrás na leitura! Quantas mais vezes me apeteceu devolver o livro com uma desculpa esfarrapada do género:
Ainda não consigo perceber o que querem dizer algumas palavras…
Mas, quando ensaiei o pretexto, numa noite em que me perguntou se eu já lera algum bocadinho do romance, a frase saiu a falso. E, quando subi ao segundo andar, um braço segurava um macinho de livros, o outro ia abraçado a um dicionário.
Eu não queria desiludir o senhor Carlos. E levei a leitura até à última página. Aliás, à medida que avançava, menor era o sacrifício. E quando, orgulhosamente, dei por concluída a leitura desse primeiro livro sem figurinhas, eu vi os olhos do senhor Carlos brilharem, quando lhe disse:
O senhor Carlos não terá por aí outro romance? Pode até ter mais letras do que este!
Leia também os outros textos publicados na série inédita e exclusiva do educador português José Pacheco:
A divisão das orações
Bem pelo contrário!…
A caixinha dos segredos
O padre, o poeta e a professora de francês
Para os filhos dos filhos dos nossos filhos
Tempus fugit