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Entrevistas

Os perigos da técnica

Para filósofo italiano, sociedade atual ainda preserva uma ética pré-tecnológica e expõe crianças e jovens a estimulação excessiva, que resulta em apatia da psique

Publicado em 10/09/2011

por Umberto Galimberti

A relação entre o homem e a sociedade tecnológi­ca permeia a reflexão filosófica do italiano Umberto Galimberti, professor de Filosofia da História na Universidade Ca’ Foscari de Veneza, Itália. Em sua  crítica, ele alerta o homem contemporâneo, que vive na ilusão de controlar o seu futuro, que é a técnica, entendida como a forma mais alta de racionalidade e deter­minante dos rumos da humanidade. Nesta entrevista, concedida a Bianca Fraccalvieri, o autor de Rastros do Sagrado e Os Vícios Capitais e os Novos Vícios, ambos publicados pela editora Paulus, fala sobre a técnica e os seus efeitos nos mais diversos âmbitos da sociedade.



O senhor diz que o homem contemporâneo preservou a ética do pe­ríodo pré-tecnológico e que, todavia, essa ética não é mais compatível com a "Idade da Técnica", pois tornou-se "pat-ética". Que ética nos serve hoje?

Seria necessário assumir aquilo que chamo de "ética do viandante", uma reformulação da ética como propõe Aristóteles quando fala de fronesis, que traduzimos por sabedoria ou prudência. Em verdade, é uma dimensão dramática, que consiste no fato de que quando não se pode decidir a partir de princípios universais, como se faz na matemática ou na metafísica, é necessário raciocinar segundo as circunstâncias e optar a partir daquilo que é mais oportuno. É claro que cada decisão que não se deduz a partir do princípio universal é uma opção dramática, por vezes trágica. Mas não vejo outra solução senão esta: a fronesis de Aristóteles, que hoje poderia ser reformulada também na moralidade da redução do dano, redução do maior mal em relação àquilo que se considera ser o bem.


Essa "ética do viandante" pode alimentar os vícios capitais, ou estes são fruto da técnica?

Os tradicionais vícios capitais estão em decadência, já que a técnica impõe leis muito mais rigorosas do que a lei da moral: não há espaço para o perdão, a compreensão e a remissão. Se os níveis previstos de produção, eficiência e profissionalismo não são alcançados, você está excluído da sociedade. Nesse contexto, a técnica não faz objeção à luxúria, que nem sequer é mais vista como uma forma de mal, assim como a sexualidade, que no início de 1900 era um tabu. Mas os homens necessitam de tabus e limites, e o tabu foi empurrado para mais além, nas formas suicidas da droga, dos acidentes automobilísticos de sábado à noite e por aí afora. Como efeito da técnica, outros dois vícios se somaram: o do conformismo, pois a técnica tende a tratar-nos um pouco como máquinas e por isso prevê que os homens sejam muito padronizáveis, e não só na maneira de pensar. Uma vez que atinjo a padronização não só do pensamento, mas também do sentimento, a técnica, de certo modo, atingiu o seu objetivo. Há também o consumismo, sob o qual existe um profundo niilismo. Consumir significa que as coisas sejam feitas em vista da sua finalidade: a finalidade das coisas é a sua utilidade, mas a moda agora é estabelecer a sua decadência e exclusão como forma de alimentar o consumismo.


O senhor afirma que a era da técnica se caracteriza pela falta de metas a alcançar e de sentido para a vida. Nessa perspectiva, que papel tem a educação?

A técnica não tem metas, pois tende exclusivamente a sua autopotenciação. Em um horizonte privado de fins, o futuro deixa de ser previsível, não se configura mais como esperança e isso é evidente nos jovens, que se concentram no presente. Se o futuro se revela como uma ameaça ao invés de uma esperança, eles preferem viver o presente com toda a potência e força da juventude, sem nenhum respeito ao limite. Se o tempo é o da autopotenciação da técnica e nada mais, eu não falaria sequer de progresso, mas de desenvolvimento tecnológico, eficiência profissional e produtividade, impulsionados para além de qualquer limite, no absoluto deserto de sensatez. Os jovens intuem essas coisas e vivem uma espécie de presente absoluto.


Os jovens não são capazes de elaborar emoções? Por que se tornaram "analfabetos emotivos"?

Quando eram menores, foram submetidos a um excesso de estímulos. Quando tenho uma quantidade de estímulos que supera a minha capacidade de elaboração, tenho duas opções: ou me angustio ou então apatizo minha psique, de forma que aquilo que vejo e sinto não provoque em mim nenhuma ressonância emotiva. Crio a condição que em 1800 chamava-se psicoapatia, a apatia da psique, que não compreende de imediato a diferença entre o bem e o mal. Kant dizia que o bem e o mal podem não ser definidos, já que cada um de nós os sente naturalmente por si. Isto não é mais verdade. Vemos episódios de filhos que matam os pais e depois vão beber uma cerveja ou vão para a discoteca; não têm a percepção da gravidade do ato, não têm mais a sensação daquilo que é o bem e daquilo que é o mal, tampouco do que é grave e do que é menos grave. Esse processo de psicoapatia advém da hiperestimulação a que são submetidas as crianças, seja com a televisão, seja com a internet, seja com todas as atividades a que são submetidas – da escola à natação, à dança, ao piano, à academia. A criança não consegue elaborar todos esses estímulos e se torna psicologicamente apática para evitar a outra forma de seleção possível, a angústia.


Um dos aspectos que sublinham o predomínio da técnica hoje é justamente o sistema escolar. No Brasil, sobretudo no ensino médio, o vestibular determina a forma do aprendizado. Como sair desse impasse?

Quando se eliminam a literatura e a filosofia, substituindo-as por procedimentos técnicos, não se forma o homem. Não é necessária uma preparação técnica no decorrer dos estudos, mas sim uma formação humanista. É mais importante que um homem seja um homem e tenha um coeficiente de inteligência suficientemente ágil do que seja uma pessoa formada na disciplina técnica, incapaz de gerir a si próprio, suas relações ou o mundo em que vive quando fora desse âmbito. A técnica pede às pessoas que a empregam um repertório muito elementar, que pode ser adquirido em três meses. Mas, se eu não lidar com o ser humano, acabo criando uma situação espantosa, na qual não se pode prever nem sequer um verdadeiro desenvolvimento. Essas pessoas serão sempre executoras e nunca criadoras, porque não terão desenvolvido nem uma inteligência problemática nem uma consciência de si, nem um sentido moral, que se adquire com a literatura, a filosofia e a arte, isto é, as dimensões humanistas que parecem em grande degradação, mas que são a condição para a formação do homem.


No Brasil, a educação, que deveria promover a inserção do indivíduo na sociedade, acaba se tornando um elemento de discriminação, porque, paradoxalmente, quem estudou numa escola particular tem mais chances de ingressar na universidade pública, as mais renomadas do país.

O problema nesse caso é a relação entre escola pública e privada nos anos de formação. A formação, bem ou mal, se conclui em torno dos 18 anos, pois a universidade só pode formar a cabeça, já que todo aparato emotivo, sentimental, emocional é formado antes. Portanto, é realmente necessário desenvolver potentemente a escola pública, algo que não vejo nem na América do Norte nem na América Latina, porque a degradação da escola pública não é outra coisa senão uma estratégia para consentir a construção da classe dirigente a partir de uma classe já rica em princípio, motivo pelo qual as divisões sociais tornam-se discriminantes. Toda vez que a escola privada prevalecer em termos de formação em relação à escola pública, se verão as injustiças sociais perpetuar-se.


Como garantir que a massificação da educação não resulte em decadência da qualidade do ensino, como acontece no Brasil com o aumento das universidades privadas?

A esse ponto, faria a operação que estão fazendo os chineses, que não realizam a seleção para o ingresso na universidade: todos são admitidos nos primeiros dois anos. Mas nesses dois anos recebem uma carga de estudo tal que os estudantes são obrigados a estudar 12-13-14 horas por dia. Se suportarem esse ritmo, conseguem superar os exames e prosseguir; se não, são cruelmente eliminados. Porém, a seleção acontece a partir da avaliação do esforço e não da preparação antecedente à universidade, já que isso ao menos garante que mesmo o mais pobre, se for esforçado, torne-se alguém com perspectivas no âmbito universitário; mas se é selecionado antecipadamente, tendo presente ainda que as seleções são realizadas com base em textos muito deficientes, essa escolha pode ser condicionada pelo arbítrio ou pelo privilégio de classe.


Por que a educação não constitui mais um tema de reflexão filosófica?

O problema da educação está completamente abandonado, não só nos países em desenvolvimento, mas também nos desenvolvidos. A técnica requer sujeitos que não pensem, que não interroguem e o faz desenvolvendo um pensamento binário, uma inteligência binária capaz de dizer sim ou não, como o computador. Ela está destruindo a inteligência problemática, que é a única com a qual a humanidade se construiu, uma inteligência que não é só uma resposta ao problema, mas é capaz também de invertê-lo para encontrar soluções inovadoras. Se não conseguirmos reconstruir para os jovens um futuro atraente, que possa servir como incentivo e motivação ao seu esforço, a escola pode ruir. Há uma deterioração em curso da nossa escola e dos processos educativos: os professores estão desencantados, não se escolhem professores fascinantes, a sua seleção é feita de uma forma casual, sem nenhuma verificação de sua capacidade carismática e de comunicação. Uma sociedade que não educa os jovens está fadada à morte.

Autor

Umberto Galimberti


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