NOTÍCIA
Publicado em 10/09/2011
Escolas charter começam a ganhar adeptos no Brasil, mas trazem de volta a discussão sobre o papel do Estado. Efetividade não está comprovada
Alunos do Harlem Success Academy, escola charter em Nova York: eficácia incerta |
Quem nunca ouviu o tema deve ficar atento. Começa a tomar corpo uma proposta inédita no Brasil e muito polêmica na educação: a gestão privada de escolas públicas, inclusive com a transferência de recursos financeiros do Estado. Essa modalidade mista de atendimento educacional atende por um nome genérico, embora tenha estruturas muito distintas nos países onde ocorre. São as
charter schools.
No Brasil, trata-se de um tema relativamente novo, e arrepia os cabelos de quem sempre teve a educação universal pública e gratuita como bandeira. Uma de suas primeiras manifestações ocorreu ainda durante a Constituinte, no final da década de 80, quando a rede privada sugeriu a compra das vagas ociosas de escolas particulares pelo governo. Algo semelhante ao que ocorre no Chile, que utiliza
vouchers
– créditos em dinheiro que podem ser utilizados pelas famílias para matricular seus filhos num sistema de ensino em que predomina a iniciativa particular.
A ideia não prosperou na época, mas começa a ser repensada. Recentemente, por exemplo, o tema foi tratado em um seminário internacional, no Centro Ruth Cardoso, em São Paulo. Pouco depois, o documento “A transformação da qualidade da Educação Básica pública no Brasil”, produzido por oito entidades empresariais, entre elas Casa do Saber, Parceiros da Educação e Instituto Unibanco, incluiu a proposta.
Diz o documento, assinado por 12 conhecidos pesquisadores, como Eunice Durhan, Maria Helena Guimarães Castro e Ruben Klein: “O que se propõe é incentivar a criação de arcabouços institucionais e normativos para regular os diferentes graus de participação de instituições não governamentais, com e sem fins lucrativos, na gestão de escolas ou sistemas de ensino público (…)” . Para tanto, o documento propõe a extensão do Fundeb para que as escolas privadas possam também receber financiamento público, citando como precedente o programa ProUni, que troca créditos fiscais do governo por vagas no ensino superior para jovens de baixa renda.
É um debate complexo, com diferentes dimensões. Num país em que a Educação Básica pública e gratuita atende 86% da população em idade escolar, a questão do trânsito de recursos entre a esfera pública e a iniciativa privada é a face mais superficial da questão e onde se darão os debates mais encarniçados. Mas há outros ângulos que merecem debate.
A primeira está na origem da proposta do documento assinado pelas entidades empresariais que apoiam projetos educacionais: nessa vertente, a institucionalização das
charter schools
seria um atalho para um caminho que sonham os que veem a escola como um poço sem fundo da má gestão. Permitiria a remuneração por resultados, um uso teoricamente mais eficiente dos recursos públicos, a escolha de gestores profissionais e – guerra à vista – contratar, remunerar e demitir professores sem a interferência dos sindicatos.
Nas últimas décadas, as organizações sociais intensificaram sua participação na educação brasileira, inclusive no âmbito empresarial, com o surgimento de projetos privados que oferecem à escola formação e recursos, mas se ressentem de seu baixo poder de intervenção real na administração escolar, engessada por um emaranhado de leis e pela baixa autonomia da escola pública brasileira.
A origem
As
charter schools
surgiram no início da década de 90, nos Estados Unidos, onde a cultura comunitária e associacionista favoreceu o modelo. A partir de um início ligado aos movimentos negros, a proposta se expandiu. Em 2006, havia 4 mil escolas desse tipo nos Estados Unidos, atendendo a 1 milhão de alunos.
Geralmente, são geridas por entidades privadas e financiadas pelo sistema público, cujo funcionamento é autorizado a partir da apresentação de um projeto educativo (pedagógico e financeiro-administrativo). Os pais podem matricular livre e gratuitamente seus filhos nesse sistema, independentemente do lugar de moradia – o que causa o excesso de demanda e sistemas de escolha baseados em sorteio.
Para uma das principais defensoras brasileiras desse modelo, a consultora Guiomar Namo de Mello, a experiência norte-americana mostra que acabar com a defasagem de aprendizagem das populações pobres é um processo caro e necessita de condições que os sistemas públicos, lentos e ineficazes, não conseguem atender. “Aqui temos, entre outros, o problema do desamparo do professor que lida com crianças pobres”, diz. “Estou convencida de que assassinamos gerações e gerações, porque a instituição funciona contra o aluno”, completa. Para a educadora, o debate deve ser feito sem ideologizações e de forma pragmática. “Precisamos antes deixar essa planta crescer para ver que fruto dará, se será doce ou amargo. Como está é que não pode ficar”, diz.
A ex-secretária da Educação de São Paulo Rose Neubauer aponta outro aspecto que vem sendo lembrado – a ampliação das possibilidades de participação da comunidade. Segundo um estudo que a pesquisadora apresentou no seminário do Centro Ruth Cardoso, as iniciativas de democratização do acesso à educação na América Latina estancaram, entre outros motivos, porque as famílias pouco ou nada podem influir na organização escolar. Nas
charter schools
, as associações de pais ganham um poder ampliado, inclusive para destituir a direção, quando estão insatisfeitas com os resultados. Nos Estados Unidos, o
The New York Times
noticiou, em dezembro, o caso de uma comunidade em Compton, na Califórnia, que pressionou as autoridades com abaixo-assinados e manifestações até conseguir transformar a escola pública local em charter.
Mas, independentemente das questões de financiamento e de democratização, o pressuposto central que alimenta a discussão nos Estados Unidos, como aqui, é o de que as escolas, uma vez livres da mão pesada do Estado, oferecem melhor qualidade de ensino para populações marginalizadas e acabam por estimular melhores resultados em todo o sistema educacional público.
O problema é que nem sempre isso é verdade. Um artigo publicado pelo economista Naércio de Menezes cita estudos comparativos feitos nas escolas norte-americanas, a partir do diagnóstico feito em 2006 pela principal avaliação nacional – que mostrou que os alunos das charters tinham desempenho inferior ao dos alunos das escolas públicas.
Implantação difícil
Naércio cita quatro estudos longitudinais realizados nos Estados Unidos sobre o tema. Em síntese, escreve, todos mostram que as escolas
charter
têm dificuldades nos seus primeiros anos de implantação, o que ocasiona a queda no rendimento. Em muitos casos, posteriormente essa defasagem é recuperada, mas nem sempre. Contudo, em alguns lugares, como a Carolina do Norte, o desempenho dos alunos das escolas do modelo permaneceu inferior, principalmente entre os alunos mais pobres, segundo o pesquisador.
Para ele, antes de implementar mudanças administrativas profundas, como as que demandariam a autorização desse tipo de escola, o Brasil ganharia se simplesmente adotasse nas escolas públicas práticas gerenciais mais eficientes, inspiradas nos modelos privados.
Outra observação interessante foi feita
in loco
pela pesquisadora Beatriz Cardoso, uma das diretoras da organização Cedac, em São Paulo. Beatriz, que foi aos Estados Unidos para conhecer de perto escolas com esse tipo de financiamento público nos bairros do Harlem e do Brooklyn, diz ter visto escolas públicas e mistas num mesmo prédio, sem que houvesse qualquer contato ou troca de experiências entre elas. A pesquisadora, contudo, vê pontos positivos. “É um modelo alternativo para dar conta de uma série de problemas que temos, que compatibiliza a gestão pública e a privada e permite administrar problemas crônicos”, defende. Além disso, segundo diz, o sistema permite que as escolas recebam o mesmo valor
per capita
investido pelo governo nas escolas públicas e ainda possam buscar captações externas, para investir em seus projetos. “A lógica de constituição já tem um filtro de pais interessados em melhor qualidade de ensino, boa estrutura de supervisão e professores comprometidos”, crê.
No âmbito do governo, a cautela de Naércio é compartilhada pela historiadora Maria do Pilar, secretária nacional da Educação Básica. Para Pilar, o debate das escolas
charter
ainda é muito incipiente e localizado, e não deve ocupar o foco das mudanças na educação brasileira. “Podemos melhorar o desempenho das escolas adotando práticas de gestão melhores”, acredita. Para Pilar, o Brasil é um país que tem uma agenda ainda do século 19, no que diz respeito à educação. “Precisamos ainda garantir a entrada das crianças de 4 a 17 anos, e mudanças como a introdução das escolas
charter
provocam certa desestabilização no sistema público”, diz.
Supressão da desigualdade
Segundo Pilar, o MEC não tem posição radicalmente contrária e acredita que a discussão deve ser feita sem dogmatismo. “Mas temos outra prioridade antes de chegar a esse debate”, afirma. Para ela, a questão central da educação ainda é a da desigualdade. “Onde existe desigualdade não tem resultado escolar bom”, defende, citando os exemplos da Finlândia e da Coreia do Sul. Por isso, segundo diz, as políticas públicas devem buscar trazer os pais para a escola, ampliando sua escolaridade para que a criança tenha acesso a um ambiente doméstico mais letrado. Do mesmo modo, Pilar acredita que os sistemas educacionais devem estabelecer mais diálogo com os professores e debater temas como a meritocracia.
No campo da gestão, a secretária nacional aponta avanços, como os projetos apresentados ao Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE). “Antes, de cada 10, 7 eram devolvidos por inconsistência; agora, apenas um volta para ser aprimorado”, lembra.
Para Pilar, o Brasil ainda tem a avançar na cultura da escola pública, que passou da noção de uma escola para elites, exclusivista, para uma escola para pobres, negada pelas classes ricas. “Como na França ou na Alemanha, precisamos ter uma escola pública para todos. Não é uma questão ideológica, mas um símbolo da vida democrática”, diz.
Colômbia: colégios em concessão |
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Um dos exemplos mais próximos das escolas charter na América Latina é o da Colômbia, país com desigualdades sociais semelhantes às do Brasil. Lá, o sistema é nomeado “colégios em concessão”. No caso colombiano, os contratos são feitos apenas com organizações sociais sem fins lucrativos (o que difere do modelo norte-americano). As instituições são escolhidas mediante licitação, para gerir escolas em áreas marginais. Os contratos são celebrados com no mínimo 12 anos de duração, e o governo desembolsa aproximadamente o valor médio que custa um aluno da rede pública.
Segundo a ex-ministra da Educação da Colômbia, Cecilia María Velez, as primeiras iniciativas aconteceram em Bogotá, no bojo de uma estratégia para reintegrar bairros mais pobres da cidade, onde prevaleciam ocupações ilegais e faltava infraestrutura. Frequentemente, a oferta de ensino público limitava-se às vizinhanças das comunidades, pelo próprio medo da violência. Nesse contexto, o recurso à parceria com entidades privadas foi uma forma de acelerar o processo. A Colômbia é um dos únicos países latino-americanos onde a oferta do ensino público universal e gratuito não está garantida na Constituição. O projeto foi estendido para o país. Hoje, diz, há 28 mil alunos estudando em colégios em concessão em Bogotá, número que chegará a quase 100 mil, quando estiverem prontas 45 novas unidades que estão em construção. Conforme Cecilia, hoje pesquisadora na Universidade de Harvard, os colégios em concessão permitem maior contato com os pais e também com as comunidades vizinhas, para quem também são ofertadas atividades educacionais. “As avaliações feitas mostram que este modelo gera qualidade para crianças que provêm de estratos socioeconômicos muito pobres, unindo as vantagens da administração privada na oferta da educação pública”, argumenta. Segundo a ex-ministra, os estudos feitos pelo Banco Mundial mostram que os alunos não apenas obtêm melhor aproveitamento, como caem os índices de abandono. |
“É completamente ideológico” |
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Para a pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)Theresa Adrião, a discussão sobre o sistema de escolas charter é sempre ideológica. “É completamente ideológica uma concepção em que se considere “A” verdade”, diz. “Acreditar que experiências tão limitadas como as gestadas por instituições privadas sejam as opções mais acertadas para os sistemas públicos de ensino, necessariamente universal e não excludente, parece-me dramaticamente simplista”, completa. Theresa estuda as consequências de parcerias entre os setores público e privado, com fins lucrativos ou sem, e diz que não há evidência de que tragam benefícios no desempenho dos alunos de ensino fundamental. No caso específico das escolas charter, ela diz que, no Chile, a gestão privada de equipamentos públicos tem gerado distorções que agravam as desigualdades sociais. “Se o desempenho da instituição (leia-se, dos alunos) é critério para vantagens, os mecanismos forjados pelas escolas para selecionar os estudantes previamente ou minimizar sua participação nos indicadores não são desprezíveis”, argumenta. A pesquisadora discorda da ideia de que as deficiências da escola pública são fruto de má gestão escolar, citando outros fatores que impactam a qualidade, como a permanência do professor na escola e a formação prévia dos gestores. Assim, seria inoportuno canalizar recursos públicos para o setor privado quando se discute um novo Plano Nacional da Educação. “É tanto melhor, quanto mais eficiente, em termos de reformas educativas com foco na gestão, o diálogo democrático com a escola”, afirma. A pesquisadora lembra que a própria proposta que vem sendo formulada no Brasil difere da origem do conceito americano, nascido da preocupação de criar algo distinto da padronização curricular, com propostas voltadas a populações específicas. |