NOTÍCIA

Edição 152

Autor

Gabriel Jareta

Publicado em 10/09/2011

Repertório cultural mais variado do professor permite relações mais criativas em sala de aula

Linguagens artísticas também ampliam o entendimento de temas diversos

repertório cultural

Foto: Shutterstock


“Se um professor possui um repertório cultural pobre, sua prática docente será mais pobre.” É com essa fórmula direta que a pesquisadora Monique Andries Nogueira exemplifica os resultados de uma lacuna na formação do professor brasileiro: a falta de uma bagagem artística e cultural consistente, capaz de estabelecer em sala de aula relações entre o conteúdo programático e as artes plásticas, o cinema, a música, a dança, a literatura – as artes em geral, enfim – de modo a revelar as convergências ou similaridades entre os percursos da história do pensamento e da expressão humanos.
Docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e graduada em música, Monique enxerga um paradoxo na formação cultural dos professores, campo de estudo que é tema de seu doutorado. “Quase ninguém deixa de reconhecer a importância de uma boa formação cultural, mas esse tema não aparece nas reformas curriculares dos cursos universitários”, afirma. Para a pesquisadora, o professor com formação cultural mais ampla evolui em dois níveis, com ganhos não só em sala de aula, mas também de ordem pessoal. “Cobra-se muito o domínio do conteúdo, o que é natural, mas não a formação cultural, que considero primordial”, afirma.
A pesquisadora Pricilla Cristine Trierweiller, do Núcleo de Desenvolvimento Infantil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), chegou a conclusões semelhantes em sua pesquisa de mestrado: o senso comum indica que a formação cultural deveria ser estimulada, mas não é isso que acontece na prática. “Os professores reconhecem (essa lacuna), sabem que a formação cultural é importante, mas acabam deixando isso para um segundo plano e continuam reproduzindo o mesmo que aprenderam”, relata.
Tanto quanto obter um diploma de nível superior, especializar-se na área de atuação ou saber trabalhar o conteúdo de maneira interdisciplinar, a formação cultural sólida do educador provoca impacto direto na aprendizagem. “A arte estabelece um lugar de diálogo, quebra resistências, traz o lúdico e o poético à aprendizagem”, afirma Renata Bitencourt, doutora em história da arte e gerente de Educação Cultural do Itaú Cultural, instituto de difusão artística e cultural. “Sem o repertório cultural, perde-se de vista a formação mais ampla e mais humanista. São valores que o professor leva para sempre, relacionados ao outro, à diversidade”, completa.
Segundo Pricilla, da UFSC, especialmente na área em que ela atua, a educação infantil, o professor com maior repertório faz uma leitura mais crítica da realidade e possui uma formação humana mais ampla, capaz de estimular a produção simbólica nas crianças. “Como considerar na criança e propor a ela aquilo que não faz parte do seu próprio acervo?”, questiona. Por isso ela vê a necessidade premente da instauração de políticas públicas nessa área e de uma proposta de formação que considere “o sensível e o inteligível”. “A formação estética deveria fazer parte do currículo, embora só estar presente não garanta nada. Hoje há a disciplina de ‘arte’, mas é por um período muito curto”, ressalta.
Mesmo assim, segundo a pesquisadora, a arte costuma aparecer em sala de aula apenas com a função de tornar mais prazeroso o ensino de outras disciplinas. “A própria disciplina de arte sempre teve de se justificar no currículo. Português e matemática, por exemplo, por conta de uma ideologia social, sempre tiveram maior importância”, diz.
Isso porque, aparentemente, a formação estética ou o incentivo à arte e à cultura não produzem resultados que podem ser medidos pelos meios tradicionais. Coordenadora da área de ação educativa do Museu Lasar Segall, em São Paulo, Anny Christina Lima aponta que os trabalhos realizados junto aos professores pelo museu não têm como objetivo geral tornar a aula “mais fácil” para os educadores, mas sim desenvolver a prática didática e ampliar a formação pessoal do professor. “É uma utilidade que não é direta. O professor com mais recursos, com conhecimento diversificado, tem como saber o que é mais adequado para sua turma, para aquela situação específica. Tem mais clareza sobre o que vai trabalhar”, diz.
Questão pessoal
Muito do caráter “acessório” da arte na aprendizagem e da fragilidade da formação estética e cultural do professor é consequência da ideia de que prover esse repertório não é função da universidade, nem nos cursos superiores de formação de professores nem nas licenciaturas. “Não há incentivo dentro do curso, se torna uma questão pessoal”, afirma Pricilla.

Responsável por alguns projetos bem-sucedidos de difusão cultural para educadores, Renata Bitencourt ressalta que, nesse âmbito, uma das principais deficiências do professor é a falta do hábito de leitura. “Um professor que não lê dificilmente vai se relacionar com a arte contemporânea, por exemplo.” Para ela, um dos fatores preponderantes se deve ao fato de que a formação do leitor geralmente não acontece no ambiente escolar. “O professor deveria ser estimulado à leitura não só tendo em vista os seus alunos, mas a sua vida pessoal, os seus filhos”, defende.

Na opinião da pesquisadora Monique, a universidade precisa assumir esse papel, ainda que tardio, de estimular o repertório cultural, principalmente quando se está falando da formação de futuros professores. “O curso de pedagogia tem um recorte nacional de classe média baixa, e a maioria não teve essa prática cultural consolidada na família ou nas atividades escolares. A grande questão é a formação do hábito”, diz. A consequência dessa lacuna é ainda mais grave ao se pensar que o educador vai continuar reproduzindo o modelo com seus alunos. “Os professores com repertório pobre dificilmente vão para a rede privada. Eles vão para a rede pública, para as escolas da periferia”, completa.
Mesmo o ato de ir ao cinema pode se tornar mais valioso se a universidade estiver envolvida. Por isso, Monique defende que é papel dos cursos de formação prever essas medidas, ainda que por meio de atividades extracurriculares. “Um aluno pode frequentar muito o cinema, mas só assistir a blockbusters. É função da universidade ampliar essa experiência, mostrar que há, por exemplo, o cinema iraniano, que o aluno pode não ter tido a oportunidade de conhecer.”
Contato direto
Embora a grande maioria dos currículos de formação de professores não contemple a formação de um repertório cultural, algumas iniciativas de professores, instituições ou mesmo governos têm auxiliado na ampliação da bagagem dos educadores por meio do contato direto com a arte. Na UFRJ, diz Monique, seus alunos devem, obrigatoriamente, ir a um evento cultural por mês e trazer relatório da atividade. E por “arte” ela entende a maior amplitude possível de manifestações, de balé a roda de samba, de concertos eruditos a shows populares. “Os alunos (universitários) começam a mostrar seu repertório nos trabalhos escolares. Até os projetos interdisciplinares são melhores”, conta.
Os museus de arte também são espaços para “vivenciar” a cultura tendo em vista a formação de novos públicos. Muitos deles oferecem mais do que horários de visita para a escola, e procuram fazer um trabalho de base com os educadores – não só os de arte. O Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, por exemplo, recebe docentes de diversas disciplinas e níveis de ensino para os encontros do projeto Contatos com a Arte. “O museu é um espaço para a formação do conhecimento e do repertório e favorece a interdisciplinaridade. Os conteúdos de arte possibilitam diferentes abordagens”, diz Patrícia Naka, coordenadora do setor educativo.
Nos encontros, que acontecem durante todo o ano, ensina-se como alinhar conteúdos curriculares a
conteúdos artísticos. Em uma exposição do paisagista Burle Marx, por exemplo, seu caráter de multiartista pode ser fonte de conteúdo para docentes de várias disciplinas, de história a matemática. “Ganha-se outro significado quando se insere a arte nos projetos transversais”, exemplifica Patrícia.
No Museu Lasar Segall, as visitas podem ser feitas de acordo com a demanda do educador da disciplina. Embora a maioria das visitas seja liderada por professores de educação artística, a museóloga Anny Christina ressalta que qualquer área do conhecimento pode ser abordada, uma vez que os roteiros estão à parte do conteúdo curricular. “Nossa intenção é colocar a escolha (do roteiro) na mão do professor”, diz. Um professor de química do ensino médio, por exemplo, visitou o museu com os alunos. “A ideia dele era relacionar a leitura das obras, a discussão do que se está vendo, a narrativa que se constrói, ao trabalho do cientista ao observar a natureza, explicando o pensamento científico”, conta.

Sentido na sala de aula
Uma das principais características do professor com maior repertório cultural é a capacidade de fazer uma leitura crítica do mundo e, mais ainda, de sua própria função de educador. A partir de um “incômodo” em relação ao modo tradicional de lecionar, o professor com maior bagagem consegue extrair mais interesse dos alunos e é capaz de fazer escolhas mais criativas diante do conteúdo. “Nunca entro ‘de sola’ em um assunto. Sempre procuro antes fazer aquilo produzir algum tipo de sentido para os alunos”, conta a professora Adriana Beatriz Saporito, responsável pelas disciplinas de português e inglês em dois colégios privados paulistanos.
Na opinião de Adriana, mais do que uma preocupação pessoal, a formação cultural permite ampliar os significados e estabelecer relação entre o “mundo real” e o que está sendo transmitido aos alunos. “Ao ensinar a composição de um personagem romântico para o ensino médio, antes os alunos têm de assistir ao filme Lisbela e o prisioneiro. Para apresentar O primo Basílio, de Eça de Queiroz, introduzo músicas, casos de jornal que falam de traição. É preciso trazer para a realidade”, relata a professora. Para a turma de inglês da 8ª série que estava lendo O fantasma da ópera, ela antes pediu que os alunos pesquisassem músicas e temas da época. “Essa disponibilidade tem de partir do professor. É possível dar uma aula de matemática a partir de uma omelete”, aponta.
Embora tenha começado a carreira no magistério, há mais de 15 anos, de maneira tradicional, Adriana começou aos poucos a questionar o modelo que havia recebido na universidade para procurar “sentido” no que estava fazendo. Atualmente, diz, não passa mais que dois meses sem fazer algum tipo de curso.
A preocupação de Adriana encontra eco no relato da professora Magda Medhat Pechliye, que por mais de 20 anos deu aulas de ciências para o ensino fundamental e hoje é docente do curso de formação de professores da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduada em biologia, Magda conta que teve sua formação no ensino superior de maneira bastante tradicional e também sentiu necessidade de mudar a forma com que trabalhava em sala de aula. “Incomodava olhar para o aluno e perceber que ele não estava interessado”, lembra. A alternativa, que acabou surgindo de maneira muito gradual, foi valer-se do repertório cultural e de experiências acadêmicas para levar aos alunos um novo olhar. “Quando você fala de arte, de filmes, o interesse aumenta, você faz uma aproximação com o cotidiano”, diz.
Hoje responsável pela formação de novos professores, Magda procura pedir aos alunos nas aulas da universidade atividades diferentes das tradicionais. Uma atividade de análise de uma obra do artista abstracionista russo Wassily Kandinsky, por exemplo, em que fragmentos podem representar “inteiros” independentes, pode levar os alunos a associar a atividade à observação necessária ao fazer científico. “O objetivo é mostrar o quanto é importante o olhar na ciência”, diz.
A formação cultural e artística também se mostra uma aliada ao lidar com temas interdisciplinares, como é cada vez mais exigido na educação contemporânea. “Hoje não é possível existir uma disciplina solitária. É uma questão da vida globalizada e do acesso fácil a culturas de todo o mundo”, ressalta o professor de arte Pio Santana, que trabalha em uma escola pública de ensino fundamental e médio de São Paulo, além de dar aulas de arte em uma universidade de Santos.
Segundo o professor, participante assíduo dos cursos do Museu de Arte Moderna (MAM), a arte engloba hoje elementos que estão à disposição do aluno, como videoclipes e música pop. “Por sua natureza, a arte é uma disciplina aberta, que faz parcerias com outras áreas do conhecimento”, diz. Atualmente, por exemplo, Santana está desenvolvendo um trabalho que envolve a participação do professor de língua portuguesa: os alunos deverão interpretar poemas por meio de instalações artísticas. “O professor é um mediador cultural e está diante de inúmeras possibilidades artísticas, mas são poucos aqueles que se interessam”, lamenta.

 
 
 


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