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Entrevistas

Tem de boicotar

Especialista em igualdade racial defende que sociedade se una e deixe de consumir notícias que tratem o negro com discriminação

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação





Alceu Luís Castilho*



Especializada em igualdade racial, a professora doutora Maria Aparecida Silva Bento, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), identifica na escola uma das causas primeiras da baixa auto-estima do negro brasileiro – ao lado, por exemplo, da mídia. Diante disso, parte de seu trabalho no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) visa promover a igualdade racial no ambiente escolar. Desde o ano passado, a ONG promove um prêmio para destacar experiências de professores em todo o país. “Eles são heróis anônimos”, define Cida Bento. Nem tudo é otimismo, porém. A pesquisadora não titubeia em definir a lei n
o

10.639 – que prevê o estudo de temas africanos e afro-brasileiros nas escolas – como algo “para inglês ver”, por conta da falta de recursos e de iniciativas do governo federal. Para ela, cabe aos negros pressionar o poder público para que as Diretrizes Nacionais de Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana sejam colocadas em prática, nas prefeituras e nos estados. Esperar que os brancos tomem a iniciativa, entre eles aqueles que estão no MEC, ela não acredita. “Muitas pessoas que tiveram discurso contra a violação de direitos no que diz respeito à questão racial permanecem omissas.” Antes que alguém defina a professora como segregacionista, ela avisa: metade dos professores premiados pelo Ceert, em 2004, é branca. Confira na íntegra a entrevista.



Revista Educação – Como é visto o negro hoje nas escolas brasileiras?


Maria Aparecida Silva Bento –



Está mudando muito a perspectiva, o ângulo pelo qual se vê o negro na nossa sociedade, mas ainda há muito a fazer. Você ainda tem estatísticas de desigualdades muito graves, o percentual de analfabetismo de negros é o dobro do percentual de analfabetismo de brancos, o problema grave de repetência de crianças negras, muito maior que o das crianças brancas, a evasão das crianças negras é maior. Tem ainda preconceito nos livros didáticos, tanto imagens preconceituosas quanto ausência da figura negra, e também nos textos. Isso ainda existe. Mas tem uma mudança. Vem vindo por pressão do movimento negro, já há alguns anos, se intensifica em 1995, quando a gente fez aquela marcha Zumbi dos Palmares em Brasília [
DF

], quando levamos 30 mil pessoas, entregamos um documento, pleiteamos à presidência da República políticas para combater a desigualdade. Quando o novo presidente assumiu, assinou aquela lei, número 10.639, que obriga todas as escolas a ensinarem história da África, literatura africana, estudo do negro brasileiro. Isso traz um novo respiro para a aplicação dessa temática.



As escolas estão preparadas para a aplicação dessa lei?



Não, não estão preparadas. Uma lei como essa deveria ter vindo acompanhada de recursos, ações para que os professores conseguissem implementar. Isso não aconteceu.



Por quê?



Porque o que a gente pode observar de um modo geral é que vem uma ação para inglês ver, digamos assim, mas que o movimento tenha aproveitado para dar um salto a partir desse momento. Então, embora não tenham vindo os recursos, o que torna muito lenta a implementação dos programas de promoção da igualdade racial em escola, o movimento negro e as organizações têm aproveitado essa lei para pressionar prefeituras, secretarias estaduais, e as coisas começam a caminhar. Professores têm sido treinados em diferentes lugares do país, capacitados para tratar desse tema, mas não como gostaríamos.



Como fazer com que iniciativas como a do Ceert ganhem escala?



Como fazer para que o Estado reconheça seu papel nesse lugar? Porque a idéia do prêmio, já é sua segunda edição, era que justamente se pudesse trazer boas práticas, dar visibilidade a elas, disseminá-las e estimular o poder público a assumir esse papel. A gente já tem 600 práticas acumuladas e vê pouca mobilidade do governo. O governo ainda fica procurando pessoas, especialistas, pesquisas, quando a gente já tem um caldo de dez anos de produção nessa área de relações
sociais e educação, que é só boa vontade política para botar na rua.



Não há posicionamento do MEC para a implementação dessas práticas?



Não como deveria. Está crescendo. O governo precisa se manifestar com mais firmeza, principalmente no que diz respeito a ter recursos, e utilizar os mecanismos que eles já têm para capacitar professores em diferentes áreas, especificamente em relação a esse tema.



Isso viria somente do MEC, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial ou de outros órgãos?



Do MEC com o apoio da Seppir [
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

]. A Seppir tem essa função de aplicar, transversalmente, políticas de promoção da igualdade racial. Então, deveria passar por todos os ministérios. Mas há um emperramento, uma dificuldade, é quase como se as pessoas não tivessem muita certeza, não dão um passo, e aquele passo que poderia ser implementado imediatamente ainda fica aguardando muitas ações.



Benedita da Silva, ex-ministra da Assistência e Promoção Social, saiu do governo. A ministra Matilde Ribeiro administra uma pasta com poucas verbas e pouca divulgação. A ministra Marina Silva está desprestigiada, por conta da lei sobre transgênicos. Esse desprestígio da mulher negra no governo afeta a possibilidade de aplicação em massa dessas políticas?



Acho que afeta. Os estudos têm mostrado que a implementação desse tipo de políticas depende de você ter em lugares de poder pessoas que são diretamente voltadas a isso. Porque é uma resistência muito grande. Uma luta pela manutenção do privilégio, por lugares de poder, por lugares que têm sido destacados aos brancos. Brancos em lugares de poder dentro do aparelho do Estado, mesmo sendo progressistas, de esquerda, nem sempre têm esse interesse em agilizar isso. Você vê que muitos deles, aquelas pessoas que tiveram discurso ao longo da vida contra a violação de direitos, no que diz respeito à questão racial, eles permanecem omissos. Se você não tem negros em lugares de poder para desencadear os processos, isso não acontece. Agora, a Matilde [
Ribeiro

] tem sido muito fortalecida pelo movimento negro, e a gente espera que as coisas caminhem.



Como anda a relação do movimento negro com os movimentos de gênero?



Tem muitos estudos que mostram que a mulher branca é aquela que tem mais se beneficiado nesses tipos de programa de cotas, de ações afirmativas não só aqui no Brasil, como nos Estados Unidos. Você pega a história dos direitos civis, os estudos nessa área mostram que quem mais se beneficiou não foi nem a mulher em geral, mas a mulher branca. E é a figura que mais resiste às cotas para negros, às cotas raciais. É difícil uma mulher branca ativista que não sabe das desigualdades raciais. Em evento atrás de evento, elas não tratam de raça. É uma aproximação necessária.



Como a senhora vê o papel educativo da mídia em relação à questão racial? Como estimular que comunicação e educação andem juntas contra a desigualdade?



Enquanto não se boicotar a mídia essas coisas não vão mudar: tem de boicotar, deixar de ver programas, deixar de assinar jornais. Eu assinava um jornal e não assino mais pelas posições freqüentes contra a cota [
nas universidades

]. Sempre que eu posso, falo que sou contra a assinatura desse jornal por negros, pois vejo como inimigo do movimento negro. Não acredito na possibilidade de conscientização da mídia, acho que é uma questão de interesse. Quem está em lugares de poder na mídia são pessoas brancas, e elas não querem ver mudada essa situação. Querem ver esse tema abafado, como se não existisse. E é muito narcísico, eu diria. As pessoas buscam mostrar imagens delas mesmas. A coisa mais narcísica são as apresentadoras dos programas, uma loira atrás da outra. Você muda de canal e acha que está no mesmo, porque as carinhas são todas iguais. A alteridade só é admitida quando é folclorizada, quando é politizada, não. O próprio samba, o carnaval, aí o negro surge, quando é exótico. Eu sou doutora em psicologia, escrevi quatro livros, raramente sou chamada para comentar um tema ou outro da minha área. A mídia sabe muito bem a quem ela serve.



Qual a principal dificuldade do aluno na sala de aula com essa influência da mídia, das igrejas, dos pais?



Eu acho que os pais têm que fortalecer muito a auto-estima da criança negra. E isso tem a ver com contar história, fazer com que ela se orgulhe dos seus antepassados, ajudá-la a se ver como uma figura bonita, importante. Só que quando ela sai de casa não é isso que ela encontra. Quando ela vê um
outdoor

, só tem criança branca. Quando liga a televisão, quando abre um livro didático – é um embate permanente, e o pai tem de saber disso. Tem de ter sempre um acolhimento. quando a criança começa a verbalizar que está sacando isso, tem de conversar abertamente com ela. Porque ela sempre vai sofrer pressões diferenciadas. O pai dizendo “olha, você é negro, olha como seus antepassados são importantes”, e de outro lado todo o ambiente que ele valoriza, os amiguinhos, as revistas, os shows musicais, é a figura do branco positivada. Vai ser sempre difícil para a criança se identificar como negro, tenderá a se identificar com o que é considerado bonito.



O sucesso de figuras como a ginasta Daiane dos Santos ou o jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho ajuda na auto-estima ou remete somente a esportes?



Acho que ajuda. É que a nossa sociedade lida com essas questões como se fossem menores. A diversidade de competências e habilidades cognitivas, emocionais e afetivas que você tem de ter para jogar bola é muito mais ampla do que a necessária para ser analista de sistemas, desenvolver um programa, em que só se trabalha com as dimensões intelectivas. Muitas dessas atividades, e o futebol toca especificamente nisso, necessitam de um apuro de competências humanas, uma diversidade. Ele não é inferior. E não é só para mim. Estudos que diferenciam esportes mostram que ele está entre os que mais exigem do ser humano. Mas é desvalorizado.



Mas, ao mesmo tempo, os negros que chegam a esse patamar costumam ser despolitizados, não?



É difícil eles serem politizados. Eu me perguntaria por que o Ronaldinho Gaúcho seria politizado, de que maneira ele seria. Eles, como você, sentaram num banco de escola onde aprenderam que é bom ser branco. E ele convive em relações de poder em que o branco está bem colocado, talvez seja casado com branca, não sei. Muitas vezes acontece isso porque esse imaginário de mulher bonita, interessante, é de fato a mulher branca. E tenderiam a desenvolver um mínimo de conflito com os brancos em geral.



Voltando ao banco de escola, há alguma experiência no mundo onde tudo isso tenha dado bons resultados?



Ainda não. Nos Estados Unidos, há um trabalho diferenciado, quando comparado ao nosso, porque envolve menos brancos. O processo no Brasil é mais lento porque naturalmente terá de envolver brancos, a não ser que a gente tenha uma guerrinha, uma revoluçãozinha. Tende a ser mais lento, mas mais consistente. Por exemplo, metade dos professores que fez as experiências premiadas pelo Ceert é branca. Isso é uma coisa interessante. São professores brancos lá no Piauí, lá no Belém do Pará, trabalhando a questão do indígena, do negro.



*Da Agência Repórter Social

Autor

Redação revista Educação


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