NOTÍCIA
No primeiro texto de sua série inédita e exclusiva, o educador português José Pacheco fala sobre a relação do tempo com a infância.
Publicado em 10/09/2011
Na noite de passagem de ano, o Marcos desfolhava livros como quem lia. Melhor dizendo, o Marcos lia. E balbuciava uns sons só aparentemente desconexos. Eu, que estou longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundo uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir o seu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do palavrear adulto, deturpa o verbo virginal, confundindo-o com o linguarejar de adultos tagarelas.
Subitamente, o meu neto suspendeu a leitura e fixou o olhar num ponto qualquer, como quem depara com o Aleph. Fiquei a observá-lo, discretamente, para não interromper a absorvente contemplação. Segui a direcção do seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um tio que engolia uvas passas com um semblante demasiado concentrado para quem apenas está ingerindo alimento.
Não suspeitava o Marcos, mas estava sendo sujeito a aculturação, ao contemplar um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros que desejou não cometer no último dos dias do ano anterior. Os adultos são mesmo assim. Não tem remédio. Vivem viciados no futuro.
Por falar em futuro. Apesar da tenra idade do meu neto, já houve quem lhe dirigisse a pergunta sacramental:
o que queres ser, meu menino, quando fores grande
? O Marcos, que há-de ser autor de si, não respondeu, perguntou: o que é que eu quero que seja o que eu quero ser? E não foi por acaso que assim agiu. Ele sabia que já tinham perguntado o mesmo à mana Alice:
O que pensas ser, quando fores grande., minha menina?
Eu quero ser veterinária, minha senhora!
Então, vais ter de ir à escola, vais ter de estudar muito, minha menina.
E para que tenho eu de andar na escola, minha senhora?
– quis saber a Alice.
Porque é assim, minha menina. Os pequenos vão para a escola, os grandes vão trabalhar.
Bem!… Então, eu acho que já não quero ser grande
. – rematou a Alice.
Razão tinha Jesus, quando disse que
o homem velho não tardará a interrogar, ao longo dos seus dias, uma criança
. Qualquer criança sabe que o tempo não existe, que é mera invenção dos homens. O tempo não é mais que uma sucessão interminável de bateres de corações alimentados por gestos de ternura. Os seres humanos que são crianças crescidas renascem a todo o momento. Cada manhã é mais um pretexto para recomeçar.
Ritualizar o crepúsculo de cada dia, ou o primeiro segundo de um novo ano, tanto faz! Uma criança lendo um livro, ou uma criança mais crescida escutando uma suite de Bach, tanto faz! São gestos de todos os dias, que restituem aos dias que despontam ou cessam o suave mistério da vida sem tempo calculado. Talvez se vá por aí, até ao alcançar do dom da imortalidade, que os alquimistas, em vão, perseguiram, e que os poderosos nunca lograram comprar.
É simples penetrar a harmonia de um universo sem princípio nem fim. Basta reconhecer essa verdade indelével no sereno respirar de uma criança. Viver não é mais do que sorrir perante um calendário, compadecer-se da angústia dos que ainda crêem que é o tempo que passa. Muita infelicidade humana findará quando se desfizer o mito da existência de um tempo medido. Nada acaba, quando se acaba um ano. Quando um ramo seca, novo ramo germina, quando uma certeza tomba na arca das inutilidades, novas doutrinas, tão perecíveis como as perecidas, se esboçam, no rendilhado tecer das efémeras ciências. É durável somente o que faz sentido que se renove ou transforme em cada um dos nossos transitórios dias.
Do mesmo modo, n
enhum modelo educativo é perene – já cá faltava o falar de escola, não é?… – e, por essa razão, dou comigo formulando as mesmas perguntas de há vinte ou trinta anos, à semelhança do formular desejos acompanhados de uvas passas.
Por que razão o ano lectivo tem o seu início em Setembro? Por que não em Janeiro, em Fevereiro, em Dezembro?… Aprender (na escola ou longe dela) não será um processo contínuo, desejo e acto sem fronteiras seculares?
O que é um ano lectivo (do latim
lectione, “dar lição”, “leccionar”
)? Para quem, há muito se apercebeu de que o menos necessário nas escolas é o “leccionar”, que significado tem um “ano lectivo”? Nenhum. Por que razão há quem continue a desperdiçar o seu precioso tempo, transmitindo aos alunos o que está nos livros, e que cada aluno nos livros poderia ler, sem intermediário, num tempo próprio, que, como sabemos, difere dos tempos próprios de todos os outros? Será esse desperdiçado tempo o mesmo tempo idolatrado, em cada início de “ano civil”, e cronicamente reconhecido insuficiente para dar todo o programa, no final de cada “ano lectivo”?
Talvez porque um “ano lectivo” não tenha qualquer sentido, os professores assinalem o seu início, aprovando projectos – que são aspirações, desejos não acompanhados de uvas passas -, projectos que jamais serão postos em prática.