NOTÍCIA
Segundo pesquisador, as manifestações de indisciplina no âmbito da escola podem ser sinalizações de que os jovens almejam novas regras e maneiras de relacionar-se, mais flexíveis e próximas ao mundo contemporâneo
Poucos temas têm mobilizado tanto a atenção dos professores da Educação Básica como o da disciplina. O tema aparece frequentemente recolocado sob novas roupagens ou questões correlatas, como o bullying ou mesmo a violência física. A sensação, contudo, é que não há avanço, ou pior, há retrocesso. Para Joe Garcia, pesquisador e professor de Pós-Graduação da Universidade de Tuiuti, no Paraná, há uma combinação de mensagens antigas com expressões novas – e continua em pauta o que classifica de esvaziamento do papel da escola, tensões de convivência e uma crise moral. Na entrevista a seguir, concedida ao repórter Paulo de Camargo , Garcia, um dos conferencistas mais requisitados quando o assunto é indisciplina escolar e autor do livro Escritos sobre o currículo escolar (Editora Iglu, 2010), expõe suas ideias sobre o tema. Para ele, há avanços – entre eles, o fato de que a discussão rompeu os muros da escola. Segundo argumenta, o ambiente complexo das escolas de hoje está originando “um professor diferente, assim como outras crenças, outras rotinas, outras identidades”. Contudo, alerta, os educadores ainda precisam se abrir mais para as novas formas de diálogo do mundo contemporâneo. A questão da educação moral vem sendo recolocada nas escolas e na mídia nos últimos anos sob diferentes perspectivas. Já se focou a questão da indisciplina, da violência física e a bola da vez parece ser o bullying . Trata-se de algo novo ou apenas tiramos de debaixo do tapete questões antigas? A escola possui um “tapete” muito antigo e extenso. Sob ele, há muito a resolver. De todos os problemas ali guardados, o bullying veio à luz apenas há poucas décadas. É uma forma complexa de violência, que permaneceu muito tempo oculta em função do modo desatento como os educadores há séculos observam a relação entre alunos na escola. Já a indisciplina é um problema reconhecido pelos professores há muito mais tempo. Quando olhamos para todos esses problemas, sob uma perspectiva atual, vemos uma combinação de mensagens antigas sob expressões novas. A comunicação paralela em sala de aula através de gadgets modernos e o ciberbullying refletem, na verdade, velhas questões sobre o esvaziamento do papel da escola, apontam tensões de convivência e uma certa crise moral. Assim, entre as soluções atuais, está a educação moral, que é importante, mas pensar a indisciplina apenas sob essa perspectiva é desonerar outras fontes daquele problema.
A seu ver, estamos avançando em algum sentido?
Vejo diversos avanços. Talvez o mais evidente resida no aumento da percepção social sobre os problemas que ocorrem dentro dos muros da escola. A indisciplina hoje é um tema de interesse mundial e não mais um assunto de sala dos professores somente. Quanto ao diálogo nas escolas, também avançou. Há 50 anos, não seria possível debater com liberdade temas tais como sexualidade, política e drogas. Mas existem avanços a realizar. Sob diversos aspectos, a escola é um ambiente de interação defasado em relação às possibilidades de diálogo deste século. Olhemos, por exemplo, a sutil revolução que está ocorrendo nas redes sociais, em relação às quais a escola está ainda adormecida.
A questão da formação do professor é um impedimento para o avanço nessa compreensão mais ampla das relações humanas vividas nas escolas?
Nos currículos de formação inicial de professores, nas licenciaturas, há um certo silêncio em relação à questão da indisciplina e violência nas escolas. Nas universidades, não estamos preparando os futuros professores para alguns dos principais desafios da profissão. Parece persistir a crença de que docentes bem preparados são aqueles que dominam conteúdos e métodos de ensino. Em complemento, a formação continuada, em serviço, também apresenta viés. Um estudo publicado recentemente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelou que embora o número de dias anuais supostamente dedicados ao desenvolvimento profissional dos professores brasileiros seja compatível com o padrão das nações industrializadas, as estratégias mais exploradas são pouco efetivas para promover mudanças. É preciso alterar as práticas de formação. Enquanto isso, os professores, mesmo sabendo o que e como ensinar, nem sempre conseguem ser efetivos em sala de aula – o que requer também saber lidar com a indisciplina.
O senhor acredita em soluções que não incluam mudanças de postura de toda a escola? Ou, em outras palavras, a evolução nas questões ligadas à qualidade do convívio prospera, se forem iniciativas apenas do professor em sala de aula?
Tenho acompanhado pesquisas sobre essas questões em diversos países. As soluções mais promissoras seguem o que se poderia denominar de abordagem global ou ecológica, que compreende a escola como um todo. Ainda precisamos da força intelectual e moral dos professores, mas estes precisam atuar em uma escola onde exista uma visão compartilhada, uma cultura e ambiente que sustentem suas práticas pedagógicas, ou que as recuse quando não forem compatíveis com um projeto coletivo. Mas as abordagens globais também são interessantes pelo papel ativo que atribuem aos alunos na construção do ambiente de convivência na escola. Também estes precisam desejar e contribuir na construção de uma escola mais interessante para todos.
As questões que o senhor ouve dos professores em suas palestras vêm mudando ao longo do tempo?
Atuo em processos de formação de professores desde o início dos anos 1990. Guardei muitos registros de diálogos com professores e observei alguns fatos interessantes. Nestes 20 anos, constatei uma mudança na leitura dos problemas de indisciplina na escola, na direção de uma melhor crítica e consciência social. Hoje, parece menos complicado aos professores reconhecer e conversar sobre os problemas de convivência em suas salas de aula. Mas aquilo que mais se destaca em meus dados reside na transformação do conteúdo das queixas em relação ao tempo na profissão. Os professores mais experientes acumulam mais tempo de exposição a conflitos e isso parece influenciar a leitura que fazem dos alunos, da escola e de si mesmos. O ambiente atual das escolas, complexo e muitas vezes conflituoso, está originando um professor diferente, assim como outras crenças, outras rotinas, outras identidades.
No caso específico do bullying , não lhe parece mais uma dessas palavras mágicas que de repente parecem explicar tudo?
O termo bullying expressa um fenômeno complicado, uma categoria de violência capaz de afetar profundamente o ambiente e a aprendizagem escolar. É uma palavra mais trágica do que mágica! É muito interessante observar que o bullying foi “descoberto” nos países escandinavos, onde justamente se acreditava que a educação estava mais resolvida no final do século passado. Em paralelo à consciência sobre esse problema, veio a percepção de que não estávamos tão atentos à qualidade das relações humanas na escola. Mas a solução não reside em maior controle social, e sim em melhor coexistência. Outro aspecto interessante é que o bullying descreve um desequilíbrio nas rela
ções de poder. Parece iron
ia, mas esse fenômeno expressa uma mensagem clara sobre as relações em toda a sociedade do século passado.
Qual é a relação entre ambiente escolar e qualidade de ensino? Cuidar melhor da convivência não é também uma forma de melhorar a aprendizagem?
Desejamos, há séculos, melhorar o desempenho dos estudantes. Essa tarefa, no entanto, vai além de estimular avanços nas práticas de ensino. Há dois fatores principais a considerar que sustentam ou impedem a aprendizagem: a cultura e o clima da escola. Esses dois aspectos estão diretamente relacionados à qualidade da convivência. Alguns estudos sobre rendimento escolar e convivência na escola revelam que a aprendizagem em sala de aula decai em função da indisciplina, mesmo quando o desempenho dos professores é avaliado positivamente pelos alunos. Esse é o retrato do Brasil, segundo os dados do Pisa, na última década.
A TV e a internet têm algum papel nisso tudo? As relações virtuais levam a um enfraquecimento das relações humanas?
Há estudos que apontam a influência da mídia, incluindo a internet, como uma das principais causas indiretas de problemas de indisciplina nas escolas. A mídia claramente afeta não somente hábitos de consumo, mas a formação de valores e estilos de vida que se apresentam em sala de aula. Mas penso que ainda é cedo para entendermos toda a extensão das relações virtuais sobre o ambiente de aprendizagem na escola. E certamente não há apenas aspectos negativos a considerar. O fluxo de informações nas redes sociais torna possível uma percepção global sem precedentes. Isso pode mesmo levar a um fortalecimento da consciência e relações sociais, quando, por exemplo, as pessoas se engajam na luta por direitos humanos, na proteção do planeta ou em campanhas que tornam visíveis abusos e injustiças sociais.
Quais são os passos iniciais que o senhor sugere para educadores que vivem às voltas com os problemas da disciplina? O que é possível fazer já?
Gostaria de destacar duas ideias. Uma muito antiga e outra mais recente. No século 17, [o educador tcheco] Jan Amos Comenius escreveu que a disciplina na escola, embora necessária, não teria a força para inspirar os alunos a aprender. Seria a qualidade do ensino o elemento capaz de inspirar, ou não, os alunos. Penso que, sob essa abordagem, a indisciplina deveria ser interpretada mais como necessidade de avançar nas experiências de aprendizagem do que no controle do comportamento dos alunos. Essa é uma ideia antiga, mas ainda valiosa. Professores considerados bem-sucedidos em suas escolas me sugeriram que a indisciplina seria um modo de os alunos forçarem a escola na direção de uma abertura. A indisciplina refletiria a distância entre a forma pouco flexível e cheia de regras como eles aprendem na escola e o modo flexível e de regras mínimas como eles aprendem no mundo. Tais ideias sugerem a combinação de um currículo que seja fonte de inspiração, em uma escola que apresente regras mínimas para a aprendizagem.