NOTÍCIA
Presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita convoca a escola e a sociedade a pensar no incentivo à leitura para promover a emancipação do ser humano
Conhecida internacionalmente por suas ações de apoio à leitura, a Colômbia apresenta números expressivos no que diz respeito à sua rede de bibliotecas públicas. A teia nacional é formada por 19 bibliotecas, cinco centros de documentação e quatro áreas de gestão cultural, cobrindo 28 cidades. Na capital Bogotá, são 20 unidades fixas e uma móvel, o Bibliobús, que compõem a Red Capital de Bibliotecas Públicas de Bogotá (Bibliorede). Bibliotecária e educadora, a colombiana Silvia Castrillón participou ativamente do processo que instituiu esse sistema nacional de bibliotecas públicas. Presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura), Silvia acaba de lançar no Brasil o livro O direito de ler e de escrever (Editora Pulo do Gato). Em entrevista à repórter Ligia Sanchez, a autora levanta os pontos fracos do sistema de bibliotecas colombiano e afirma: “incentivar a leitura, por si só, não faz sentido”.
Qual a importância do incentivo à leitura na sociedade atual?
Pensar que é preciso incentivar a leitura é um lugar-comum. A maioria das pessoas que dizem isso não faz uma reflexão sobre o porquê e o para quê é preciso incentivá-la. O incentivo propicia possibilidades para o ser humano, como pessoa que está no mundo e intervém nele. Por exemplo, há quem defenda que as pessoas devem consumir mais livros. Esse não é meu interesse para incentivar a leitura. Há governantes que estão interessados na promoção da leitura porque, supostamente, ela forma cidadãos melhores. Mas quando analiso o que eles entendem por cidadania, não é o mesmo conceito que eu tenho. Eles querem cidadãos que não questionem e não coloquem em perigo a ordem estabelecida. Estou interessada no contrário: em pessoas que exerçam juízo crítico frente à ordem estabelecida. Que tenham condições, capacidade, que usem a escrita como uma ferramenta que lhes permita conhecer melhor essa ordem para poder intervir nela. Há outras pessoas que atribuem à leitura o poder de incrementar o rendimento escolar, o que as colocaria em melhores posições em rankings de avaliações internacionais. É preciso olhar, antes, como se mede esse rendimento escolar, quais são os fins de incrementá-lo. Incentivar a leitura, por si só, não tem sentido.
É possível medir o impacto da promoção da leitura?
Isso não se mede com número de livros lidos, nem com provas acadêmicas internacionais. Tampouco é possível medir a cidadania. Poderíamos ver se as taxas de violência diminuem, ou se aumentam as possibilidades de convivência entre os seres humanos, mas isso é muito difícil de mensurar. Acredito que essas transformações só se dão em longo prazo e com uma observação do tipo qualitativo sobre as práticas de leitura e, sobretudo, do imaginário sobre a leitura e a escrita.
Como está a situação da Colômbia em relação ao sistema de bibliotecas públicas e leitura?
O tema da formulação de políticas públicas de leitura vem sendo trabalhado há mais ou menos 15 anos por lá. A sociedade civil se organizou ao redor dele. Antes que muitos países pensassem em grandes bibliotecas escolares, a Colômbia investiu nelas. Mas não avançamos muito no que eu entendo por acesso à cultura escrita. É difícil ver os impactos em termos gerais. Vemos resultados em pequenos grupos, em turmas de jovens, em grupos de professores, que vão transformando suas práticas e seus imaginários sobre a leitura e a escrita. É muito difícil, porque esse trabalho vai na contramão do que a sociedade propõe (que o livro seja um objeto de consumo, que a leitura seja uma prática para a recreação). A sociedade pensa a leitura não para a emancipação dos seres humanos, mas para que eles se esqueçam dos problemas.
Como foi a participação da sociedade civil no processo de instituição do sistema de bibliotecas?
Nós, da Asolectura, iniciamos um processo nacional e local de organização de espaços para o debate sobre a necessidade da formulação das políticas públicas. Criaram-se conselhos municipais de leitura e escrita em algumas cidades do país, tanto pequenos povoados como grandes centros, em que se reuniam professores, bibliotecários, pessoas interessadas em pensar além. Fizemos cinco grandes encontros que produziram um documento, difundido amplamente, sobre a necessidade da formulação de políticas e sobre a necessidade da intervenção da sociedade civil neste processo. Não se tratava somente do que o Estado queria como leitura, mas também do que a sociedade acreditava que era necessário. Esses processos foram muito difíceis. Às vezes, aconteciam apenas em alguns locais, os grupos se formavam e logo se dissipavam e daí se perdia o trabalho.
A senhora diria que o sistema colombiano é bem-sucedido?
As bibliotecas são estupendas. Além disso, estão em todo o país, você chega a um município pequeno e tem biblioteca. Mas o fato é que a construção de tais bibliotecas, em edifícios grandes e belos, que fazem os prefeitos ganharem prêmios de arquitetura, não muda as coisas. Por exemplo, em algumas cidades, há bibliotecas maravilhosas, que quase não possuem livros. Lá, o mais importante são os computadores, você vê crianças jogando ou usando a internet, ou seja, são excelentes lan houses.
Como enfrentar o desafio de chegar às pessoas iletradas e, consequentemente, excluídas?
Fizemos um trabalho muito grande com pessoas excluídas que, antes de tudo, são excluídas pela pobreza. Está na moda falar de diversidade, grupos étnicos, mas creio que a primeira forma de exclusão é a pobreza. Claro que isso não quer dizer que não se reconhecem as lutas das minorias. Para chegar aos excluídos, é preciso desenvolver trabalhos muito pontuais, com grupos pequenos, e que devem ser feitos a partir da biblioteca e da escola, instituições que permitem chegar às famílias e trabalhar processos em longo prazo.
Quais estratégias a escola pode assumir no processo de incentivo à leitura?
A escola tem de lutar para que existam espaços de debate e de reflexão em seu interior sobre leitura. Acredito que a teoria precisa ser resgatada, para que a escola não use a leitura como moda, mas como instrumento de reflexão sobre a prática. Se eu fosse ministra da Educação, estipularia uma hora de leitura diária e de debates entre os professores, sobre textos teóricos e literários. Acredito que isso mudaria muito a visão que eles têm sobre a leitura. O problema é que os professores leem, e muito, mas em função de seu trabalho, não em função da vida. Então acabam não transmitindo um interesse pela leitura. Creio que é preciso introduzir, convidar os docentes a ler literatura e acompanhá-los nessas leituras.
Quais são os papéis das bibliotecas públicas, populares e escolares?
Deve haver diferenças. Entre as públicas e as populares, não necessariamente. Em geral, as bibliotecas populares surgem de uma iniciativa da comunidade. Qual é a ideia que o povo tem quando faz uma biblioteca? Não é a de que a biblioteca e a leitura são importantes, mas a de que se precisa de um lugar onde as crianças possam fazer suas tarefas escolares. As bibliotecas públicas costumam ser iniciativas do Estado. Mas como não há na sociedade uma ideia da necessidade e importância da leitura, elas acabam atuando como complemento da escola. Na Colômbia, cerca de 80% dessas bibliotecas são consultadas por estudantes, em função das tarefas escolares. Nos períodos de férias, não há o mesmo fluxo de frequentadores. Em geral, as bibliotecas estão abertas de acordo com os horários escolares e os bibliotecários estão adestrados para oferecer aos alunos o que os professores pedem de lição. Uma biblioteca pública deveria fazer uma programação de acordo com debates considerados importantes para a comunidade. Com isso, ir mostrando a importância que a leitura e a escrita podem ter para a comunidade, em função de seus interesses. Já a biblioteca escolar deve ser uma biblioteca no interior da escola, mas não uma biblioteca pública no interior da escola. Ela não pode ser um espaço diferente da sala de aula. A relação com a sala de aula é complementária e enlaçada.
Mas como garantir que essa relação se efetive na prática?
Em primeiro lugar, a biblioteca escolar deve ser um espaço onde as crianças que não têm livros em casa os encontrem ali. A biblioteca precisa ofertar livros de boa qualidade. E deve trabalhar de mãos dadas com a aula na formação de leitores – que, mais uma vez, são leitores para a vida, não para a escola. Ou seja, pessoas que possam fazer uso da cultura escrita para diversos fins, com diferentes possibilidades. Na prática, o que se costuma fazer é o contrário: a biblioteca serve para buscar informações ou para a leitura recreativa. Nenhuma dessas duas coisas é ler. Procurar informações é importante, mas a leitura permite a busca de sentido do ser humano, de seu lugar no mundo, de relações com os outros. A leitura não serve só para pensar o mundo, mas para mudá-lo. Pode-se dizer que “ler é um direito”, mas não ler também é um direito. Nestas palavras, há uma coisa escondida: a maioria das pessoas não rejeita a leitura conscientemente, mas são rejeitadas pela leitura. Há muitas razões para que se sintam excluídas.
No Brasil, temos o Plano Nacional do Livro e da Leitura. Há algo semelhante na Colômbia?
Sim, mas os planos nacionais, para mim, são em geral muito instrumentais. São planos que não pensam realmente o porquê e o para quê. Ou se pensam, o fazem em termos muito limitados, muito pragmáticos, apenas associados ao rendimento escolar ou à inserção em uma ordem estabelecida, ou seja, que as pessoas saibam como se comportar e como conviver com os demais.