NOTÍCIA
Pesquisadora alerta para a falta de apropriação escolar e de entendimento social em relação aos resultados de indicadores derivados de grandes avaliações sistêmicas
Estamos desenvolvendo avaliações com metodologias sofisticadas, do ponto de vista estatístico, mas que não estão dando respostas adequadas à sociedade sobre o desenvolvimento cognitivo dos alunos. Quem faz o alerta é a professora Bernadete Gatti, pesquisadora com grande experiência nas áreas de avaliação, formação docente e psicologia da educação que até o ano passado respondia pela superintendência de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Para a pesquisadora, que também é consultora do Inep e da Unesco, estamos produzindo números vazios, que não são apropriados pedagogicamente pelos docentes em suas práticas cotidianas. Leia, a seguir, a entrevista concedida a Rubem Barros, em que ela comenta diversos aspectos do uso das avaliações sistêmicas na educação brasileira.
Conseguimos ver melhor a educação brasileira agora, em função da introdução dos processos de avaliação nos anos 80/90?
Ver, a gente via. O que tínhamos eram outros nichos de pesquisa que mostravam que a formação dos nossos alunos na Educação Básica, em especial no ensino fundamental, não era satisfatória. O Saeb veio como uma ideia do Ministério da Educação para ter dados mais amplos, que pudessem ser usados como provocação nacional, aos pais, empresários, às escolas, aos secretários de educação, para que se preocupassem mais com a aprendizagem dos alunos. Essa foi a motivação inicial, já que pela lei quem responde pela Educação Básica são os estados e municípios, pois não temos um sistema nacional. Então o papel do MEC seria de oferecer informações para que uma mobilização na direção de melhorias.
Quando da implantação do Ideb, certos grupos sociais, como empresários, cobravam pela implantação de avaliações sistêmicas. Hoje, como os instrumentos da avaliação estão sendo apropriados por estados e municípios?
Não acho que tenha havido pressão social pela avaliação. Escolas, professores, no geral sempre houve uma cultura antiavaliação, embora sempre tivéssemos feito avaliação – e pesada – na sala de aula. Mas com relação à avaliação de sistemas, havia muita resistência. Tanto que nos anos 90 a ideia era implementar uma cultura de avaliação, torná-la aceitável como um projeto que viria alavancar os sistemas, as redes, no que diz respeito a melhorias pedagógicas, do desempenho
dos alunos, na formação docente. Não tínhamos uma cultura avaliativa. Ao contrário. Éramos reagentes a ela. Hoje somos menos, temos críticas. Até chegar ao Ideb, percorremos um caminho longo. O primeiro modelo do Saeb baseava-se na avaliação mais clássica, de testes de norma, em que havia uma prova, com alguns itens mais fáceis, outros mais difíceis, outros médios. Depois caminhamos para a adoção da Teoria da Resposta ao Item (TRI), no Saeb, em 1996/97, para dar subsídios ao planejamento educacional. Tanto que ele era amostral, e não universal. A universalização veio com a Prova Brasil,de 2005 em diante. A partir dela, veio a ideia de não ficar apenas no resultado do desempenho do aluno, mas de combinar fatores, como freqüência, evasão, aprovação, reprovação e construir um indicador um pouco mais complexo, o Ideb, de maneira que pudesse haver um valor compreensível para prefeitos, secretários municipais, estaduais, escolas. Hoje, o Ideb é um índice pregnante, as pessoas falam dele. Mas nem todos. Na universidade, por exemplo, há quem não tenha ideia do que seja.
Mas além do que se fala, ele é compreendido?
Minha opinião é que, com a avaliação, caímos numa numerologia que está se tornando vazia. Os resultados da Teoria da Resposta ao Item são traduzíveis numa escala – 120, 250 etc. – que não traz para as escolas e os professores uma informação facilmente compreensível. Por exemplo, um aluno que chega a uma escala 120 sabe escrever um bilhete, com algumas dificuldades da língua. Mas isso não quer dizer nada para o professor alfabetizador. O que está por trás disso? Qual o processo que está embutido nisso? A Teoria da Resposta ao Item – do jeito que a escala é feita, e a matriz é concebida – não dá esse tipo de resposta. Não foi feito para isso. É algo concebido para avaliar em tese, um traço latente de potencialidade de aprendizagem, o que o aluno sabe, que conteúdos ele domina. É um traço potencial. É muito difícil para as escolas compreenderem e de lidarem com esse indicador, mesmo transformando essa escala de 0 a 10 ou de 0 a 100, mais próxima da compreensão geral. Não é dito o que o aluno aprendeu. Diz-se que ele tem tais e tais habilidades.
É uma boa forma de medir?
Como há dificuldade de trabalhar com competências, passou-se a falar só em habilidades. Mas ninguém sabe exatamente o que são habilidades. Tenho muita dúvida sobre as habilidades definidas pelo MEC a partir da matriz que foi organizada. O que estão dizendo que são habilidades, do ponto de vista da psicologia cognitiva, não são habilidades. Temos aí um imbróglio. E não envolvemos especialistas da área de psicologia cognitiva, nem da educação na discussão das matrizes e na definição de competências ou habilidades, para analisar se os itens da matriz correspondem àquilo que se desenvolve na Educação Básica. Ou seja, não há uma análise pedagógica em profundidade, nem da matriz, nem de seus componentes e dos itens utilizados. As análises dos itens são análises estatísticas – se a curva corresponde ou não a um bom item. Mas a validade do item para conteúdos de ensino não é discutida. Essa avaliação tem uma certa fidedignidade, tem um rigor metodológico e estatístico, mas até que ponto é válida para as escolas, para compreender o desenvolvimento do aluno? Isso não foi e não está sendo discutido, estamos ficando com números vazios.
Não lhe parece que houve uma subida muita acentuada do Ideb em muito pouco tempo? É possível subir consistentemente esses índices num prazo de dois anos?
A maior parte da subida, até onde pude verificar, diz respeito à não evasão do aluno e à aprovação do aluno na escola, o que não diz se ele sabe ou não sabe. Se você instaura que, no primeiro ciclo, o aluno vai prosseguir, terá uma progressão de 100%, e isso aumenta muito a nota. Também não sabemos qual o tipo de itens eliminados na análise, para a composição da TRI, nem quais foram considerados, isso não é divulgado. Não sabemos quem decide isso, se é o estatístico que processa, que não creio que seja um bom decisor. Precisamos saber que itens são eliminados e por quê. Isso virou um mote político, de quantidades, com as pessoas ficando fascinadas pelo quantitativo. Outro problema: concordo que língua portuguesa é muito importante e todo mundo tem de ter domínio. Mas não sei se todo mundo tem de ter um domínio de excelência de matemática. Será que faz sentido selecionar português e matemática para compor o índice de desenvolvimento educacional?
Matemática? Não deve compor o índice? Por quê?
À medida que você sofistica o desenvolvimento da matemática nos anos subsequentes, muitos alunos não têm a motivação, o interesse, não é que eles não têm a habilidade cognitiva. Aquilo para eles pode parecer estéril, algo que a gente não leva em conta. Então por que escolher matemática, só porque o Pisa leva em conta? Talvez pudéssemos fazer isso de outra maneira, levando em conta o desenvolvimento em língua portuguesa e avaliar matemática em um ano, no outro ciências, num terceiro história e geografia. Teríamos outro panorama.
O fato de avaliarmos só português e matemática – e de as atenções se concentrarem nessas duas disciplinas por causa da prova -empobrece a experiência escolar?
É empobrecedor, mas o conhecimento da língua é importante. Não houve um esforço para fazer um estudo pedagógico sobre essas informações pelas escolas e pelos professores. O que assisto – e às vezes debato com 500, 600,800 professores – é que eles não estão nem aí, nem para o Saresp, nem para a Prova Brasil. Para eles, não tem significado. Não levam em conta os resultados dessas avaliações de sistema em suas atividades cotidianas. Onde existe uma atuação
mais integrada, como no Estado do Espírito Santo, que tem uma avaliação bem traduzida para as escolas e relativamente bem acompanhada, aparece uma outra forma de conceber avaliação, como instrumento para ajudar na sala de aula. Mas, no geral, as avaliações não têm impacto. Os professores não vão olhar a matriz. Essa ilusão aqui de São Paulo de que todo mundo tem computador e internet não é verdadeira. Eles não vão entrar no site do MEC, em especial aqueles que, a partir do 6º. ano, têm muitas turmas.
Não está faltando gestão dos órgãos competentes para fazer essas pontes?
Com certeza. Existe um problema de política educacional. Não temos uma política geral de educação no país. Temos programas, projetos, coisas fragmentárias e raros municípios e estados têm um plano de educação que integre essas avaliações. Alguns anos atrás, o professor Luís Carlos Freitas [da Unicamp] fez uma análise dizendo que pusemos o carro adiante dos bois, ou seja, em vez de implementar um currículo, fazer com que os professores conhecessem esse currículo, lidassem com ele e, depois de quatro ou cinco anos, avaliássemos o que estava acontecendo, invertemos essa ordem. Fizemos uma matriz teórica sobre habilidades e competências e queríamos que essa matriz dirigisse o currículo. É uma inversão. Não tivemos nenhuma ação direta para currículo – ou melhor, houve os parâmetros curriculares nacionais,
mas não houve tempo para implementação. Muda governo, para tudo, recomeça tudo, e não houve uma orientação curricular geral. As diretrizes curriculares são muito vagas. Por desespero, alguns estados resolveram fazer os seus currículos para orientar os professores, alguns municípios também. Resta que as avaliações correspondam a esses currículos. Estamos num mar de dados que são sinalizadores, mas que não estão fazendo sentido para a nação.
Com tantas avaliações externas, o professor não está sendo deixado de lado do processo educacional?
A aprendizagem vem no dia a dia, num processo próprio a cada local, cada escola, cada conjunto de alunos, com ritmo próprio. Essas avaliações gerais são pontuais. Deveriam ser mais para o gestor fazer programas de apoio ao professor e de desenvolvimento da aprendizagem, e não para culpabilizar o docente ou a escola, que é o que alguns estão fazendo. Não acho que não estamos evoluindo muito, crescendo em aprendizagem, não é isso. Mas o sistema é contraproducente. Vamos ver o lado do professor. Se pegarmos os currículos das licenciaturas, não há disciplina específica de avaliação. Na pedagogia, alguns poucos cursos têm. Quando você olha as ementas, o aluno não aprende as questões teóricas da avaliação, as implicações práticas, não estuda a questão da avaliação em sala – e ele terá de avaliar o aluno. Como não sabe avaliar, imita o que o outro faz, o que ele viveu, mas não tem uma concepção sobre como avaliar. E não aprende nada sobre avaliação de sistemas. Queremos que ele utilize algo que desconhece. É um descompasso, pois há sistemas sofisticados de avaliação e docentes que não têm uma formação mínima sobre avaliação.
O que seria essa formação mínima?
Em primeiro lugar, discutir a avaliação em sala de aula. O que sabemos de teorias e pesquisas que nos mostram aspectos importantes que deveriam ser levados em conta para construir a avaliação em sala de aula. Até coisas instrumentais: como fazer uma boa prova; como organizar um arquivo de itens que ele possa levar para vida inteira; dentro de uma perspectiva de construção de problemas, que tipo de pergunta ou problema deve propor. Se isso fosse compreendido, já seria um passo para entender os processos de avaliação mais amplos.
Poderia haver um tópico em que se discutissem avaliações de sistema, seus fundamentos, modelos. Se ele souber o que implica fazer uma avaliação em sala de aula, seja em processos, por provas, por portfólios, o que implica pensar uma avaliação da aprendizagem dos alunos, o que eles conseguiram compreender, entenderia melhor os grandes sistemas de avaliação. Mas não há reflexão ou metodologia sobre isso.
A Provinha Brasil tem sido vista por muitos educadores com bons olhos e mais utilizada por professores. O que ela tem de diferente?
É o tipo de item, mais ligado ao processo de aquisição da leitura e da escrita. Itens mais abertos. Mas tenho muitas dúvidas sobre a provinha. Nenhum país do mundo testa crianças antes dos nove anos. Não sei como a prova está sendo aplicada. A situação de teste é estressante. O professor fica estressado e estressa o aluno também. Já discuti isso, mas com economistas, estatísticos, e eles não entendem de criança. Nem dos próprios filhos, pois se olhassem mais para os filhos veriam que aí há uma questão. Então não acho a Provinha Brasil uma boa coisa do ponto de vista psicológico-afetivo da criança. Tenho dúvidas do ponto de vista da aplicação, se tem validade, não sei quanta interferência tem havido
Hoje, fala-se muito sobre competências e habilidades, como se fossem coisas dissociadas do conhecimento. O que isso revela sobre o atual olhar educacional?
Nós, brasileiros, somos muito de slogans que se tornam vazios. Um dos slogans de que nos apropriamos é a avaliação de habilidades e competências. Lá fora, vemos uma fala diferente. Quando falam de habilidades, isso está intimamente associado a conteúdos de conhecimentos de diversas naturezas. Aqui, fala-se como se fossem coisas independentes. Como é que posso falar de habilidades e competências se não tenho determinados conteúdos quando avalio a aprendizagem escolar? Isso não é uma caixa vazia. Há conteúdos de diversas naturezas que têm um significado social. Não dá para falar em competência sem falar em conteúdos. A competência é uma condição em que você está diante de uma situação-problema que evoca vários conhecimentos e pede uma solução. É preciso ter uma competência para aquilo, que reúne várias habilidades. Não há habilidade que não seja dirigida por um conhecimento adquirido. Não podemos, de maneira nenhuma, desprezar os conteúdos. Há muita discussão na área da pedagogia, por ingenuidade, ou por adesismo aos modismos. Temos na nossa cultura um problemão, já analisado por psicólogos sociais interessantes, que mostra que o brasileiro não só é messiânico como também adere a determinados mitos sem questionar o que está por trás deles. Temos aí um mito, o mito das competências e das habilidades, que acaba deixando de ter um significado real.
O que elas envolvem?
Conhecimentos básicos – de língua, de interpretação de texto – que se adquirem na escola. Na vida também, só que na vida há uma aprendizagem desordenada, que não é canalizada para determinadas formas de pensamento, de raciocínio. A escola tem esse papel, de organizar, de dirigir o pensamento, de ajudar o desenvolvimento lógico do pensamento. Inclusive para domínio de uma linguagem que permita comunicar-se com sentido, transitar no mundo do trabalho, do conhecimento científico, senão ficamos com uma linguagem caótica, de significados muito limitados, e que às vezes impede o desenvolvimento da pessoa. Os conteúdos fazem com que fiquemos com o cérebro em pé. O conteúdo faz com que eu saiba em que país vivo, saiba um pouco de sua história, para poder me situar como sujeito. São conhecimentos históricos, culturais, sociais que estão sistematizados e que ajudam a compreender a minha situação de cidadão. Caso contrário, ficamos com informações fragmentárias, que não permitem que nos situemos como cidadãos e como pessoas.
Isso influencia outras áreas?
Na saúde pública, por exemplo. O pessoal que trabalha com saúde preventiva mostra que muitos dos problemas nessa área vêm da falta de conhecimento. Isso se traduz ao beber água de rios, no não haver conhecimentos sobre bactérias, ou em como coexistimos com elas no meio ambiente. Tudo isso vem da escola. Começo a me prevenir contra determinadas infecções, por exemplo, se souber que elas vêm de um bichinho, às vezes unicelular, que pode me contaminar num espirro, numa conversa. A dificuldade para o controle da dengue vem, em grande parte, do fato de não haver informação suficiente para as pessoas compreenderem como o mosquito se transmite e reproduz. E não adianta fazer grandes propagandas, pois falta o conhecimento básico para a pessoa interpretar o que está sendo dito. A escola é que dá esse conhecimento básico. Não podemos desprezar os conteúdos, eles nos ajudam na preservação da vida. A educação tem esse papel de preservar a vida a partir de conteúdos básicos que são conteúdos das ciências. Esse desprezo pelos conteúdos é deletério. Não falo de um conhecimento decorado, mas daquele que você relaciona com as coisas da vida. Na matemática isso ficaria mais difícil? Nem tanto, pois uma casa não para em pé se não tiver certas condições de uma estrutura matemática. É que os professores não têm essa formação interativa, esse é um aspecto que precisaríamos trabalhar. Mas não é possível desenvolver cidadãos sem que eles adquiram informações e conhecimentos selecionados para que tenham bases de decisão na vida.
E como isso poderia ser mensurado numa avaliação como a Prova Brasil?
Começaria pelo outro lado: primeiro, ele precisa ser ensinado, ou seja, precisamos definir um currículo básico nacional. A França, a Dinamarca, a Suécia, o Japão, a China, a Argentina, o Paraguai, todos têm um currículo definido e conhecido. É preciso estabelecer que, na Educação Básica, gostaríamos que tais e tais aspectos do conhecimento humano fossem abordados em tais e tais etapas. Não precisa ser ano a ano, semestre a semestre, bimestre a bimestre.
Não existe um medo injustificado de que um currículo tolha o professor a ponto de dirigir sua aula minuto a minuto?
Isso é um discurso de sindicato. Essa é uma visão partidária, e não uma visão de educação pública. Se você pegar os outros professores, eles não têm esse discurso, gostam do currículo. No Paraná, eles adoram a orientação curricular que têm. Em Curitiba, há uma orientação curricular muito clara, feita a partir da rede, e os professores adoram porque têm um guia mínimo. Podem criar, nada os impede. Dão-se exemplos, dão-se orientações. Depois que o professor fechou a porta, você não sabe o que ele está fazendo lá dentro. Mas uma orientação curricular clara é outra coisa. A Suécia, por exemplo, adota um tipo de livro e todos os professores usam aquele livro. Mas o como usar aquele conhecimento que está ali, ele cria na sala de aula. Há N maneiras de ensinar fração para uma criança. Não sei qual é a melhor, a pesquisa não mostra isso. A melhor é sempre ideológica, um grupo que acha que é assim, outro assado.
Aí caímos na questão da formação. Em tese, o professor deveria conhecer todas as estratégias para aplicar a mais adequada a uma determinada situação, não?
É isso. Mas aqui ele não tem isso. Em Cuba tem. Lá, a formação de professores é bem cuidada, mas há um diferencial. Eles têm o professor polivalente até o que seria o nosso 9º ano. Um professor dá matemática e ciências, ou várias línguas. Houve uma reforma em 2000, e avaliou-se que naquela etapa os especialistas não estavam funcionando. Passou a haver só no ensino médio. Mas os professores são bem formados tanto no conhecimento que têm de transmitir como nas didáticas necessárias para transmiti-lo. Temos vários caminhos para isso, não um só. Um só é adesão a um modelo teórico. Deveríamos, primeiro, cuidar para que as diretrizes curriculares não fossem vagas, que tivéssemos orientação curricular que permitisse aos estados e municípios balizarem seus professores. Alguns estados agora têm – e são muito semelhantes. Os fundamentos podem ser diferentes, mas o que tem de ser ensinado de 1a. a 4a. série é muito semelhante. O diferencial começa daí em diante, quando o aluno já dominou essas questões básicas.
Qual sua opinião sobre o exame nacional para contratação de professores que o MEC está propondo? O princípio é correto?
Está sendo oferecido com adesão voluntária e com a ideia de ter um banco de itens, para que municípios que não tenham condições de contratar uma boa instituição para fazer a seleção de seus docentes possam solicitá-los ao Inep. Hoje, ninguém sabe qual o processo de seleção nos municípios. Em algumas cidades maiores, como Campinas ou João Pessoa, sabemos que há um concurso com X características. E não são bons, pois [nós, da Fundação Carlos Chagas] analisamos esses concursos.
Não são bons por quê?
Porque têm itens mal feitos, comprometidos, que não abarcam o conhecimento necessário para a escola. Em geral são itens teóricos, que não contemplam aspectos de didática, de metodologia de ensino, são provas que não têm muita validade. Aqui em São Paulo temos um pouco mais de cuidado com as provas. Mesmo assim são provas mais teóricas e com muita legislação. Mas não é a lei que vai orientar o professor em seu trabalho na escola, conhecer leis não faz um bom professor. Então os concursos têm problemas, sim. A idéia do MEC é chegar nos conteúdos. São oito eixos, com conteúdos definidos. E essa oferta aos municípios me parece interesse, pois aqueles pequenos, do interior do país, terão uma prova um pouco mais gabaritada para usar. E poderão fazer um outro exame para complementar. Pode ser interessante. E também como um diagnóstico sobre como os alunos estão saindo das licenciaturas. Se bem que já sabemos que há instituições atrás dessa prova para preparar os seus alunos.
E isso é ruim?
Pode até ter um efeito bom, pois se os eixos estiverem bem definidos, e as faculdades trabalharem esses eixos, vamos melhorar alguma coisa. Vamos dar um tempo de uso, de forma voluntária, para feedback, diagnóstico, para auxiliar municípios ou estados que não têm condição de fazer uma boa prova de seleção para suas redes. E depois vemos se é o caso de manter o exame.
E a avaliação dos docentes?
Depende do que seja isso. Estou analisando as carreiras dos estados e dos grandes municípios. A avaliação de desempenho está prevista na maioria dos estados, de diferentes formas. Há estados que aplicam provas de mérito, como São Paulo e Paraná. Outros estão fazendo autoavaliação e avaliação por comissões, compostas de pares e de pessoas de hierarquia imediatamente superior. Minas Gerais tem um sistema interessante, com avaliação de pares, depois a avaliação verificada por uma instância intermediária e, depois de fechado o processo entre os docentes, com itens sobre compromisso, empenho etc. Após esse resultado, há uma análise de um membro do sindicato também. Isso foi resultado de um acordo e o processo é utilizado para a progressão na carreira. É diferente, tem problemas, especialmente num estado tão grande como Minas Gerais, mas esse tipo de avaliação vem sendo testado faz algum tempo. A ideia de São Paulo é de avanço por conhecimento, para que se possa dar saltos na carreira mediante a realização de uma prova voluntária. O problema é que só os 20% superiores da curva teriam direito a isso. E o que é essa prova? Ninguém sabe o efeito disso, nem aqui nem lá fora. No ano passado foi uma prova teórica, com uma bibliografia prévia, para ver se o professor se interessou por avançar em seus conhecimentos, seja da sua disciplina ou pedagógicos, ou mesmo sobre pesquisas. É uma prova de lápis e papel, com itens de múltipla escolha. Não sei se realmente dimensiona conhecimento. De qualquer maneira, pelo menos sinaliza que o professor está lendo e compreendendo alguma coisa. A proposta que está sendo discutida entre secretaria e sindicatos é de fixar um ponto de corte para que todos que o atinjam tenham a progressão.
Caso contrário é frustrante?
Vi professores e supervisores que tiraram 8,1, ou 8,3 e estavam fora dos 20%, que ficaram muito lá em cima. E aí vem a frustração. Deveria se permitir que essa prova fosse mais aderente às atividades escolares – esse é um problema já discutido, eu mesma sugeri que incorporasse itens de simulação de sala de aula. Agora não sabemos se isso causa impacto positivo ou não. É uma coisa muito nova, do ponto de vista de pesquisa. Daqui a uns quatro anos poderemos fazer um estudo e ver o que isso está ocasionando.
Há experiências similares em outros países?
A Argentina faz prova obrigatória de cinco em cinco anos. Quem não passar na prova não fica na rede. A Irlanda tem um sistema de prova de três em três anos, prova de conhecimento específico. O professor de matemática tem de evoluir, saber o que foi feito, publicado. O sistema francês não tem uma avaliação de docente, mas a avaliação de entrada é muito pesada. Quem entra, faz uma segunda prova dali a três anos, com uma avaliação de desempenho com observador em sala de aula. Você só fica na rede se mostrar que aprendeu a ensinar e que domina os conhecimentos.
Mas há resistência em muitos lugares…
Muita. Às vezes, não se lida com isso em prol das pessoas. Acho, por exemplo, que se essa prova de progressão por mérito se mantiver – uma progressão vertical que dá um bom salto no salário – os que não foram aprovados deveriam receber um feedback sobre os erros cometidos, os problemas que tiveram. Ou seja, um uso pedagógico, e não simplesmente passou ou não passou. Isso é tudo muito duvidoso. O que sabemos é que temos um problema que precisa ser contornado. O grande problema é a formação inicial. Se ela é bem feita, você vai aprendendo o resto durante a carreira, com colegas, na educação continuada. E a educação continuada tem de ser isso mesmo, e não uma educação supletiva, como é hoje. Mas a avaliação ainda é usada de uma forma punitiva.
Muito do que foi apregoado em termos de responsabilização nos Estados Unidos está sendo revertido depois da constatação de fraudes, de não evolução.
Prefiro uma avaliação na escola. Conseguir ter um modelo em que você vai com uma comissão de avaliação em algumas escolas e avalia o professor in loco, no seu trabalho, conversa com o diretor, com os alunos, com os professores, é mais producente. Em Minas Gerais, por exemplo, a conclusão da avaliação são recomendações. No Paraná também, e o Estado assume a responsabilidade de atender a necessidade de grupos de professores, a partir da autoavaliação e da avaliação de pares. Constatada uma determinada necessidade – precisamos trabalhar o conhecimento dos professores para trabalhar com trigonometria, logaritmos etc. – monta-se uma formação para isso, a partir da avaliação, que se torna um levantamento de necessidades, com uma resposta. Não ter resposta é complicado. Essa avaliação em processo é mais cara, mas não é impossível. Em São Paulo, por exemplo, na estrutura das diretorias de ensino, há os supervisores, os ATPs, poderia se montar um pequeno grupo, que seria formado para esse tipo de avaliação. Poderiam desenvolver essa formação com coordenadores pedagógicos e diretores de escola. Os professores poderiam ir aprendendo com isso, na medida em que participassem de comissões de avaliação.
Qual sua opinião sobre a remuneração de desempenho?
As pesquisas internacionais não nos dão certezas sobre seus resultados, há controvérsias. A pesquisa de impacto, aliás, é muito difícil de ser feita, pois a realidade é complexa e vários fatores interagem. Então não há muita certeza sobre o impacto. Mas, em visitas, vejo que gostam do bônus, pois não é para o professor, e sim para escolas. Mas há um problema aí: as escolas que atingem um grau alto de desenvolvimento nas suas metas não irão mais crescer tanto. O bônus deveria ser dado para quem mantém a meta também, pois aí você divide com todo mundo, a faxineira, a merendeira, com os professores. Não é um prêmio para o professor. Ele deve ser focado na escola como um todo e levar em conta vários fatores, deve incluir a condição socioeconômica da região, ponderar. Isso leva a uma mudança substantiva na condição do bônus. Enquanto ele for coletivo, pode ter um efeito interessante de prêmio para quem se esforçou. Não é dado por um desempenho X, e sim para quem cresceu, pois qualquer crescimento é importante.
E como princípio?
Acho que está sendo bem aceito, mas seria bom se não precisássemos disso do ponto de vista dos princípios do educador. Se você tivesse um salário inicial alto e depois um crescimento menor. Se já começássemos de um patamar maior, o professor já começaria mais estimulado. Ele se sentiria recompensado e você poderia trabalhar por meio de uma avaliação de desempenho processual, com feedback, não punitiva. Nesse sentido, o bônus não seria uma boa, mas precisaríamos equacionar a questão do salário, pois o bônus virou um 14º salário.