NOTÍCIA
Diagnóstico precário do transtorno de déficit de atenção em crianças pode levar à prescrição de medicamentos que nem sempre são necessários
Ao final do ano letivo, uma aluna do colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (RJ), apresentava problemas de socialização – seu comportamento era considerado “fora do padrão para a idade” – e baixo desempenho escolar. A psicóloga da escola, Kátia Faissol, pediu aos pais que encaminhassem a menina a um psiquiatra. Após a consulta de apenas 20 minutos, veio o diagnóstico: a criança tinha Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “Fiquei surpresa, mas a única coisa que pude fazer foi informar que é preciso mais tempo para se obter uma avaliação precisa”, diz.
O episódio não foi o único detectado pela psicóloga. Desde que assumiu o posto na escola em 1986, Kátia percebeu um aumento progressivo no número de alunos que chegavam com o diagnóstico da doença. Na prática, esse movimento está ligado a outro: o excesso de “medicalização” das crianças. Para alguns profissionais da saúde e da psicologia, há excesso de prescrições de metilfenidato (ou ritalina, seu nome comercial), substância usada no tratamento do TDAH. O alerta é que o medicamento pode ter como efeitos colaterais a insônia, a diminuição de apetite, a irritabilidade e, em longo prazo, a dependência.
Considerado uma das principais doenças que causam distúrbios de aprendizagem, o TDAH atinge de 3% a 5% da população mundial, segundo estimativas da comunidade médica. No Brasil, um levantamento realizado pelo Instituto Glia em maio deste ano apontou que 4,4% de 5.961 brasileiros entre 4 e 18 anos eram afetados pelo transtorno. As estatísticas sobre o TDAH são escassas porque o próprio diagnóstico é objeto de contestação entre os médicos. A doença pode existir em três combinações, cada uma com sintomas diferentes: no primeiro há um predomínio da inatenção; no segundo, o aspecto hiperativo-impulsivo e o terceiro é uma combinação de ambos, sendo esse o mais comum. O transtorno atinge mais meninos do que meninas.
A neuropsicóloga Nádia Bossa explica que o TDAH não significa a incapacidade de prestar atenção. Ele é caracterizado principalmente pela falta de sincronia entre a atenção concentrada e difusa. Dessa maneira, a criança às vezes não consegue focar nada que acontece ao seu redor, ou em alguma atividade. Outra situação possível: a concentração é tanta que ela se desliga do que acontece ao seu lado. “Há pais e professores que se confundem. Acham que a criança não responde porque não quer. Isso é um sintoma da doença”, comenta.
Diagnóstico
O problema começa na ausência de exames laboratoriais que comprovem se uma pessoa possui ou não o transtorno. O diagnóstico é feito por meio de questionários e consultas clínicas com um médico especialista. Para tanto, utilizam-se como base dois documentos: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – IV (DSM-IV) e a Classificação Internacional de Doenças – 10 (CID-10). Apesar de o segundo ser mais usado no Brasil, ambos trazem uma série de sintomas típicos do transtorno. Caso a pessoa apresente uma série deles, ela pode ser diagnosticada com a doença.
No entanto, há um consenso de que nem o DSM-4 ou o CID-10 são precisos e não podem ser a única forma de avaliação. O psiquiatra e psicoterapeuta infantil Wagner Ranña diz que o diagnóstico de TDAH exige uma investigação do contexto familiar e até mesmo da metodologia escolar para observar a razão dos sintomas, o que costuma levar tempo. “A aplicação de um único teste e o diagnóstico baseado neste resultado não condizem com a realidade do transtorno, que tem um conceito bastante complicado”, explica. Guilherme Polanczyk, psiquiatra e professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que os manuais devem servir para nortear a prática. “Eles têm lacunas. Muitas vezes atendo pessoas que não preenchem exatamente o que está escrito, mas claramente precisam de ajuda”, conta.
Medicamentos à venda
Paralela ao diagnóstico precário está a questão da medicalização excessiva das crianças. Os estudos relacionados ao uso de metilfenidato não são consensuais e há poucos dados concretos sobre a venda do remédio no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum), em 2000 foram vendidas 71 mil caixas de medicamentos que têm o metilfenidato como princípio ativo. Em 2008 as vendas chegaram a 1,14 milhão, o que significa um aumento de 1.616%.
Os números são confirmados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, não é possível estabelecer com precisão o quanto está sendo utilizado para tratar crianças e adolescentes com TDAH, já que os remédios também são usados para outras doenças. Um documento publicado em 2009 pela Anvisa sobre dados obtidos pelo Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) aponta que a grande preocupação não é em relação ao tratamento de TDAH, mas o “mau uso” da substância, especialmente para a melhoria do desempenho cognitivo. Um exemplo: alunos que prestarão vestibular e tomam o remédio para ajudar na concentração. De acordo com a pesquisa “Tratamento para TDAH na América Latina e Caribe”, realizada em 2008 por Guilherme Polanczyk e outros médicos, estima-se que cerca de 10% da população que sofre do transtorno é medicada. O levantamento do Instituto Glia verificou que das pessoas diagnosticadas, 13% eram medicadas, enquanto 1,5% tomava o remédio sem ter necessidade.
Quézia Bombonatto, da ABPp: “não se pode parar ou proibir o remédio com base em casos de má prática” |
Exageros
Para Maria Aparecida Moyses, professora de pediatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nenhuma criança precisa do remédio para se tratar – a terapia é suficiente, além de orientações para a família e educadores. Ela afirma que o abuso se deve a uma pressão da indústria farmacêutica para a venda do medicamento e, muitas vezes, também por negligência dos pais.
Maria Aparecida lembra que o ritmo das crianças de hoje é acelerado, e não pode ser confundido com algum transtorno. “Só que pais, a escola, não aceitam essas mudanças”, critica. Opinião semelhante tem Wagner Ranña, para quem o tratamento da TDAH deve priorizar a psicoterapia – o medicamento deve ser o último recurso. Porém, ele assume que, quando o contexto social e familiar da criança é complicado, a única saída é prescrever o remédio. “Mas se for para o Estado gastar dinheiro, é melhor ampliar a rede de profissionais especializados do que comprar remédios. Os resultados serão bem mais favoráveis”, conclui.
Mais cautelosa, a psicopedagoga Quézia Bombonatto, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), diz que a maioria das pessoas que trabalham com TDAH são os responsáveis pelos abusos. Para ela, os médicos que abusam das prescrições não podem servir para generalizar a qualidade do atendimento. “Uma criança mal diagnosticada pode sofrer tanto quanto uma não diagnosticada. Não se pode parar ou proibir o remédio com base em casos de má prática”, completa. Ela lembra que, em muitas situações, a melhora é reconhecida pelos próprios pacientes e sempre há a possibilidade de suspender o remédio prescrito, se o médico percebe que ele não está trazendo os efeitos desejados.
Educadores: orientações básicas
Para quem trabalha no cotidiano escolar, ter um aluno em sala de aula com TDAH significa dar uma atenção especial e um tratamento diferenciado que exige uma dose de esforço extra do educador. A psicopedagoga Quézia Bombonatto explica que é preciso sempre tentar deixar a criança ocupada. “Pedir para buscar algo na secretaria, apagar o quadro, pequenas atividades que o ajudem a gastar energia”, exemplifica. Outras orientações que os especialistas costumam passar aos professores para aumentar o rendimento do aluno é planejar onde ele irá sentar, algumas vezes perto do professor e longe de janelas. Além disso, ela sugere colocar lembretes em agendas ou cadernos, fazer provas em locais separados, recapitular frequentemente o que acabou de ser discutido e manter a sala com menos apelos visuais, como posteres e quadro de avisos.
Para informar os profissionais da educação sobre os diferentes transtornos de aprendizado e ajudá-los a identificar o melhor encaminhamento, algumas instituições realizam cursos voltados para a área. A ABPp é um exemplo. Ela certifica um curso a distância chamado “EAD – Transtornos de Aprendizagem”, no qual o aluno tem acesso a testes, leituras obrigatórias e textos sugeridos sobre o assunto. O Instituto Paulista de Déficit de Atenção (IPDA) também oferece um curso on-line especificamente para professores, em que aborda sintomas comuns dos transtornos e manejo comportamental em sala de aula.