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Publicado em 30/11/2011

O nó sem fio

Encontro internacional mostra presença cada vez maior do universo virtual na educação, mas ainda sem apontar um caminho de superação pedagógica

Os símbolos da contemporaneidade estão todos presentes. Do cenário moderno e grandioso – o pavilhão seis da Feira de Madri, parte de um complexo de 14 unidades que abriga eventos os mais variados – aos cerca de 1,5 mil participantes do encontro, em sua imensa maioria munidos de tablets, laptops, smartphones e tudo mais que os faça estar permanentemente conectados à internet. No palco, a apresentadora reforça com palavras e gestos elegantes a importância da tecnologia, enaltecendo o que batiza de “atitude 2.0”, mote do VI Encontro Internacional EducaRed 2011, da Fundação Telefônica, cuja etapa presencial, ocorrida entre os dias 20 e 22 de setembro na capital espanhola, foi o desfecho de três meses de debates e discussões que o antecederam no plano virtual. A “atitude 2.0” está vinculada aos ideais de compartilhamento do conhecimento, interatividade e valorização da experiência e de relações mais horizontais, princípios que seriam os pilares de uma repaginação da educação. Ancorados, por supuesto, na tecnologia.

Divulgação
Participantes do Encontro Internacional EducaRed 2011, realizado em Madri

E, ao longo dos três dias, não faltaram exemplos de usos de aparatos e recursos tecnológicos em contextos educativos. Realidade aumentada, geolocalização com GPS, jogos virtuais, plataformas colaborativas, entre muitos outros. Uns com bons resultados pedagógicos, outros ainda muito incipientes para qualquer tipo de conclusão.

Mas, nas sessões em que se aprofundaram os debates dos problemas educacionais, a tecnologia ficou longe  de ser vista como tábua de salvação da educação, até mesmo pelos seus defensores mais entusiastas. A começar por algumas das constatações aferidas pelo informe Las TIC en la Educación – Realidad y expectativas (As TICs na Educação – Realidade e expectativas), que ouviu 1.304 professores de escolas públicas e privadas das 17 comunidades autônomas espanholas. A pesquisa, levada a cabo pela Fundação Telefônica, apontou que a rejeição dos docentes às novas tecnologias diminuiu sensivelmente, que seu uso em tarefas administrativas é muito bem visto, mas mostra, também, que não houve mudanças significativas nas práticas pedagógicas, que estas estão desconectadas das necessidades do alunado e que os professores não estão convencidos da utilidade pedagógica das TICs.

O jeito de sempre
Albert Sangrà, diretor do ELearn Center da Universidade Aberta da Catalunha (UAC), acredita que a tecnologia tem sido usada para fazer mais do mesmo, “dar as mesmas aulas expositivas de antes”. Para reverter essas práticas, acredita que a saída é formar os professores para o uso da tecnologia, não sem antes questionar para quê formá-los. “Devemos formar professores para atuar em espaços expandidos de aprendizagem, capazes de criar e gerir novas ecologias de aprendizagem, promover a geração conjunta do conhecimento.”

O comportamento apegado às velhas práticas pedagógicas – apontam tanto a pesquisa apresentada no evento quanto a intervenção de vários dos docentes nos debates – estaria vinculado ao currículo obrigatório. Na rodada de debates batizada “Currículo por conteúdos ou por inteligências”, enquanto um docente pedia o microfone para decretar que “o currículo não serve para nada”, outro vaticinava via Twitter: “o currículo é a desculpa para não inovar”. Poucos minutos antes, o chefe de cozinha Ferran Adrià, na conferência inaugural do encontro, sintetizava seu olhar sobre a questão, ao responder à pergunta que ele mesmo fizera (Pode-se ensinar a criatividade?): pode-se ensinar a pensar melhor. O importante é criar o conceito de algo, muitas coisas já existiam, mas ganharam peso quando alguém as sistematizou por meio de um conceito.

Símbolo da crise
A oposição entre a existência de currículos e a introdução de elementos inovadores, capazes de criar sentido nas práticas educativas, deu o tom de muitos dos debates e dilemas levantados ao longo do evento. Como a maioria das pessoas que lida com educação já constata há tempos, a escola, principalmente no nível médio, atravessa uma enorme crise de sentido, decorrente não só de si própria, mas das dinâmicas sociais, que mudaram substantivamente valores e velocidades na vida contemporânea.

Na discussão sobre conteúdos e inteligências, ancorada no conceito do psicólogo cognitivo americano Howard Gardner de inteligências múltiplas e o uso derivado das ideias de habilidades e competências, muitos docentes relataram dificuldades de lidar com a cobrança das famílias. Uma professora disse que a escola não se renovará sem o apoio explícito das famílias e das autoridades administrativas; outro reclamou de pais que enchem a agenda dos filhos e creem que não há ensinamentos quando a escola trabalha a partir do conceito de inteligências múltiplas; um terceiro, mais enfático, preferiu interditar o direito das famílias ao debate cotidiano: “eles não entendem de educação, e têm de admitir que somos nós, professores, que entendemos”.

O currículo, ao que parece, inchou-se em demasia, seja na Europa ou no Brasil. Pudera. Desde que a escola se constituiu como elemento social de introdução de crianças e jovens no corpo da sociedade, preparando-os para a vida no estado democrático (às vezes nem tanto) e para o acesso ao universo cultural gerado pelo homem ao longo dos séculos, os conhecimentos produzidos aumentaram exponencialmente. Mais do que isso, foram se fragmentando mais e mais, com a criação de inúmeras especialidades, a muitas das quais pouca gente tem acesso, dado o refinamento de saberes exigido para isso. Nesse processo, a escola parece desnorteada acerca do que é ou não significativo para o  processo formativo dos estudantes. E tampouco há certezas metodológicas sobre como trabalhar, ou que situem os docentes sobre seu papel. 

Ana Ruiz, professora de língua espanhola da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Autônoma de Madri que há sete anos dá aulas para estrangeiros no contexto do Processo de Bolonha, vê a necessidade de a introdução das novas tecnologias ser acompanhada do contato direto entre professores e docentes em formação. “A maioria da formação é on-line, precisamos de mais ensino presencial. Não podemos cair no ritmo das empresas, temos de ter um modelo de formação desenhado por educadores.”

Para a professora, a própria experiência do Processo de Bolonha – acordo multilateral firmado em 1999 entre países da Comunidade Europeia que prevê a livre circulação de estudantes nas universidades de diversos países e um currículo em tese mais flexível – demanda ajustes.

O currículo
“Depois de anos de implantação, notam-se fraquezas no processo. De um lado, houve uma grande burocratização do ensino e da vida do aluno; de outro, faltam investimentos em recursos”, diz. Muito da burocratização diz respeito à necessidade de alinhar os currículos para que as disciplinas cursadas e os diplomas possam ser aceitos em todos os países participantes. “Mas isso não quer dizer que toda a Europa deve ensinar a mesma coisa. A diferença é um valor e cada país tem muito o que aportar a partir de suas especificidades”, conclui.

Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco e um dos criadores da Olimpíada de Jogos Digitais e Educação (OJE), projeto apresentado em Madri, Luciano Meira crê que a escola atual é um jogo discursivo desbalanceado, com fatos em excesso e pouca ou nenhuma interação inteligente entre eles. “Falta uma engenharia didática que diminua o número de fatos e aumente o número de problemas. Não há por que ensinar monômios e polinômios, mas álgebra é importantíssima”, exemplifica.

Assim, o currículo deveria sofrer uma drástica redução, passando a girar em torno de grandes temas e problemas que fizessem os alunos pensar e pesquisar, tudo isso amarrado por narrativas que dessem “sentido de propósito” às atividades e orientassem temporalmente a trajetória do que se produz.  “Sem narrativas, não há como inserir o sujeito na cultura”, defende.

Na visão do psicólogo brasileiro, a escola atual padece de uma estagnação cognitiva, pois não há reflexão em torno da construção de novos problemas a serem propostos aos educandos e aos próprios professores. E, como os problemas já estão dados, não há construção de novas ideias. “Além disso, as últimas grandes descobertas científicas, realizadas de 20, 30 anos para cá, permanecem fora da escola. O tratamento com células-tronco, por exemplo, que traz à tona questões de várias naturezas, inclusive éticas, não é abordado.”

Mas, se os currículos devem ser reelaborados ou sua função repensada, a partir de que ponto de vista isso poderia se dar? Albert Sangrà, da UAC, defende a ideia de “desconstruir para reconstruir”. E diz que, antes de formarmos novos professores, precisamos saber para quê queremos formá-los. Mas, ao ser questionado se não há uma etapa precedente, que defina, em alguma medida de consenso social, uma filosofia da educação que dê princípios norteadores ao processo, o professor aponta a possível inação decorrente desse questionamento.

“Discutimos politicamente e nunca conseguimos chegar a um acordo para estruturar possíveis mecanismos de formação. Então, quando eu falava [nos debates do encontro], dizia o que aconteceria depois, partindo do princípio de que estivéssemos de acordo. Mas às vezes custa muito estar de acordo”, admite Sangrà.

Ou seja, de um jeito ou de outro, as tecnologias aos poucos vão sendo incorporadas pela escola. O que é previsível, já que fazem parte da vida social de forma cada vez mais intensa. Mas o tipo de acordo social que permitiu a construção do desenho da escola como ela se apresentava no século 19 parece cada vez mais distante de ganhar uma nova versão. Pior do que isso, a discordância sobre as possíveis saídas – que não precisam e talvez não tenham possibilidade de ser universalizantes – vão ficando obscurecidas, como se não configurassem uma questão relevante. A educação, cada vez mais, deixa de ser uma questão política para tornar-se um objeto de satisfação das necessidades do indivíduo.

*O jornalista Rubem Barros viajou a Madri a convite da Fundação Telefônica


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