NOTÍCIA
Publicado em 20/12/2011
Após se transformar ao longo da Antiguidade e da Idade Média, riso chega à modernidade para mascarar a incerteza dos tempos atuais
Veja esta versão anônima do Gênesis, tirada de um papiro alquímico do século III. “Tendo riso Deus, nasceram os sete deuses que governam o mundo… quando ele gargalhou, fez-se a luz… Ele gargalhou pela segunda vez: tudo era água. Na terceira gargalhada, apareceu Hermes; na quarta, a geração; na quinta, o destino; na sexta, o tempo. Antes da sétima gargalhada, Deus inspira profundamente, mas ri tanto que chora, e de suas lágrimas nasce a alma”.
Essa enigmática visão, na qual o verbo da bíblia cristã é substituído pelo riso descontrolado do Criador, dá uma boa medida das inúmeras relações entre o ato de rir e os diversos âmbitos da existência humana. O riso está na mitologia, na filosofia, na literatura, na política, na psicologia e no cotidiano – é o que mostra uma das obras referência sobre o tema, História do riso e do escárnio, do pesquisador Georges Minois (Editora Unesp, 2003).
As visões – de uma impressionante multiplicidade, desde a Antiguidade – ajudam a entender os diferentes lugares ocupados pelo riso ao longo dos séculos. Os filósofos estóicos viam no riso a vulgaridade, e também a impotência e o fracasso. Platão desconfiava da ambivalência do riso, que pode estar ligado ao prazer e à dor, ao bem e ao mal, ao gosto e ao desgosto.
A referência mais célebre da filosofia da época, no entanto, vem de Aristóteles, que afirmou ser o homem o único animal que tem a capacidade de rir. Mas esse que foi uma das principais influências do pensamento do mundo ocidental não era também um fã incondicional do humor. Para Aristóteles – como seria politicamente correto hoje -, não se deve rir dos defeitos dos outros, como os sinais físicos. Tampouco é bem vista a zombaria agressiva. Para ele, o riso deve ser fino, comedido.
Uma citação do filósofo, compilada por Minois, não deixa de ser um retrato da época. “Aqueles que, provocando o riso, vão além dos limites são, parece, bufões e pessoas grosseiras, agarrando-se ao ridículo em todas as circunstâncias e visando antes a provocar o riso que levar em conta o propósito de não ofender os que são alvos de suas zombarias”, escreve Aristóteles, em A Ética em Nicômaco. Mas, ao mesmo tempo, condena quem nunca brinca como “rústicos e rabugentos”.
Séculos mais tarde, outra referência importante chega por um pensador de incontestável importância para a cultura contemporânea: o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1835-1930). Em alguns momentos de sua obra, Freud debruça-se sobre o riso, no qual vê uma vitória do “eu”, que se recusa a “admitir que os traumatismos do mundo exterior consigam tocá-lo”. No apêndice do livro A palavra de espírito, apresenta o humor como uma defesa psíquica contra a dor – a mais sublime delas, pois trabalha a favor da saúde psíquica. Freud explica: “o humor não se resigna, ele desafia, implicando não apenas o triunfo do eu, mas também o princípio do prazer, que assim encontra o meio de se afirmar apesar de realidades exteriores desfavoráveis”.
Os três grandes tempos do riso
O riso não mudou, mudaram os tempos, lembra Georges Minois. Provavelmente hoje se ri das coisas do cotidiano quase do mesmo modo como se fazia em tempos imemoriais, e por isso somos capazes de rir de um texto de Aristófanes ou de Molière. Mas o lugar do humor na sociedade, sim, sofreu grandes variações. Na exaustiva arqueologia do riso que faz, o pesquisador estabelece três grandes etapas, que chama de riso divino, riso diabólico e riso humano.
A Antiguidade é o tempo da visão divinizante do riso. Em diferentes mitologias, os deuses riem à beça, em diferentes culturas. A concepção é positiva, e o riso está nas festas dionisíacas, na criação e na recriação do mundo, no Olimpo, nas peças pregadas pelos deuses nos mortais, nas sátiras. “Se os deuses riem, é porque eles tomam distância deles mesmos e do mundo. Eles não se levam a sério. E, se os homens riem, isso é para eles uma maneira de sacralizar o mundo, de conformar-se com suas normas, escarnecendo de seus contrários. É também uma forma de endossar o terrível peso do destino, de exorcizá-lo, assumindo”, escreve Minois.
Após o advento do cristianismo, no entender do autor, o riso passa a ser coisa demoníaca. A constatação é feita a partir de uma premissa fundamentalista: os evangelhos não fazem menção a nenhum riso de Jesus Cristo. A gravidade da existência e o temor do inferno pesam sobre os cristãos. O riso – feio, grotesco, subversivo – é a “desforra do diabo”, explica Minois.
Por fim, na divisão do autor, vem o riso interrogativo e humano pós-medieval, quando entram em questionamento os fundamentos de tudo aquilo em que se acreditava até então. “…O recuo das certezas é acompanhado por uma ambígua generalização do riso, que se insinua por todas as novas fissuras do ser e do mundo. Como um navio em perigo, com o casco furado, a humanidade se enche de riso”, escreve. Entram na mira dos engraçadinhos a religião, a política, os diferentes sistemas de poder.
E hoje? Bem, diz Minois, o riso moderno é incerto e “existe para mascarar a perda de sentido”. Se antes a força do humor vinha da seriedade do ambiente onde estava inscrito, ou seja, construía-se contra certezas, hoje o riso seria pura evasão. “Ele não é mais nem afirmação, nem negação, antes, é interrogação, flutuando sobre um abismo em que as certezas naufragaram”, reflete. Mas é justamente por isso, conclui Minois, que o riso se tornou mais indispensável do que nunca.
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