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Carreira

Fora do lugar?

Minoria em todos os níveis de ensino, os homens tentam ganhar espaço num ambiente historicamente dominado pelas mulheres e levantam questões como preconceito, desvalorização do trabalho docente e construções sociais que envolvem toda a comunidade escolar

Publicado em 10/09/2012

por Camila Ploennes

Gustavo Morita
Cesar Doro sempre gostou de trabalhar com crianças. Hoje é diretor do Departamento de Educação de Mogi Mirim (SP)

Território feminino desde o começo do século 20, a instituição escolar reflete, pela segunda vez, uma discussão sobre os papéis de gênero. Se ao assumirem o curso primário as mulheres transformaram a percepção do fazer docente como uma prática intrinsecamente relacionada a características tidas como femininas, a exemplo da abnegação, os homens agora ressignificam esse espaço. Minoria absoluta em todas as etapas de ensino, a presença masculina na escola incomoda, ainda mais, nas áreas ainda identificadas com o “amor às crianças” e à delicadeza: a educação infantil e os primeiros anos do ensino fundamental. O fenômeno da desvantagem numérica, porém, vai além da “feminização” da profissão: tem a ver com preconceito, desvalorização do trabalho docente e construções sociais que envolvem toda a comunidade escolar.

Na educação infantil, os relatos são de discriminação, questionamento à sexualidade e desconfiança quanto à competência profissional. No ensino fundamental, o processo de alfabetização gera apreensão nos próprios professores homens, ainda inseguros em relação às suas habilidades. Em qualquer etapa, o que está em jogo é a representação do próprio magistério e das relações de poder: os homens, normalmente, ainda assumem funções como ser um coordenador, diretor, ou funcionário direto da administração da rede de ensino.

Disparidades
De acordo com o Censo Escolar 2011, os professores somam 395.228 em todos os ciclos da Educação Básica, o que corresponde a 19,32% em um universo de mais de 2,045 milhões de profissionais, enquanto as professoras são a esmagadora maioria de mais de 1,65 milhão. Por serem minoria, docentes do sexo masculino acabam sendo considerados socialmente “fora do lugar”, como destacam pesquisadores desse fenômeno de gênero.

A maior disparidade da presença masculina na escola é percebida na educação infantil. Somente 2,9% dos docentes que trabalham nessa etapa de ensino são do sexo masculino. Ou seja, somam 11.897 de um total de 408.739 docentes. Não muito diferente de 2007, quando entre 336.186 profissionais, os homens eram um grupo um pouco menor em números absolutos (11.415) e um pouco maior em termos porcen­tuais (3,4%).

Desinteresse pela docência
Os motivos para essa estatística vão além da visão presente no senso comum de que a atuação dos homens colocaria em xeque a segurança ou a sexualidade dos alunos pequenos. Isso porque, conforme os ciclos avançam, a quantidade de professores homens nunca fica equiparada à de professoras, embora aumente. Nos anos iniciais do ensino fundamental, eles são 69.606, o que representa 9,6% do quadro de 724.541 docentes. Nos anos finais, os homens são 222.421, ou 28% de 793.889. Já no ensino médio, são 183.973, ou 37,65% de um conjunto de 488.527.

O que estaria implícito nesse emaranhado de dados? Muito mais do que diferenças numéricas. Segundo especialistas consultados por Educação, além de a modernização do país a partir do século 19 ter direcionado a mão de obra masculina para outras profissões, abrindo cada vez mais espaço para as mulheres trabalharem nas salas de aula, há o desinteresse dos homens pela docência devido à falta de reconhecimento social do ofício e aos baixos salários, incompatíveis com a cobrança ainda existente de que eles sejam provedores de maior parte da renda familiar.

Além disso, as diferenças entre os sexos são transferidas para as profissões, o que confere à docência significados femininos, pela associação direta à maternidade e ao ato de cuidar das crianças, defende Daiane Antunes Vieira Pincinato, doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), autora da tese Homens e masculinidades na cultura do magistério: uma escolha pelo possível, um lugar para brilhar. Por outro lado, ela ressalta que essas distinções de gênero conferem significados masculinos aos cargos administrativos, como o de coordenador pedagógico, por associá-los ao rigor e à autoridade, normalmente esperados dos homens.

Vocação e status
Em sua pesquisa, Daiane entrevistou professores que começaram a carreira no magistério entre 1950 e 1989 na cidade de São Paulo e verificou que a escolha profissional por parte dos homens não era como a das mulheres. “Elas falavam de vocação; eles não desejavam a docência e eram geralmente pessoas de classe social um pouco mais baixa, para quem o magistério acabava conferindo um status maior, um bote salva-vidas”, destaca. De acordo com Daiane, nas décadas de 1950 e 1960, a tendência dos professores era trabalhar dois anos com as crianças e depois serem convidados para funções administrativas.

Segundo o professor de Sociologia da Educação Frederico Assis Cardoso, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (Fae-UFMG), os homens têm certa preferência em assumir espaços “ainda demarcados para a vivência de suas masculinidades”, como supervisão e chefia ou aulas de educação física, laboratórios de informática ou de ciências. “Há professores que se sentem bastante contemplados em trabalhos de musicalização, de jogos e brincadeiras com as crianças. Isso pressupõe o acesso aos cargos disponíveis nas escolas com mais facilidade do que as mulheres, contando inclusive com elas para que isso seja possível. É a reprodução das relações sociais de gênero em que os homens continuam gozando de mais privilégios na hierarquia de cargos com mais prestígio, em funções de atribuição de controle e poder”, analisa, com base em seus estudos para a dissertação de mestrado Homens fora de lugar? A identidade de professores homens na docência com crianças. Leia, nos links abaixo, as questões relacionadas à presença masculina no primeiro ciclo da Educação Básica.

Leia mais:

– Na educação infantil, os homens têm de provar mais do que as mulheres suas competências e habilidades

– O medo da tarefa de alfabetizar pode explicar o pequeno número de homens no ensino fundamental

– O discurso masculino fundamentou a construção histórica da instituição escolar no Brasil

“Ganhar a vida trabalhando só nisso é mesmo difícil”
Luiz Alberto Camacho, 37 anos, 14 deles na educação infantil em São Paulo (SP)

Gustavo Morita

Hoje eu trabalho com 20 alunos de 6 anos, no letramento, mas já passei por turmas de todas as idades desde que entrei na Escola Viva [na zona sul da cidade de São Paulo], aos 23 anos, em 1997. Quando comecei, o único professor que havia nessa etapa estava saindo. Então, durante meus três primeiros anos lá eu fui o único docente homem. Sou psicólogo e quando terminei a faculdade, a perspectiva de ficar confinado em um consultório me dava certa aflição. Por mais que na escola exista uma rotina, as crianças estão cada dia de um jeito e pesou muito na minha escolha a oportunidade de desenvolver um trabalho com essa faixa etária. Isso é diferente de cuidar delas porque são “fofas”. É ver seu trabalho acontecendo ao longo do ano e identificar que ele surte efeito muito rápido nessa idade.

Também influiu na minha decisão o fato de trabalhar nessa escola especificamente, onde posso desenvolver projetos. Se fosse uma escola mais tradicional, eu não sei se me encaixaria. Hoje somos três professores titulares e cinco auxiliares com grande potencial. Vi muitos homens chegarem, ficarem um pouco e irem embora, porque a maioria passou pela educação infantil como uma experiência para outras áreas, como sociologia, psicologia e letras. Eu mesmo optei por permanecer e cursar pedagogia só depois de cinco anos refletindo sobre o que eu faria caso saísse.

Os amigos que passaram por lá justificavam as contas a pagar e eu entendo, porque ganhar a vida trabalhando só nisso é mesmo difícil. É preciso ter uma carta na manga. Durante cinco anos, eu trabalhei em uma ONG, com um projeto que oferecia educação infantil para as crianças que estavam sem escola na comunidade de Paraisópolis. Agora estou reencontrando a psicologia, atendendo crianças mais velhas com dificuldade de aprendizagem, mas nunca pensei em parar de dar aula porque preciso de dinheiro. Fui atrás
de outras soluções financeiras para continuar.

“Eu comecei por acaso”
Rafael Carvalho, 26 anos, três deles na educação infantil em São Paulo (SP)

Gustavo Morita

Na primeira escola em que trabalhei, em 2009, fiquei o período letivo inteiro como estagiário nas salas de 1º e 2º anos do ensino fundamental. A instituição tinha virado bilíngue fazia dois anos e ainda não estava muito claro como seria a incursão no inglês. A experiência de participar do letramento foi muito boa, apesar de uma das professoras ter se referido a mim como “mais uma criança para cuidar”. Isso aconteceu porque eu participava do playground e brincava de jogar os alunos para cima, de pendurar. Agora entendo esse comentário: eu tinha mesmo vários aspectos a lapidar e outra professora me deu várias dicas, para não brincar de alguns modos que pudessem machucar as crianças. Em 2010, eu comecei como assistente na Red Balloon Educação Infantil Bilíngue, onde hoje sou o professor de uma turma de sete alunos de 2 anos e meio e trabalho com uma professora-assistente. A escola também tem outros dois professores homens, que são os especialistas de educação física e de música.

Eu comecei por acaso. Cursei licenciatura em letras na PUC-SP porque gostava de escrever e ler. Tenho vontade de fazer psicologia e o que mais quero estudar é pedagogia, porque é minha área atual. Na prática aprendi muito, e quando me perguntam como eu consigo dar aulas em inglês para crianças de 2 anos e meio, eu não sei responder. Talvez seja porque tem pouca gente fazendo isso e acho que, se mais pessoas fizessem, elas também iriam gostar. Já tentei jogar futebol profissionalmente, fui monitor de acampamento, vendedor de loja, telemarketing e agora estou aqui aprendendo a ser professor, estou me construindo.

Preciso ter muita paciência às vezes, porque as crianças demandam muita energia. Elas choram e você deve estar com ouvido e coração abertos para conseguir lidar com as situações de uma forma justa, atendendo a todos. Para mim é tudo muito prazeroso e meu dia passa muito rápido. Às vezes eu me sinto um pouco cientista com as crianças, pois eu acompanho o desenvolvimento delas e vejo como os adultos, no caso os pais, são parecidos com elas.

Eu não gostava de ter de recortar 20 vaquinhas, 20 carneirinhos. Acho que as mulheres têm mais habilidades manuais, mas fui criando mecanismos: eu ia para a casa dos meus amigos  ver jogo e fazia tudo ao mesmo tempo. Talvez esse tipo de serviço afaste um pouco os homens, porque temos uma exposição social diferente e a expectativa da família em relação a nós.

Às vezes penso em fazer outra coisa para ganhar dinheiro e, no minuto seguinte, volto atrás. Não sei se me vejo dando aulas até os 40 anos, mas, hoje, aos 26, eu gosto do meu trabalho.

“A primeira coisa que perguntam é se eu sou heterossexual”
Sandro Vinicius Sales dos Santos, 32 anos, sete deles na educação infantil em Belo Horizonte (MG)

Ronaldo Guimarães

Escolhi ser professor por influência da minha mãe, que é docente da rede municipal. Em 2004, prestei o concurso e fiz o magistério em um colégio no Rio de Janeiro, em regime semipresencial. Recordo a data em que fui nomeado: 15 de julho de 2005, ano em que comecei a estudar pedagogia no Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira, vinculada ao Instituto Helena Antipoff. Até hoje trabalho na rede de Belo Horizonte, atualmente com uma turma de crianças de 3 anos. Além disso, leciono em um curso de formação de professores para a educação infantil da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Na UFMG, onde faço o mestrado, eu me especializei em docência da educação infantil.

Ao longo desses sete anos, coleciono fatos muito positivos, apesar da resistência de alguns pais em certos momentos, sobretudo das mães, à minha presença na escola. Um dia, na hora da saída, um pai me disse se sentir representado ao ver que os filhos dele tinham um professor homem, já que ele não podia estar muito tempo com eles.

Hoje chega a ser engraçado que em todo primeiro dia de aula no curso de magistério, na Escola Estadual Engenheiro Francisco Bicalho, a primeira coisa que perguntam é se eu sou heterossexual. Mas isso vem desde quando comecei na UMEI e uma de minhas primeiras diretoras quis saber como eu fui parar na educação infantil. Respondi que era casado e cuidava da educação das minhas duas filhas. Percebi que, além de questionarem muito isso, elas pensavam: “se é hétero, é preciso vigiar, porque pode ser um perigo para as crianças”. O assunto que fica por último é se sou competente para o trabalho.

Há no imaginário coletivo essa imagem de que a maternagem é uma tarefa única e exclusivamente feminina. Por meio do discurso científico, tento mostrar o que a professora Marília Pinto de Carvalho [Feusp] defende: a maternagem é uma construção social e, portanto, o homem também pode praticá-la.

Autor

Camila Ploennes


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