NOTÍCIA
O que a escolha desse termo revela sobre a finalidade da experiência escolar?
Publicado em 09/11/2012
Importada das áreas de recursos humanos e administração de empresas, a noção de “competência” tornou-se um elemento recorrente, quase sacralizado, nos discursos educacionais das duas últimas décadas. Ela guia a elaboração dos grandes sistemas de avaliação do rendimento escolar, marca sua presença nos livros didáticos e nos planos escolares. Perplexos – ou indiferentes – os professores são informados de que a aula baseada na transmissão de informações e no ensino de conceitos pertence ao passado, a uma era anterior à sociedade do conhecimento; que a acessibilidade à informação pelos meios eletrônicos exige não a memorização, mas a mobilização de conhecimentos. Enfim, embora não saibamos exatamente o que seria uma aprendizagem por competências, todos sabemos que agora é ela que devemos almejar se não quisermos parecer irremediavelmente ultrapassados.
Claro, sabemos todos – porque somos lembrados à exaustão – de que numa pedagogia das competências importa desenvolver as capacidades de “mobilizar conhecimentos”, de “apresentar soluções” e não meramente memorizar informações ou dominar conceitos. Mas o que a escolha desse termo – extraído da linguagem comum e não de qualquer complexa rede teórico-conceitual – pode revelar sobre como concebemos a finalidade da experiência escolar e o sentido da transmissão intergeracional que nela ocorre?
Pensemos sobre o que significa, em nosso uso cotidiano, dizer que alguém tem determinada competência; que é, por exemplo, “um competente lógico” ou um “competente orador”? Significa tão simplesmente que seu desempenho numa capacidade – como detectar falácias ou persuadir aqueles que o escutam – é reconhecido como eficaz ou mesmo notável.
Ora, como sabemos desde Platão, as capacidades são para opostos. Um competente farmacêutico demonstra sua perícia tanto ao fazer remédios, como venenos. Isso porque competências, capacidades e habilidades são eticamente neutras. Podemos dizer que alguém se tornou um competente orador, mas usou sua competência para o mal. Mas não faz sentido algum dizer que João aprendeu a ser um homem justo, mas usa a justiça para o “mal”. O adjetivo “justo” não descreve simplesmente a eficácia de um ato; a ele atribui um valor e um sentido. Já no caso do termo “competência”, se há algum valor associado, esse é o da eficácia. E nada mais.
Eis, pois, o que a adesão irrestrita ao ideal de uma pedagogia das competências pode nos sugerir: que aceitamos viver numa sociedade na qual a eficácia dos meios parece ser mais relevante do que nobreza dos fins. É legitimo – e mesmo inteligente – procurar os meios mais eficazes, rápidos, fáceis e econômicos para, por exemplo, construir uma casa. Esperamos, pois, decisões meramente competentes. Mas quando formamos alguém, devemos sempre pensar no caminho “mais fácil”? Não haveria pelo menos certas ocasiões em que a decisão mais justa, nobre ou digna seria justamente a mais difícil? Em que o caminho mais rápido se mostraria o menos interessante? Não haveria momentos em que uma pedagogia da dignidade seria o melhor antídoto a uma pedagogia das competências?
*José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII
jsfc@editorasegmento.com.br