NOTÍCIA
Experiências de quando os adultos leem livros para crianças
Publicado em 05/12/2012
Deveria ser obrigatório que todo adulto lesse literatura infantil. Seria uma forma de lembrar nossa condição fundamental de criaturas que preferem brincar a brigar, sorrir a chorar, que festejam as histórias ao invés de estragar as festas, que gostam de fantasiar ao invés de mentir.
Mas para que nós, adultos, não nos sintamos ofendidos com esta lição de casa, criemos um novo gênero: a literatura infanto-adultiva. Os livros são os mesmos, mas podemos afirmar que serão especialmente significativos para maiores de trinta anos!
Mania de explicar
Existem títulos brasileiros que podemos incluir nesta nova categoria, como o Mania de explicação, de Adriana Falcão (Editora Moderna, 2001).
A menina da história tem uma mania tipicamente adultiva. Ela gosta de inventar explicação para tudo. E que seja sempre uma explicação simples e bonita. Todo adulto que se preza pensa que tem explicação para tudo. Que sabe explicar até o inexplicável.
No entanto, os adultos explicadores não gostam de uma menina que explica tudo. E começam a censurá-la. Alguns dizem que a menina é uma filósofa precoce. Na explicação da menina, quem faz filosofia é a pessoa que, em vez de ver televisão, fica pensando pensamentos. Por pensar demais e querer tudo explicar a todos, a menina irrita todo mundo. E, desprezada, sente na pele a solidão de quem pensa além da conta.
Na solidão do pensamento, a menina se entrega à mania de explicar e definir. Define o desespero, a angústia, a preocupação, a vontade, a dificuldade, o sucesso, a indecisão e a certeza, o pressentimento e a vaidade, a ansiedade e o interesse, a raiva e a alegria, a decepção, a culpa, a desculpa, o beijo…
Num dado momento, porém, a menina depara com o amor. E o amor ela não consegue explicar. Quando não temos a explicação de algo que é extremamente real e verdadeiro, o que fazer? A perplexidade da criança que queria explicar tudo nos ensina a abrir mão dessa obsessão adultiva, e admitir os mistérios de viver.
O que existe dentro das paredes
O escritor inglês Neil Gaiman, herdeiro dos grandes narradores de seu país, toca em seu livro Os lobos dentro das paredes (Editora Rocco, 2006) o tema dos segredos familiares. O que há dentro das paredes de uma casa? Serão apenas camundongos e ratos? A protagonista é Lucy, capaz de perceber nos ruídos estranhos a presença ameaçadora dos lobos.
Os lobos representam o caótico. Quando saem das paredes, expulsam a família, tomam o seu lugar. Desarrumam e sujam a casa, comem da despensa e usam as roupas dos antigos moradores. Pais e filhos ficam imaginando que teria sido melhor viverem em outro lugar onde não houvesse lobos. Mas Lucy tem uma solução, descobre o mesmo caminho que os invasores antes usaram. Por dentro das paredes, observa o comportamento dos animais, e com seus pais e irmão lança um contra-ataque, recuperando a casa.
No final, porém, Lucy suspeita que, dentro das paredes, espreitam agora os elefantes…
É uma história de terror para o público infanto-adultivo. Por dentro das paredes há ruídos nada inocentes. Temos de apurar os ouvidos. Estar atentos para os perigos que nos rondam. E não subestimar os lobos.
O contrário da sabedoria também é sabedoria
Ricardo Azevedo pode ser considerado um clássico da literatura infanto-adultiva brasileira. Dentre seus livros, destaco O sábio ao contrário (Editora Senac, 2001), em que o personagem, um velho cientista de 100 anos de idade, analisa os puns que os seres soltam mundo afora. Pai da peidologia, o sábio criou o peidômetro e o microscópeido, com os quais interpreta a realidade.
A tese central desta ciência dos gases é a de que o corpo tem muito a dizer. Os gases carregam, ou melhor, expelem, as características e estados de ânimo de seus donos. Os gases são manifestação particular de vidas únicas e irrepetíveis:
[…] havia gases cheios de alegria e gases cheios de tristeza. Gases apaixonados e gases entediados. Gases revolucionários e gases conservadores. Gases sérios e gases brincalhões. Gases carinhosos e gases agressivos. Gases bobos e gases espertos. Gases egoístas e gases generosos. Gases cheios de certeza e gases cheios de dúvida. Gases cheios de pessimismo e gases cheios de esperança.
O corpo envia mensagens, que precisam ser corretamente interpretadas e devidamente correspondidas. Se a humanidade levasse a sério a peidologia, também se levaria mais a sério, e o mundo seria melhor. As pessoas são realidades corpóreas, que soltam puns reais. Não são entidades rotuláveis ou informações abstratas. Os puns são, enfim, o sinal irrefutável de que os corpos existem, e precisam ser profundamente respeitados. A peidologia é um humanismo e uma ética que nos leva pelo caminho contrário ao das habituais (e muitas vezes sem destino) estradas do pensamento.
Conforme o autor Ricardo Azevedo nos ensina, o conhecimento dos gases intestinais é também a base de uma peidagogia, graças à qual nos tornamos aprendizes mais sábios e melhores mestres.
*Gabriel Perissé é doutor em Filosofia da Educação (USP) e pesquisador do Núcleo Pensamento e Criatividade (NPC) – www.perisse.com.br