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Era uma vez uma bruxa que tinha perdido a memória. Esquecera como transformar príncipes em sapos, como provocar incêndios com um estalar de dedos, como desencadear terremotos com uma careta acompanhada de palavras em algum idioma incompreensível. Desesperada, vendo-se cada vez mais sem poderes, ela conseguiu se lembrar de um feitiço, apenas um, o primeiro que tinha aprendido no começo de sua carreira de bruxa. Era o feitiço de trancar portas e janelas para sempre. E desde então ela nunca mais conseguiu sair de sua casa.
Não é preciso acrescentar muito mais. As crianças se encarregam dos desdobramentos. Elas próprias poderão convocar novos personagens para o relato, inventar situações, criar e desenvolver possibilidades.
“Era uma vez”…
Toda vez que contamos que “era uma vez” reabrimos caminhos de percepção e conhecimento. A pequena história da bruxa sem memória não vai querer sair da nossa memória… A não ser que fechemos todas as portas e janelas, porque nenhuma história é tão boba a ponto de querer ficar trancada para sempre numa “cachola”.
“Era uma vez” é uma forma de pedir sem pedir nossa merecida atenção, uma oportunidade, um evento que inaugura espaços para sobrevoar as nuvens, desbravar as florestas, visitar o fundo dos mares, descobrir passagens secretas, escalar as montanhas mágicas, decifrar textos sagrados, fazer e desfazer feitiços.
Por que não contamos aos alunos, todos os dias, uma história? Nada que seja longo ou muito complicado. Podemos narrar micro-histórias, microcontos, histórias breves, piadas, episódios inusitados, captações do cotidiano, novas lendas, mitos renovados…
Que seja um compromisso de hora marcada, mas não burocrático. Momento aguardado todos os dias, porém, por ser janela poética que se abre e deixa entrar a luz da imaginação na sala de aula… e nas mentes.
Aprende-se a contar?
Aprender a contar histórias é sempre uma forma divertida de entender o mundo e o comportamento das pessoas. E contar histórias compactas torna a tarefa mais acessível e factível. Não é preciso pensar em demasiadas questões, pois a questão principal se concentra num número reduzido de personagens e numa ação que não se estenderá por dezenas de capítulos como numa novela ou romance.
Para começar, é importante ter em mente alguma dificuldade, alguma “fratura”, algum problema (à primeira vista insolúvel), para que a história desperte rapidamente o interesse dos ouvintes. A nossa vida é um exemplo de altos e baixos, acertos e enganos, avanços e recuos, sustos e alívios. A história inventada recebe sua inspiração profunda do caráter biográfico de nossa existência.
Reconhecemos, por exemplo, na bruxa desmemoriada, um problema que tem muito a ver com certos modos de avaliação de aprendizagem. Se aprender se limita à memorização de fórmulas e regras, o destino pode vir a ser a prisão eterna, a reprovação sem saída.
Narrativas curtas no início da aula (associadas ou não a algum tema a ser abordado) exigem a fantasia em diálogo com o realismo. Uma história inventada não precisa ser absurda. O mundo em que animais e plantas falam, objetos têm personalidade e monstros estranhos atuam com naturalidade: é o nosso mundo humano, o único mundo que conhecemos, mas que se reapresenta revestido de outros formatos, outras cores, outros movimentos.
Aprendemos a inventar histórias quando aprendemos a ver o outro lado da vida. Que, no fundo, é a vida que vivemos, mas agora transfigurada pela mente que não tem medo de transbordar.
Ensinar sem ensinar
Temos de aprender a desfazer o feitiço do tédio. A pedagogia do tédio é uma teia, na qual ficamos presos, presos ao receio de encontrar o desconhecido.
Era uma vez uma aranha que passava seus dias tecendo uma teia quase invisível, mas muito resistente, na qual insetos voadores caíam sem perceberem. Os fios de sua teia eram tão fortes que poderiam prender um pássaro, pensava a aranha, sorrindo e tecendo. Um dia, enquanto cochilava, sentiu vibrações estranhas: uma nova vítima tinha caído em sua armadilha. E parecia ser um bicho grande, que se debatia com força, tentando se libertar a qualquer preço. A aranha correu até lá, pronta para degustar um almoço que poderia durar uma semana inteira… e encontrou a mão do jardineiro desfazendo sua teia, pouco a pouco.
Ainda temos a pretensão, talvez, de ensinar algo com nossas pequenas histórias. E, de fato, alguma coisa havemos de ensinar. Mas se trata de ensinar sem ensinar. Não temos como adivinhar o que os alunos vão aprender com nossas micro-histórias.
Possivelmente nem nós mesmos saibamos o que estamos nos ensinando. O que me diz a aranha dessa história? Sonhando alto, desconhece o que existe para além de sua teia, seus planos e projetos. Nós também, professores, não podemos prever tudo. Iniciar uma aula com uma história é ter a atitude de disponibilidade para aprender. Aprender e se surpreender.
*Gabriel Perissé é doutor em Filosofia da Educação (USP) e pesquisador do Núcleo Pensamento e Criatividade (NPC) –
www.perisse.com.br