NOTÍCIA
Fenômeno mundial na internet, a Khan Academy chega às salas de aula brasileiras deixando uma dúvida: popularidade é sinal de qualidade?
Publicado em 04/03/2013
O matemático em apresentação no Brasil: oratória, carisma e plateia cheia |
São 434 milhões os resultados de busca que o Google oferece ao usuário que procura pelas palavras Khan Academy. 226 milhões é a quantidade de visualizações que os quase quatro mil vídeos produzidos pela academia têm – apenas no seu canal oficial no YouTube. E seis milhões são os visitantes únicos no site a cada mês. Quem vê hoje os impressionantes números da Khan Academy não pode imaginar que a iniciativa começou despretensiosa, com o objetivo único de ser um favor entre primos.
Em 2004, o americano Salman Khan, um analista do mercado financeiro dono de três graduações pelo conceituado Massachusetts Institute of Technology (MIT) e MBA pela Harvard Business School, decidiu ajudar sua prima mais nova que estava tendo dificuldades com os conteúdos de matemática. Como a garota morava em Nova York e ele em Boston, as aulas eram por telefone. Logo ele começou a ajudar outros primos e surgiu, então, a ideia de gravar vídeos e colocá-los no YouTube. Assim, Khan só precisaria dar a aula uma vez e os primos poderiam assistir às explicações quando fosse mais conveniente.
Como tudo o que cai na rede, os vídeos não ficaram restritos ao círculo familiar. Em pouco tempo milhares de jovens estavam assistindo às suas aulas. Entre os estudantes fãs do matemático estavam os filhos de ninguém menos que Bill Gates, que passou a fazer grandes doações à Khan Academy e impulsionou seu sucesso. O carismático Khan começou a ser assediado por jornalistas e estampou as capas de grandes veículos de comunicação sob os títulos de “melhor professor do mundo”, “o messias da matemática” ou até mesmo “o futuro da educação”.
O que há de novo
Mas afinal, o que a Khan Academy trouxe de novo e relevante para a educação? Não se pode tirar o mérito de Salman Khan por seu espírito filantrópico: todos os vídeos produzidos são gratuitos. Mas para Fredric Litto, presidente da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), a iniciativa não é revolucionária como muitos dizem. “O trabalho do Salman Khan tem alguns aspectos novos e outros mais do que tradicionais. O uso de vídeos para melhorar o conhecimento dos alunos, por exemplo, não é novo”, aponta.
Litto lembra que no início da década de 1990 foi financiada, nos Estados Unidos, uma série de videoaulas em CD-ROM para serem reproduzidas em sala de aula ou utilizadas fora dela. Para ele, a Khan Academy é uma continuação desse esforço e também dos Recursos Educacionais Abertos (REA), movimento que defende que os materiais de ensino, aprendizado e pesquisa em qualquer mídia estejam sob domínio público.
O professor acredita ainda que, do ponto de vista tecnológico, Khan é “ultrapassado”, já que suas aulas não têm recursos interativos. “É a mesma coisa que um professor que dá sua aula em frente ao quadro-negro e o aluno apenas copia no caderno”, afirma. Por outro lado, Litto ressalta que a forma fragmentada como os conteúdos são apresentados, decompondo assuntos complexos passo a passo, é um mérito de Khan.
Críticas matemáticas
Entretanto, não é consenso entre professores de matemática que essa forma de ensinar seja a melhor para garantir o aprendizado dos alunos. O americano Justin Reich, professor do MIT, reuniu em seu blog opiniões de diferentes professores sobre os métodos adotados por Khan e, em todas elas, os educadores sugerem que a Khan Academy ignora uma vasta literatura sobre o ensino de matemática e repete erros já conhecidos. Um deles é justamente o ensino por meio de procedimentos. O professor Michael Pershan defende que existem fortes evidências em inúmeros países com bem-sucedidos programas de matemática, como Japão e Finlândia, de que uma boa aula começa com perguntas, em vez de instruções passo a passo. O objetivo desse método é desenvolver nos estudantes a capacidade de solucionar problemas, identificar informações relevantes, testar hipóteses e engajar a curiosidade.
Christopher Danielson, Ph.D. em educação matemática pela Universidade de Michigan e Michael Paul Goldenberg, mestre em educação matemática pela mesma universidade, defendem que Khan sabe conteúdos de matemática, mas comete erros pedagógicos comuns a professores iniciantes. Para confirmar seu argumento, Danielson e Goldenberg se utilizam do conceito de conhecimento pedagógico de Lee Shulman, professor emérito da Universidade Stanford. A teoria de Shulman postula três formas de conhecimento útil para o ensino: o conhecimento pedagógico (ideias gerais sobre como ensinar), conhecimento do conteúdo (conhecimento especializado do campo) e conhecimento pedagógico do conteúdo. Esse último é uma base importante para o planejamento e tomada de decisões durante uma aula e, para os educadores, Salman Khan não atende a esse quesito.
Para Robert Talbert, professor de matemática na Universidade Estadual Grand Valley, o grande problema da Khan Academy é a tentativa de ampliá-la além do nicho para o qual ela foi criada. Talbert observa que os vídeos não apresentam um currículo coerente de estudo, nem engajam os estudantes em todos os níveis cognitivos. Ele acrescenta ainda que a iniciativa nada mais é do que uma coleção de palestras em forma de vídeos e atribui a Salman Khan a principal causa do sucesso. “Ele é simpático e tem um jeito para fazer com que processos mecânicos pareçam compreensíveis”, escreveu em seu blog.
Carisma e conteúdo
No começo do ano, Salman Khan esteve no Brasil para lançar seu livro Um mundo, uma escola. O auditório do Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, não foi suficiente para comportar todos que queriam assistir à palestra – um telão transmitia o encontro para os que ficaram de fora. Dono de uma oratória simples e direta, o americano arrancou, com desenvoltura, risos da plateia em uma apresentação de cerca de 40 minutos, principalmente ao relatar suas reações frente ao sucesso inesperado da Khan Academy. Antes e depois de sua visita ao Brasil, a revista Educação solicitou ser atendida por Salman Khan para debater os temas abordados nessa reportagem, mas não foi atendida.
Em encontro com a imprensa, quando questionado no que se diferencia de outros professores que disponibilizam suas aulas na internet, Khan não soube dizer precisamente: “com certeza não fui o primeiro a gravar aulas e colocá-las no YouTube. Não sei a resposta para eu ter me tornado mais popular do que outros, mas acho que a razão é por eu estar fazendo aquilo para meus primos de uma forma muito aberta, sem um roteiro pronto. O tom que eu uso nos vídeos é o mesmo que estou usando para conversar com vocês”.
Em Brasília, quando o matemático esteve com a presidente Dilma Rousseff e o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, foi realizado um seminário sobre educação digital, do qual Fernando José de Almeida, doutor em Educação e professor da PUC-SP, participou. A princípio, a simplicidade das aulas não lhe causou boa impressão.
“Conforme ele foi se apresentando, percebi que esse rapaz teve a sensibilidade de descobrir o que é uma aula essencial, o miolo conceitual de uma aula. O que eu dou boas-vindas não é ao arsenal de vídeos, mas à intuição profunda que ele teve de entender a origem dos processos de ensino. A aula é uma figura do século 17 e não se pode dizer que ela está superada”, diz.
Já para Marcos Formiga, coordenador geral de Cooperação Internacional do CNPq e coordenador da equipe que realizou o Telecurso 2000, o êxito não está nem no método, nem no professor, mas no conteúdo. “Se o conteúdo é atraente, ele atrai o público”, garante. Outro ponto ressaltado é a duração dos vídeos. “Ele descobriu coisas que no Telecurso nós já havíamos evidenciado. Uma aula deve ter, por exemplo, por volta de 15 minutos, pois depois disso o nível de atenção do aluno começa a cair”, relembra.
Em um aspecto, porém, os dois concordam: não se pode creditar à Khan Academy a salvação da educação. “As aulas dele não são suficientes. Para equacionar o problema do Brasil são muitas variáveis e não apenas a de uma aula bem dada”, ressalta Almeida. Os educadores acreditam que esse é apenas mais um método para servir de referência aos professores brasileiros. “Nós ainda temos muita reação ao uso da aprendizagem flexível e somos pouco receptivos à influência que vem de fora. Em um mundo globalizado não podemos menosprezar essas alternativas”, acredita Formiga.
Escolas públicas testam modelo |
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No segundo semestre de 2012, a Fundação Lemann, coordenadora da Khan Academy em português e responsável pela tradução dos vídeos, levou para seis salas de aula de escolas públicas um projeto piloto para inserir o método nas aulas de matemática dos quintos anos de ensino fundamental. A ideia é que o professor comece a aula com determinado conteúdo e na própria sala os alunos façam exercícios no computador. Se o estudante apresentar dificuldade na atividade, o programa sugere um vídeo para sanar aquela dúvida. Caso contrário, ele pode avançar para o passo seguinte. O professor recebe um relatório mostrando o nível em que cada aluno está e, na aula seguinte, pode planejar uma aula individualizada, que se adapte melhor à necessidade de cada um. “A grande inovação não são os vídeos, mas sim o uso do software que permite o acompanhamento focado nas necessidades de cada aluno”, acredita Denis Mizne, diretor executivo da Fundação Lemann. Em 2013, o projeto deverá chegar a 200 salas de aula. O Ministério da Educação também disponibilizará os vídeos traduzidos para o português no Portal do Professor e nos tablets que serão distribuídos aos professores da rede pública. A Fundação Lemann criou um aplicativo para que os docentes possam baixar o material no tablet e utilizá-lo mesmo sem conexão à internet. |