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Entrevistas

Na prática, a teoria é outra

Pesquisadora que virou referência internacional nos estudos sobre alfabetização, Magda Soares fala sobre como o trabalho em Lagoa Santa (MG) tem sido um exercício de ajuste da teoria e iluminado práticas docentes

Publicado em 04/10/2013

por Paulo de Camargo

A pesquisadora Magda Becker Soares é um mito vivo da educação brasileira. Ao longo de décadas, foi uma das investigadoras que criaram e ajudaram a firmar a reputação do Centro de Estudos sobre Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Universidade Federal de Minas Gerais, como uma referência internacional nos estudos sobre alfabetização e letramento.

Aposentada desde 2000, Magda não parou. Viu no fim da rotina na universidade uma chance para testar na prática as teorias que revolucionaram a compreensão dos processos pelos quais as crianças aprendem a ler e escrever, ao longo dos últimos 40 anos. Com oito décadas de vida e um fôlego de fazer inveja, assumiu o desafio de mudar a educação do município de Lagoa Santa, nas cercanias de Belo Horizonte, onde morou quando criança.
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A experiência de Magda Soares se tornou um caso ainda a ser muito estudado. Por enquanto, os avanços são medidos em números: o Ideb do 5o ano do ensino fundamental na rede municipal, que, em 2007, estava em 4,5 (abaixo da meta de 4,6 para 2007), passou para 5,7 em 2011 – superando a meta projetada de 2013. Mas tão significativo quanto os resultados alcançados foi o conhecimento gerado. O encontro entre teoria e prática – em uma área onde o conhecimento conceitual avançou muito mais do que as didáticas – promoveu revisões teóricas e novas ações. “Na prática, realmente a teoria é outra”, brinca a pesquisadora, que concedeu a entrevista a seguir à Educação.

Como tem se dado a experiência em Lagoa Santa? Quais os resultados possíveis de serem avaliados?
Para entender, vamos começar do princípio, que foi o ano de 2007. A secretária de Educação que assumiu naquele ano era minha ex-colega na universidade. Ela ficou assustada com os problemas da alfabetização na rede e pediu minha ajuda. Eu achei que era a oportunidade de realizar um  antigo sonho de verificar se meus desejos e esperanças enquanto estive na universidade poderiam levar realmente à melhora da qualidade, com equidade, no ensino das crianças. Eu estava já aposentada, e havia tomado a decisão de voltar para a escola pública, onde começara como professora. A universidade nos prende na figura da dedicação exclusiva e acabamos formando professores distantes da realidade da sala de aula. Bem, propus então para Lagoa Santa me aceitar como uma voluntária, pois a população já me sustentou muito tempo para fazer pesquisa em boas condições. E começamos.

Como se estruturou o trabalho?
O primeiro momento foi de reconhecimento. Eram, então, 19 escolas. Até o ano que vem serão 22, tão espalhadas que, embora se considerem tecnicamente urbanas, praticamente pertencem à zona rural. Desde o início, meu propósito era fazer um trabalho para a rede toda. Não vejo muito sentido em projetos-piloto para tornar boa uma escola em um país desse tamanho. Queria que todas fossem boas.

Então, pensamos em um sistema assim: criamos um Núcleo de Alfabetização e Letramento, com uma professora de cada escola, eleita pelos colegas. Com essa professora trabalho durante horas, todas as semanas. É ela que forma os demais docentes na escola, sendo a responsável pelo trânsito entre os problemas vividos pelos docentes em sala de aula e o conhecimento disponível na área. Os problemas vêm da prática, analisamos, e o conhecimento volta para a realidade. Tenho conseguido realizar aquilo de que se fala muito na universidade, mas  só no discurso: a articulação entre teoria e prática.

E o que a senhora aprendeu?
Olha, essa foi uma das grandes experiências que vivi. A ideia popular de que na prática a teoria é outra não é só uma brincadeira. Quer dizer muita coisa. Quando uma teoria não se encaixa, esse é um problema tanto do conceito como da prática. E tenho visto que as teorias de alfabetização e letramento precisam ser frequentemente corrigidas no confronto com a realidade. De outras vezes, acontece o oposto. São as teorias que iluminam procedimentos já cristalizados, e que os professores não compreendem por que dá certo ou errado. Assim, tenho corrigido minhas teorias com essa vivência, e minhas teorias têm iluminado as práticas docentes.

Poderia dar um exemplo de como as teorias devem ser adaptadas a partir do confronto com a prática?
Por exemplo: há muitos textos que dizem o que é possível trabalhar com as crianças em cada uma das etapas. A teoria diz: aos 3 anos se pode isso, aos 4 aquilo, aos 5 etc. Quando as professoras veem isso, dizem: “Ih, isso não é assim. As crianças já fazem isso há muito tempo”. Ou, ao contrário: “O quê? Não, ainda é cedo…”. No fundo, o que ocorre é que ficamos tão imbuídos de teorias que não nos damos conta do quanto é valioso o diálogo com a prática, em ambos os sentidos. No ano passado, verificamos que as crianças estavam com dificuldades no trabalho com as letras. Eu não via sentido para aquela dificuldade das professoras. Aí me dei conta de que havia uma teoria que elas não conheciam e isso poderia orientá-las. Elas não sabiam que as crianças veem a letra primeiro como um desenho; depois, veem como um objeto e só enfim chega a fase da representação de um fonema. A fase do objeto é difícil para o professor, porque ele precisa compreender que para a criança a letra B é percebida da mesma forma como vê um copo ou uma maçã. O espelhamento comum nesta etapa se explica também por isso. Se é um objeto, a criança pode mudar a forma como desenha, e por isso é capaz de fazê-lo tão rapidamente. Para mim era óbvio, mas não o era para os docentes.

Foi preciso desenvolver materiais próprios, neste trabalho?
Temos um trabalho baseado em metas e discussão das metas (que, aliás, também mudaram no confronto com a prática). Mas os materiais utilizados, os procedimentos, ficam no campo da autonomia das professoras. A autonomia está no que se faz, e não aonde se vai chegar. Todo o país, pelo menos na educação básica obrigatória, precisa ter claro aonde se deve chegar para garantir a igualdade, a equidade. Como chegar lá é competência da professora. Sobre os materiais, não vamos recusar o que vem do MEC, pois afinal somos nós mesmos que pagamos, mas usamos aquilo que se encaixa em nosso projeto.

Como é feita a avaliação do trabalho que é realizado?
Não gosto de chamar de avaliação, pois o espírito é o de acompanhar. Nós fazemos um diagnóstico trimestral para aferir o andamento dos trabalhos. Esse diagnóstico é construído pelas próprias professoras, com base na matriz construída igualmente pelos docentes da rede. As professoras constroem os instrumentos que, no âmbito do Núcleo de Alfabetização e Letramento, selecionamos para montar uma prova, novamente aplicada e corrigida pelas próprias professoras de sala. Ah, e os docentes fazem também os gráficos da turma, com nomes e descritores, por meio dos quais todos podem saber como é a trajetória de cada aluno.

O que dizem os resultados oficiais?
Os resultados oficiais… bem, isso é que me anima. Com Lagoa Santa, aprendi que o processo é lento – e isso tem a ver também com o encontro entre teoria e prática. É preciso ter paciência. Na teoria dizemos faz assim e assado. Na prática, vemos o que está apenas parcialmente resolvido e precisa ser retomado sempre continuamente, em um processo sem fim. É um movimento em espiral. Bom, tudo para dizer que não desprezamos as avaliações externas, pois achamos importante ter esse olhar; em todas as redes elas fizeram um progresso grande. Recebemos a avaliação estadual para o 3o ano do ensino fundamental, o Pro-Alfa, e os nossos resultados são muito bons. No Ideb também já superamos as metas do ano e começamos a olhar para a meta de 2020.

A se
nhora falou em autonomia e metas pactuadas. Como conseguiu f
azer com que todos aderissem conjuntamente à sua proposta?
Os professores não veem o projeto como algo que vem de cima. Desde o primeiro momento, foi construído em conjunto, no sistema de interação com as escolas por meio do núcleo e do qual todas as professoras se apropriaram. Tudo se faz na primeira pessoa do plural. Recentemente, uma aluna do mestrado pesquisou essa relação entre o plano e os docentes e o resultado foi surpreendente. Primeiro, porque a quase totalidade das professoras responderam, o que é dificílimo, quem faz pesquisa sabe. Por fim, as respostas revelaram o envolvimento das professoras e o reconhecimento de quanto isso tem ajudado. Falaram sobre como cresceram em conhecimento e competência, sobre como os alunos progridem e como isso traz satisfação. Isso é fundamental! O professor precisa ter a recompensa pelo resultado de seu trabalho, já que outras ele não tem…

O projeto será estendido para os anos finais do ensino fundamental? Essa é uma etapa em que os indicadores caem muito. Como a senhora avalia esse problema?
Nós começamos devagar. Nos primeiros anos, focamos as crianças de Educação Infantil e 1o e 2o ano, depois fomos para o 3o ano (e antecipamos para a creche). Agora chegou o momento de avançarmos do 6o ao 9o, que é uma situação muito diferente, com um professor de cada disciplina. Criamos um projeto que começa a funcionar agora.

Temos um professor representante de cada disciplina e esses professores se reúnem com os demais, pois o objetivo é fazer com que todas as disciplinas trabalhem com letramento, na leitura dos textos específicos de cada área. Já fazemos, por exemplo, uma avaliação integrada das disciplinas. Eu acho que o que ocorre é que do 5o para o 6o ano as mudanças são muito radicais. O aluno perde o professor-referência. Quando muda de etapa, fica desorientado, cada conteúdo é isolado. Por isso, tentamos integrar os conteúdos de 6o a 9o  ano do ensino fundamental, até porque essa divisão é puramente artificial. Talvez essa integração resolva esse choque. Minha hipótese é que se corrigirmos essas questões avançaremos.

A senhora acredita que os recursos tecnológicos trazem impacto para o processo de alfabetização?
Há um impacto, sim. Tem quem se preocupe até que as novas ortografias do meio digital sejam transferidas para o papel e lápis. Não tenho esse receio. Certamente, esses recursos contribuem pelo interesse despertado nas crianças pela escrita e pelo conhecimento. A questão é que os meios tecnológicos são mais atraentes e, no fundo, mais fáceis que a tecnologia do papel e do lápis. Como diz um livro excelente de Michel Serres, é a geração do polegar. Isso faz a diferença e não sei como será no futuro, pois vamos estar cada vez mais afogados em tecnologia.

Autor

Paulo de Camargo


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