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Quando a educação é caso de justiça

O crescente número de problemas relacionados à educação resolvidos por meio do sistema judicial alçam o Poder Judiciário ao papel de formulador de políticas públicas e revelam uma dificuldade cultural brasileira: a baixa capacidade de discutir e resolver conflitos

Publicado em 04/06/2014

por Paulo de Camargo

Fernando Brum

Ações, mandados de se­gurança, termos de ajustamento de conduta: conceitos próprios do mundo jurídico tornam-se cada vez mais comuns no ambiente educacional. O número crescente de intervenções do Judiciário abriu uma nova frente de debates na educação, que especialistas da área chamam de “judicialização das relações escolares”, uma referência à interferência da Justiça em relações que antes ou ficavam no âmbito das políticas públicas de educação ou da gestão privada do ensino – ou nem chegavam a ser debatidas.

Até o início da década de 1990 eram comuns apenas as batalhas judiciais em torno de mensalidades escolares. Hoje, questões como falta de vagas em creches, inclusão de alunos com deficiência, violência, bullying, transferência, reprovação e um amplo espectro de situações típicas da vida pedagógica cotidiana tornaram-se, literalmente, caso de justiça.

É difícil estimar o número de processos que se estendem nas diversas instâncias do Poder Judiciário. Mas os estudos disponíveis mostram a tendência de crescimento a partir dos anos 2000. Em artigo a ser publicado em uma revista internacional, a jurista Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da USP, fez um levantamento dos casos que chegaram à Suprema Corte brasileira referentes à área de educação. A conclusão é a de que, das 4.410 decisões tomadas pelo Superior Tribunal Federal (STF) entre 1988 e o começo de 2013, mais de 95% (4.222) ocorreram a partir do ano 2000, sendo a imensa maioria no final da década.

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É preciso lembrar que um grande número de casos sequer chega ao Supremo Tribunal – etapa final do longo caminho de uma ação na sabidamente lenta justiça brasileira. Há incontáveis procedimentos judiciais correndo em todas as instâncias e as súmulas das decisões só podem ser consultadas nos sites do Poder Judiciário por palavras-chave, o que dificulta levantamentos mais precisos. Mas não resta dúvida da tendência de levar discussões educacionais para a Justiça. “É possível observar um movimento crescente no sentido de resolver problemas relacionados com a educação através do sistema judicial”, diz Nina.

Garantia de direitos
Ao contrário do que muitos podem pensar em uma primeira interpretação, não se trata de um desses modismos que de tempos em tempos acometem o mundo educacional. Tampouco é uma ação política de promotores em busca de holofotes, como a reação de muitos gestores parece sugerir. Trata-se de um processo crescente, que ocorre em outros países, e que no mundo jurídico ganhou o nome de “justiciabilidade da educação”.

Nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma área estabelecida de direito educacional, com publicações e associações próprias. O país congrega hoje diferentes fontes de informação sobre o tema, como o site mantido pela Columbia University dando conta de ações relativas ao financiamento educacional. O marco do processo de judicialização americana da educação tem início em 1954, com a decisão da Suprema Corte do país que acabou com a segregação racial nas escolas, no caso Brown x Board of Education of Topeka, informa a pesquisadora Adriana Aparecida Dragone Silveira, que defendeu mestrado sobre o tema analisando ações nos tribunais de Justiça brasileiros pela Faculdade de Direito da USP.

O princípio que está por trás desse movimento é central para o fortalecimento das democracias modernas: trata-se da consolidação de um sistema de proteção e de garantia de direitos – neste caso, de garantia de direitos à educação. Afinal, a educação é um direito fundamental, pois permite acesso a outros direitos sociais, como ao trabalho e à própria cidadania. Uma sociedade desenvolvida do ponto de vista democrático precisa passar pela oferta da educação de qualidade para todos.

Não por acaso, no Brasil, até a Constituição de 1988, motivada pelo ideal de bem-estar social e por isso apelidada de Constituição Cidadã, a questão dos direitos educacionais era marginal no Judiciário, explica Nina Ranieri. A partir desse marco, o quadro mudou, e de forma cada vez mais contundente.

Há um exemplo simples para entender o que essa mudança significou: uma das maiores conquistas asseguradas na Constituição – a de uma educação pública para todas as crianças a partir de 7 anos – obrigou que o Poder Executivo federal, estadual e municipal colocasse a expansão de vagas como prioridade. Basta lembrar como eram comuns nas décadas de 1980 e 1990 cenas de imensas filas para garantir vagas no ensino fundamental das escolas públicas, com famílias resignadamente acampadas nas calçadas por semanas.

Ordem de prisão
Pois a questão do acesso voltou a ser recolocada recentemente pela e para a sociedade brasileira com a emenda constitucional 59, de 2009, que estendeu para todas as crianças a partir dos 4 anos a mesma garantia de acesso universal. A partir daí, pais se viram obrigados a matricular seus filhos na escola entre 4 e 17 anos, sob pena de punição da lei, e governantes começaram a correr para universalizar o atendimento até 2016, já que é seu dever garantir a oferta.

Filas nas calçadas ainda existem, mas são mais raras, e agora o round da luta para assegurar direitos constitucionais acontece em outra esfera. O sociólogo César Callegari, secretário municipal da Educação de São Paulo, acostumou-se a encontrar ordens de prisão quando chega ao seu gabinete, na Vila Mariana. São centenas de ações individuais que, baseadas no conceito de direito à educação, cobram ação dos que ocupam cargos públicos e garantem aos demandantes uma vaga no sistema público.

Assim como Callegari, raros são os gestores municipais que não estão sob a mesma pressão. O ex-secretário da Educação de Jundiaí, Francisco Carbonari, teve de atender a 400 mandados de segurança para incluir crianças em creches apenas no primeiro ano em que esteve à frente da pasta. Isso correspondeu a 10% das vagas ofertadas.

À primeira vista, poderia parecer que a questão se resolve com a intervenção da Justiça, mas a realidade é bem mais complexa do que isso. “A realidade nunca é simples, e quem disser o contrário é porque não entendeu o que está acontecendo”, afirma o pesquisador Álvaro Chrispino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos primeiros na educação a publicar análises sobre o tema.

Nesse caso, por exemplo, furar filas com uma liminar nas mãos também é uma forma de driblar o direito coletivo de todos os que esperam a sua vez, o que gera contradições que precisam ser negociadas por meio de acordos e termos de ajustamento de conduta (veja box).

Além disso, lembra Carbonari, que também é presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, a força da lei acaba colocando o Judiciário como um formulador de políticas públicas sem que haja debate suficiente, o que gera distorções. “O atendimento em creches, por exemplo, não é universalizado em nenhum país do mundo, simplesmente porque é melhor que os filhos fiquem preferencialmente com os pais, de zero aos 3 anos. Creche é para quem precisa”, diz.

Há outras questões de fundo que precisam ser compreendidas no debate, entre elas a da legitimidade de intervenção do Poder Judiciário na elaboração de políticas públicas, que cabe ao Executivo.

Como nos Estados Unidos, aqui também uma decisão da Suprema Corte estabeleceu uma linha orientadora para a questão. No caso, a decisão do ministro Celso de Mello, em 2005, que determinou o investimento da cidade de Santo André em uma ação que reclamava a abertura de vagas para a Educação Infantil naquela cidade, ainda que então ainda não houvesse obrigatoriedade constitucional. “Isso nunca tinha acontecido em relação a outros direitos sociais, como o direito à saúde”, lembra Nina Ranieri.

A decisão influenciou a ampliação do atendimento por meio de emenda constitucional, em 2009. Vale lembrar que uma decisão do STF gera jurisprudência, ou seja, passa a servir como referência para decisões posteriores, desencadeando uma avalanche de ações semelhantes com totais chances de sucesso.

Embora seja mais presente no noticiário, a garantia de vagas nas creches é apenas a face mais visível de um amplo conjunto de demandas que vêm sendo buscadas por meio da Justiça. O direito à educação pode ser subdividido em um amplo conjunto de direitos, como no caso do atendimento a crianças com deficiência ou, mais recentemente, o acesso à universidade por políticas de cotas. Cabem nesse mesmo pacote ações para garantir a meia-entrada de estudantes nos cinemas, transporte de estudantes, inclusão em programas sociais específicos de municípios ou estados, mensalidade, emissões de certificados e muitos outros.

Mudança de conduta
A consultora Sônia Aranha vem promovendo cursos e discussões sobre o tema. Para ela, uma das razões para que isso aconteça é a própria mudança de conduta da escola, que teria modificado seus critérios de relacionamento com a comunidade.

Sônia vem reunindo diversos exemplos de ações judiciais que tramitam na Justiça. Cita, por exemplo, a decisão de um juiz que concedeu um mandado de segurança contra uma escola particular para assegurar condições para o atendimento a uma aluna portadora de dislexia, disgrafia e discalculia associada ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Diversas ações referem-se a esse campo. Há casos em que os juí­zes determinam a contratação de professores auxiliares para o atendimento a crianças com deficiência. Em outro caso, referente a uma escola pública, a decisão garantiu transporte especial a um aluno portador de deficiência e matrícula em instituição especializada.

Tornam-se mais comuns também ações por dano moral, como o caso de uma sentença que puniu uma escola particular por não atender uma criança, alegando dislexia. “É dever das instituições de ensino estimular os seus alunos, de acordo com as necessidades de cada um, para alcançar o seu objetivo-fim, o ensino/aprendizado”, escreveu o juiz.

Há casos também em que as escolas recorrem à Justiça contra alunos e pais, seja por questões financeiras, seja por questões de conflito. Em uma escola da zona sul de São Paulo, por exemplo, corre na Justiça um processo por agressão física de um diretor contra uma mãe inconformada com a punição disciplinar ao filho.

Busca de direitos
O crescente recurso à Justiça se explica pelo avanço institucional vivido pelo Brasil no período de redemocratização. Para Chrispino, cada vez mais os cidadãos sentem-se mais conscientes de direitos e lutam para preservá-los. A chegada do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 foi um divisor de águas na forma como se definem os direitos daqueles que eram tratados, até então, apenas como “menores de idade”. Outros marcos legais, como o Código do Consumidor, ajudam a compor o quadro.

Além disso, diz o pesquisador, as estruturas judiciais avançaram no sentido de se tornarem mais próximas da população. É o caso da criação dos juizados especiais cíveis (conhecidos como Tribunais de Pequenas Causas) e das varas de Defensoria Pública, que providenciam advogados para quem não consegue pagar por suas demandas legais. Além disso, a criação de promotorias especializadas em crianças e adolescentes, bem como dos conselhos tutelares, também ampliou as áreas de interferência entre Judiciário e escolas públicas e privadas.

“A busca pela Justiça é como uma estrada no período de férias. Se a estrada é ruim, você se planeja para passar as férias sem viagem. Se está melhor, todo mundo quer pegá-la”, compara.

Muitas instituições, como organizações não governamentais, não apenas consideram o processo saudavelmente democrático como trabalham para difundir essa consciência de direitos assegurados. É o caso da ONG Ação Educativa, que começou a dedicar maior atenção ao tema quando as questões referiam-se ao acesso ao ensino fundamental, na década de 1990. A partir do ano 2000, as demandas se diversificaram e tendem a crescer. “É muito importante impulsionar as de­mandas sociais para a defesa da educação”, explica o advogado Salomão Ximenes, mestre em Educação e doutor em Direito. Hoje, segundo Ximenes, já se têm órgãos do Judiciário especializados nas causas edu­ca­cionais, um sinal de amadurecimento da discussão.

Gestão de conflitos
Para Chrispino, que acumula passagens como subsecretário da Educação do Rio de Janeiro e Brasília, e tem pós-doutorado em Administração Pública, há uma lição de casa que deve ser feita pelos educadores nesse campo. Para ele, o acuamento e, muitas vezes, o mal-estar que os educadores demonstram ao se sentirem ameaçados pela justiça ou ao se verem como potenciais réus em processos, devem ser substituídos por uma discussão ampla sobre direito e democracia – tanto na sala dos gestores, como nas salas de aula.

Na avaliação do pesquisador, a saraivada de ações ilustra uma dificuldade cultural brasileira: a baixa capacidade de discutir e resolver conflitos, que aparece nas brigas de condomínio, no trânsito, nas situações do cotidiano, processos intrafamiliares e até alimenta as estatísticas da violência elevadíssimas no Brasil. Para ele, antes de uma contenda se tornar uma ação judicial, é preciso que haja um esforço de mediação. “Muitas coisas poderiam ser resolvidas no diálogo e no relacionamento”, acredita.

O espaço educativo seria um ambiente ideal para tratar desses problemas, mas não é isso o que ocorre. O tema da gestão dos conflitos está praticamente ausente da formação inicial de professores e diretores. Há um grande desconhecimento da própria legislação vigente. “Acho incompreensível que professores e gestores desconheçam o próprio ECA”, lembra Chrispino. Segundo ele, a imagem do ECA ficou marcada por proteger crianças e adolescentes, mas poucos sabem que a lei prevê também uma série de deveres.

Do mesmo modo, diz o pesquisador, é imprescindível que os educadores hoje conheçam o Código do Consumidor, que vem sendo utilizado como base de muitas ações contra as escolas. “Não interessa se isso não é assunto da educação, os professores precisam deixar os preconceitos e conhecer as bases legais da sociedade onde atuam”, defende.

Sobretudo é preciso que os educadores deixem de ver os conflitos como problemas. “As manifestações dos conflitos podem ser um problema, mas o conflito em si é inerente à vida em sociedade e precisam ser enfrentados”, alerta.

Um dos exemplos é a falta de verbalização das regras. Embora as escolas possuam regimentos internos e normas disciplinares, os documentos ficam como letras mortas, desconhecidas pela comunidade e até mesmo pelos professores. “Quando acontece punição há a sensação geral de que não se sabe o motivo pelo qual foi merecida”, lembra.

Escola x família
Embora muitas vezes não cheguem à justiça comum, se tornam cada vez mais frequentes contestações de famílias feitas em instâncias administrativas da educação, como as divisões de ensino e outros órgãos colegiados, e o Conselho Estadual de Educação. Também há cada vez mais casos de alunos retidos em escolas privadas que acabam tendo a reprovação revista pelas diretorias de ensino, após contestação dos pais.

Para a pesquisadora Luciana Fevorini, diretora do Colégio Equipe, os recursos administrativos, ou pela via judiciária, ainda que tenham razão de ser, acabam tendo efeitos nem sempre saudáveis do ponto de vista educativo. “Um aluno aprovado administrativamente pode continuar achando que é possível avançar sem merecer ou levar consigo um sentimento de fracasso”, exemplifica. É o caso de jovens que repetem no 3º ano do ensino médio, mas acabam sendo aprovados com recursos por terem sido aprovados no vestibular.

Há um esforço importante de comunicação a ser feito dentro das instituições para diminuir as zonas de conflito, como dar publicidade ao próprio funcionamento escolar. Para Mauro Aguiar, que atua no Conselho Estadual de Educação desde 1996, é fundamental que o Regimento Interno seja conhecido pelas famílias. É este documento, com valor legal, pois é aprovado pelas instâncias administrativas que regulam o funcionamento das escolas públicas e privadas (como as diretorias de ensino), que vai balizar as situações de confronto mais comuns, como a contestação de notas, reprovação e penalidades disciplinares.

“De forma geral, a questão hoje é incrivelmente melhor do que no passado, se lembrarmos a época do Plano Cruzado, com milhares de ações questionando valor de mensalidades”, considera. Hoje, Aguiar vê mais questionamentos no campo das normas disciplinares: “Muitas vezes os pais querem contestar na Justiça ações disciplinares da escola, mas os juízes não acolhem e sempre ganhamos”.

Segundo Aguiar, a orientação do Conselho Estadual de Educação para todos os questionamentos feitos por pais e alunos é a consulta ao Regimento. “Antes dessa deliberação, cuja versão mais recente é de 2013, não fazíamos outra coisa a não ser despachar processos de alunos reprovados”, recorda Aguiar.

Segundo Luciana Fevorini, quando a escola deixa claras as suas regras, é muito menos provável que haja recurso das famílias. Contudo, ela alerta que é preciso separar as discussões. “Trata-se de coisas distintas: há demandas que são direitos negados ao cidadão; outras questões pertencem apenas ao âmbito pedagógico, e é importante que a escola tenha clareza disso”, lembra.

Mas, até mesmo para saber diferenciar as demandas e ver com clareza o foco das divergências, as escolas e educadores precisam se despir de preconceitos e se dispor a entender o assunto. O recurso da Justiça não é uma simples intromissão na vida escolar, mas uma manifestação de fortalecimento de uma democracia muito nova do ponto de vista histórico, que amadurece e só se constrói na divergência e no consenso, no diálogo e na capacidade de negociar soluções, seja nas relações pessoais
ou no convívio coletivo.

Marcos da lei

Alguns marcos legais para entender a zona de intersecção entre justiça e educação

1954
Decisão da Suprema Corte norte-americana, garantindo a igualdade entre crianças brancas e negras noacesso à educação.

1988
Promulgação da Constituição Federal, que estabelece que “a educação é direito de todos e dever do Estado e da família”.

1990
Entra em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo o conjunto de direitos e deveres dos brasileiros com menos de 18 anos, com direito à proteção judicial do Estado.

1990
Entra em vigor o Código de Defesa do Consumidor, regulando as relações entre prestadores de serviço e consumidores.

1996
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, descentralizando as esferas administrativas da educação e reforçando o direito à educação.

2004
Decisão do ministro Celso de Mello sobre a demanda por creches em Santo André, estabelecendo o direito do Poder Judiciário de intervir em políticas públicas.

Autor

Paulo de Camargo


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