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Educação no Mundo

O que é um professore qualificado?

Modelo britânico de avaliação dos professores que ingressam na rede pública é motivo de debates e pressão para a nova secretária de Educação do Reino Unido

Publicado em 04/11/2014

por Rachel Costa, de Londres

Falar do setor público educacional no Reino Unido é falar de uma multidão. São 1,4 milhão de funcionários, que formam o segundo maior corpo de trabalhadores públicos do país, atrás apenas dos profissionais da área da saúde. Um em cada quatro funcionários do Estado trabalha em escolas. Por isso, mudanças na rede pública de ensino costumam ser motivo de discussões acirradas entre representações sindicais, governo e oposição. É justamente esse cenário de conflito que a nova secretária da Educação, a conservadora Nicky Morgan, herdou ao assumir a pasta no último mês de julho. Uma das principais áreas de confronto é o sistema de avaliação docente, que passou por polêmicas e consecutivas mudanças durante a gestão do secretário anterior, Michael Gove (2010-1014). Nicky assume em meio a dois desafios principais: dar uma resposta ao criticado aumento do número de professores não qualificados e garantir que aqueles qualificados estejam realmente preparados para estar em sala de aula.

Os desafios giram em torno de uma sigla de três letras: o QTS (Qualified Teacher Status). A certificação é usada na Inglaterra para aferir se o professor tem as habilidades necessárias para dar aulas na rede pública – a regulação não se estende à rede privada. Quando o professor tem o certificado, ele é considerado “qualificado” e pode ser contratado. Do contrário, ele será “não qualificado” e não deve ser aceito pelas instituições públicas. Isso, entretanto, tem mudado.

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Durante a gestão de quatro anos de Gove, foram criadas as chamadas free schools (assim chamadas por não obedecerem à maior parte das regulações postas para as outras escolas financiadas pelo Estado), às quais foi dado o direito de contratar professores sem qualificação. Essa mesma concessão passou também a valer para as academies, instituições que funcionam por parcerias público-privadas (veja mais no quadro).

“Foi a primeira vez nos últimos 30 anos que essas escolas puderam contratar docentes sem nenhum treinamento formal”, diz John How­son, pesquisador-visitante sênior do Departamento de Educação da Universidade de Oxford. “Anteriormente, desde 1974, apenas em situações in extremis era permitido a essas instituições de ensino empregar pessoas sem a qualificação de professor durante os períodos de falta de equipe.”

Como resultado, o número de professores “não qualificados” subiu pela primeira vez nos últimos anos. O último levantamento oficial, divulgado em abril deste ano, mostrava um aumento de 16% entre novembro de 2012 e o fim do ano passado, resultado que desagradou a muitos. “Dar aulas requer uma habilidade específica e a ideia de empregar indivíduos que não receberam as ferramentas para realizar esse trabalho é completamente contrária ao anseio do governo em criar uma profissão com alto status social”, disse em entrevista à BBC o secretário-geral da Associação de Líderes de Escolas e Colégios, Brian Lightman. O descontentamento também foi captado por uma pesquisa do Sindicato Nacional dos Professores realizada com mais de 1.500 pais, na qual 82% deles mostraram-se favoráveis a que as escolas empreguem apenas professores com QTS.

Formação específica
Diante da pressão e das críticas, a secretária de Educação tem ido por partes. Ela tem falado muito sobre a questão da sobrecarga de trabalho dos professores da rede, mas ainda não entrou no tema da avaliação – só disse que as free schools permanecem. Historicamente, entretanto, o governo tem defendido que contratar “não qualificados” se justifica por ser uma porta para a entrada na rede de ensino de profissionais de excelência em suas áreas, mas sem a formação específica para dar aulas. Nem todos, porém, concordam com essa visão. “Simplesmente ter um curso superior não necessariamente confere ao profissional o conhecimento necessário para dar boas aulas sobre um tema em um nível mais básico”, pondera David Weston, chefe executivo da Teacher Development Trust, organização sem fins lucrativos baseada em Londres que desenvolve abordagens para o treinamento docente.

Atualmente, metade das secondary schools (equivalente ao Ensino Fundamental II) são ou estão em processo para se tornar academies. Além disso, Nicky já anunciou a criação de 35 novas free schools, metade delas em Londres. Esse crescimento acena para a possibilidade de um novo aumento no número de docentes não qualificados para os próximos anos.

Além de abrir as portas da rede pública aos professores sem QTS, outro ponto polêmico suscitado pela antiga administração foi o aumento das rotas para a obtenção da qualificação. Uma novidade sobre a qual se tem dúvida é o programa School Direct, lançado em 2012, no qual o treinamento do candidato é feito diretamente nas escolas, sem a necessidade de participação de universidades.

“Ainda não temos claro como essas mudanças irão impactar o sistema educacional, mas temos algumas evidências de que os potenciais professores estão confusos com essas múltiplas rotas”, considera Weston, da organização Teacher Development Trust. “Fica evidente que temos várias práticas inovadoras surgindo por meio dessa diversificação, mas junto disso temos observado que a qualidade do treinamento também tem variado”. Weston ainda considera que a redução do papel das universidades no treinamento pode levar à falta de conhecimentos teóricos importantes.

Investimento
Esse é um ponto delicado, uma vez que a qualidade da preparação recebida pelos docentes durante o período de treinamento também vem sendo questionada. Uma pesquisa realizada pela Associação Nacional de Diretores (NAHT, em sua sigla em inglês) com seus associados revelou que mais da metade (58,5%) dos diretores tem encontrado dificuldade para recrutar novos professores qualificados. Entre os entrevistados, 72% disseram que faltava aos novos tutores habilidade para conduzir as salas de aula e outros 56% apontaram falta de conhecimento em pedagogia, psicologia e desenvolvimento infantil entre os candidatos. “Isso mostra que parte dos professores em formação está saindo do período de treinamento sem o equilíbrio necessário de suas habilidades”, diz Russell Hobby, secretário-geral da NAHT. “Um terço dos nossos membros disse que os novos professores qualificados estão menos preparados para o trabalho que há cinco anos.”

Não ter conhecimentos específicos sobre o ambiente escolar pode influenciar não apenas na capacidade de ensino do professor, mas também na maneira como ele reage a temas ao mesmo tempo difíceis e comuns em sala de aula. Hugo Vaz Vieira, professor no Waltham Forest College, no nordeste de Londres, considera fundamental que um docente saiba lidar com casos de cyberbullying, indisciplina, preconceito e racismo.

Diante desse cenário e das críticas, o governo tem estudado aumentar o período de treinamento de um para dois anos. Todavia, free schools e academies seguiriam dispensadas de exigir o QTS. “Do ponto de vista pedagógico, poderia ser interessante, pois seria mais tempo para o professor receber formação”, considera Vieira. Para ele, que está em sala de aula de segunda a sexta, os desafios são constantes e é preciso “jogo de cintura” do professor para saber resolvê-los. “A grande questão é: muitos precisam pagar pelo treinamento e um ano a mais significaria o dobro dos gastos e os salários dos professores não são muito atrativos. Tem muita gente que tem a formação mas não está dando aula porque ganha mais em outras áreas”, diz Vieira.

O preço de um ano de treinamento hoje é, em média, £ 9 mil (cerca de R$ 35 mil). Dobrar esse valor pode tornar ainda menos atrativo aos britânicos investir na carreira docente.

Caminhos para a qualificação

Conheça as duas principais vias por meio das quais os professores adquirem o QTS

A própria escola se encarrega da formação, priorizando as áreas em que precisa de profissionais. O School Direct é um exemplo deste modelo.

Treinamento via universidades
Universidades oferecem cursos de treinamento para graduados e alunos de graduação, com estágio em pelo menos duas escolas distintas.

Em ambos os casos o futuro professor terá de cumprir:
• Um mínimo de 24 semanas em ao menos duas escolas para ganhar experiência de sala de aula
• Uma avaliação de suas habilidades para dar aula, feita com base em observação em sala
• Provas eliminatórias de matemática e inglês antes de iniciar o treinamento

 

Prós e contras do modelo britânico

Entenda como funciona e os atuais nós da qualificação dos professores para a rede pública

Caminho oficial
Para ser contratado para o quadro de professores das escolas públicas, o profissional precisa ter o QTS (Qualified Teacher Status), uma espécie de certificado de que o professor possui a qualificação necessária para dar aulas.

Alternativas
Professores substitutos podem ser contratados apenas com o PTTLS, certificado obtido após um curso de dois meses. As academies (instituições que funcionam por parcerias público-privadas) e as free schools são dispensadas de exigir o QTS.

Polêmica
Isso tem levado ao aumento do número de professores não qualificados. Levantamento publicado pelo Departamento de Educação do Reino Unido revelou que, após um período de declínio, o número de professores sem QTS aumentou no último ano, passando de 14.800 em 2012 para 17.100 em 2013.

Reação
Circula nos bastidores a proposta de uma reforma do sistema para a obtenção do QTS. Atualmente, o Treinamento Inicial Docente (ITT, em sua sigla em inglês) dura um ano. Com o novo sistema, passaria para dois anos. Todavia, free schools e academies seguiriam dispensadas de exigir o QTS.

Autor

Rachel Costa, de Londres


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