NOTÍCIA

Edição 221

As armaduras enferrujadas

Educar-se e educar consiste em fazer trajetórias com a disposição de aprender a ser melhor

Publicado em 31/08/2015

por Gabriel Perissé

 

© iStockphoto

 
Quem gostou de ler Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, ou Sidarta, de Hermann Hesse, ou mesmo Um conto de Natal, de Charles Dickens, possivelmente gostará também de O cavaleiro preso na armadura (1990, lançado no Brasil pela Record, em 2001), de Robert Fisher (1943-2008).
Era uma vez um corajoso cavaleiro que vivia lutando em cruzadas e abatendo dragões. Sempre pronto para sair do castelo, nem retirava mais a armadura. Com o tempo, ela enferrujou-se, e o cavaleiro ficou preso ali dentro. A mulher e o filho entraram em desespero. Para se livrar da armadura, o herói terá de enfrentar uma outra cruzada e vencer dragões bem mais perigosos, numa radical viagem ao interior de si mesmo.
Uma fábula moderna com personagens e ambientes medievais sobre um tema de todos os tempos. O cavaleiro queria cumprir sua missão. Mas o que era para ser missão tornou-se obsessão. Tornou-se afirmação enlouquecida de si mesmo. A missão, por melhor que seja, pode gerar omissões. O cavaleiro tornou-se uma pessoa distante para seus próximos. A mulher e o filho não viam mais seu rosto, não tocavam mais seu corpo. A armadura transformou-se em carapaça existencial.
A armadura protege, mas quando se torna uma segunda pele, afasta e desumaniza. O herói precisa ter seus momentos de descontração e esquecimento do que é urgente. Mais urgente é não deixar de ser gente.
Ferrugem na alma
Brincamos, dizendo que o endurecimento das articulações, das juntas, é sinal de que estamos enferrujando fisicamente: o corpo não tem mais a agilidade da juventude e começa a ranger. A ferrugem da alma significa também perda de mobilidade, vigor, flexibilidade. O cavaleiro se dá conta de que estava no caminho do equívoco. Quer agora sair da armadura enferrujada. Tarde demais?
Educar-se e educar consiste em fazer trajetórias com a disposição de aprender a ser melhor. O cavaleiro é convidado a empreender caminhos íngremes e estreitos. Sente medo. Mas terá de seguir e encontrar três castelos importantes para a sua libertação. O silêncio do primeiro castelo é condição fundamental para aprender: precisamos ouvir. A escuridão do segundo castelo convida a pensar. O dragão que habita o terceiro castelo exige a coragem: é hora de ousar.
Para superar a ferrugem e ganhar liberdade de movimentos, temos de repensar as missões da educação. O medo de inovar nos mantém rígidos e pesados. Sobrecarregados de tarefas e preocupações, deixamos a alma de lado. Ou pior, a alma fica debaixo das estruturas e armaduras. A alma (palavra de que alguns têm medo) não é um fantasma. Não faz parte do vocabulário do absurdo. Alma é sinônimo de liberdade com propósito.
Para sair da armadura
O cavaleiro terá de abrir mão do seu cavalo. Cavalos são bons para a guerra de conquista, mas a batalha a ser travada agora é de outra natureza. O cavaleiro se convence de que deve ir em busca de verdades mais profundas, ou mais altas. Ou mais simples. Ao seu lado, tem agora dois novos amigos: um esquilo e uma pomba.
O esquilo simboliza a esperteza. Embora sejamos vulneráveis, podemos aprender com nossos erros e desenvolver a capacidade de adaptação. Adaptar-se, segundo a etimologia, é tornar-se apto.
A simbologia da pomba guarda antiga riqueza. Em virtude de seu voo e sua graça, a pomba representa a noção da alma, o princípio vital. Remete também às ideias de amor, pureza, simplicidade e esperança. Tudo aquilo que a armadura sufoca.
O esquilo e a pomba dão alguns conselhos para o cavaleiro:
– Quando você aprender a aceitar em vez de ter expectativas, seus desapontamentos serão menores.
– O silêncio é para um. O conhecimento é para todos.
 
– O autoconhecimento pode matar o Dragão do Medo e da Dúvida.
Apesar do tom um pouco simplista, não deixa de ser uma leitura educadora. Na prática docente, temos de aceitar (sem resignação) a realidade. Grandes e Ambiciosos Planos Nacionais de Renovação têm um quê de demagógicos, apesar da sincera intenção da maioria dos educadores. Desapontamentos acumulados ao longo das décadas nos impedem, às vezes, de fazer o que é menos fantástico, mas é mais alcançável, e possível.
Algo de verdade também existe no aforismo sobre silêncio e conhecimento. Se fizéssemos menos estardalhaços e menos discursos vazios (discursos protegidos com belas armaduras retóricas), poderíamos dedicar nossas energias à tarefa de traduzir melhor para diferentes públicos, para diferentes ouvidos, o conhecimento que é de todos.
O terceiro conselho, à la autoajuda (com todo o respeito, mas que tem um pé na autoajuda esse livro tem mesmo), indica os elementos “enferrujadores” da armadura. Nossos medos e dúvidas tolhem os movimentos, inibem as iniciativas. Medo de inventar, medo de cair, medo de perder, medo de renovar, medo que nos deixa mudos. E as dúvidas. Em particular, a dúvida com relação à nossa capacidade de contribuir para uma sociedade educadora.

Autor

Gabriel Perissé


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