NOTÍCIA
Há 52 anos, na França pré-maio de 1968, Georges Gusdorf lançava Professores para quê?, uma elegia ao - verdadeiro - mestre
Publicado em 06/10/2015
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Numa manhã chuvosa, no final de 1973, minha família foi surpreendida por uma inesperada visita, anunciada pouco antes pelo telefone. Estávamos reclusos – meu pai, meus irmãos e eu -, poucos dias após a morte da minha mãe, tentando recompor o olhar sobre nós mesmos e a vida. Eu tomara de empréstimo uma sala, entre livros, caixas e meiões de futebol que eram a argamassa de uma cidade de brinquedo, povoada por uma centena de carrinhos. Naquela bagunça normalmente só compartilhada com quem temos intimidade, era normal que a chegada de um estranho significasse desconforto.
Mas não foi o caso. E isso em razão da simpatia e da destreza do visitante para estabelecer contato conosco, interagindo de forma a cativar os diversos interlocutores. O visitante em questão era um alegre senhor então com 61 anos, elegantemente trajado em terno e gravata. Com um sorriso, viu minha bagunça espalhada pela sala, interessou-se por ela, ouviu os rudimentos de francês que eu começara a estudar havia seis meses, fez com que eu me sentisse importante e orgulhoso por conseguir conversar com um famoso professor de fora do Brasil.
O nome dele era Georges Gusdorf, numa de suas primeiras andanças pelo Brasil, destino que se tornaria frequente alguns anos depois. Veio nos visitar por querer conhecer meu pai, então professor de filosofia e história da educação na recém-criada (1969) Faculdade de Educação da USP. Ambos partilhavam preocupações de ordem política e filosófica, em especial o olhar acerca da liberdade e suas implicações nos campos educacional e das relações humanas em geral.
Para Gusdorf, nascido em 1912 na região de Bordeaux (e falecido em 2000), a liberdade era questão crucial, após viver cinco anos em um campo de prisioneiros durante a 2.ª Guerra Mundial. Aluno de Gaston Bachelard na Escola Normal Superior de Paris, onde depois sucederia Merleau-Ponty e seria professor de Althusser e Foucault, Gusdorf foi dos poucos filósofos a dedicar atenção à autobiografia, preocupação decorrente de sua vivência encarcerado. Foi um entre muitos temas que abordou.
Em 1963, lançava na França Pourquoi des professeurs? – Pour une pédagogie de la pédagogie, livro que levaria 24 anos para ganhar uma tradução brasileira, Professores para quê? – Para uma pedagogia da pedagogia (Martins Fontes), apesar de já comentado muito antes nos cursos locais de formação de professores. Como explicou Afrânio Mendes Catani ao resenhar Ciência e poder (Editora Convívio, 1983, esgotado), em que Gusdorf destrincha certos mecanismos da produção de ciência no mundo, havia então certa indiferença em relação ao autor , “quando não um torcer de nariz”, por acharem-no um tanto positivista, afeito a “temas embolorados”, ou talvez por não ser marxista. O fato é que se já nos anos 1980 uma abordagem mais filosófica da educação encontrava resistências, nesta segunda década do século 21 ela poderia passar por anacrônica. Mas uma leitura atenta de Professores para quê? mostra que temas que hoje pautam o debate educacional brasileiro já eram objeto de reflexão para o autor. E, naquele instante, derivavam de uma crise de identidade no ensino francês, fruto de excessiva burocratização por parte das autoridades pedagógicas e políticas e de contestações por parte do alunado, que dessacralizava o lugar docente. Algo, para Gusdorf, que tirava o sentido do processo educacional. Essa crise, diria o autor anos depois, desaguaria no maio de 1968 nas universidades francesas e ele a previra no livro L´Université en question (1964, não traduzido no Brasil).
Dimensão dialógica
O relato acerca do meu breve contato pessoal com o filósofo francês não é fortuito. O episódio permite aproximações com o caráter vivo, afetivo e seminal das relações entre mestre e discípulo descritas no livro. Isso porque é pressuposto dessa relação que o mestre estabeleça um diálogo frutífero com seu aprendiz, olhando-o e o enxergando, cativando por sua capacidade de mostrar-se alguém que valoriza o interlocutor e que sua ação pode descortinar novos horizontes a ambos. O primeiro passo para isso é o interesse e o respeito que, de uma maneira ou de outra, conservaram em mim uma lembrança viva de um personagem cuja dimensão compreenderia apenas muitos anos depois.
O olhar de Gusdorf para a educação parte dessa relação dialógica entre professor e alunos, que pode ampliar-se para uma relação mais significativa, de mestre e discípulos, mostrando-a como algo que vai para muito além da pedagogia, podendo contê-la ou não. Enxerga a educação de forma mais ampla, traçando suas relações com a filosofia, a política e a cultura. Coloca em primeiro plano a motivação e a angústia da busca humana pela verdade, ou pelas verdades, e o educador de ofício, sobretudo, como um instigador dessa jornada. Uma jornada que não acaba, que se torna maior quanto mais se caminha.
Nessa trajetória, “o ensino é sempre mais do que o ensino”. “O ato pedagógico, em cada situação particular, ultrapassa os limites dessa situação para pôr em causa a existência pessoal no seu conjunto.” Ou seja, se o que se estuda é importante, o processo pode sê-lo muito mais, pois o que está em causa não é a aprendizagem a ser medida pela avaliação objetiva, mas algo que se aprende na caminhada e prepara para os desafios vindouros. E isso se dá na relação entre professor e aluno, sendo a relação do professor com cada um de seus alunos uma relação particular, de um para um, ainda que aconteça no espaço coletivo da classe. Pode, é verdade, acontecer em níveis diferentes, ou estabelecer-se apenas com alguns estudantes.
De início, Gusdorf evoca o Sócrates do Mênon, em que o mestre dá a entender ao aprendiz que ele sabe mais do que pensa saber, e o faz ver o quanto sabe, para mostrar que não precisaria dele, mestre. Esse artifício só mostra o quanto o mestre é necessário, e quanto mais importante ele é ao esconder sua condução da aprendizagem do outro, valorizando-o. Mas Sócrates, símbolo máximo da mestria, é o provocador por excelência, aquele que pelo poder do questionamento faz o outro pensar, eleva-o a um novo patamar, mostra que a verdade não é um presente de um homem a outro homem. Que a verdade é uma conquista de cada um e que o mestre pode ser, no máximo, um guia, pois a verdade do mestre não serve para o discípulo, a não ser como exemplo de tenacidade, argúcia ou retidão para alcançá-la.
Essa figura do mestre, vê-se, é a de alguém decisivo na vida do seu discípulo, alguém com o dom da palavra capaz de, ao ajudar na descoberta de uma verdade, mudar uma vida. É o amor e a devoção do professor ao seu ofício que podem transformá-lo nesse mestre, suplantando o car&aacut
e;ter técnico da pedagogia. Ter o domínio dessa técnica e do objeto a ser ensinado, diz Gusdorf, já são qualidades louváveis para um professor. Mas para o lugar da mestria é necessário trazer em si o espírito da busca incessante da verdade, o que possibilitaria buscá-la também em diálogo com cada um de seus estudantes. As verdadeiras lições não são as lições de física ou de geografia, são lições de humanidade. Assim, o limite do professor é que ele traz a verdade pronta consagrada nos livros, enquanto o mestre “…abre uma perspectiva sobre a verdade (…), pois a verdade é sobretudo o caminho da verdade”.
Aspectos datados
Aqui como em outras passagens, vale dizer, é preciso relativizar o uso de determinadas palavras e expressões, levando-as ao contexto de época. No caso de “verdade”, ou “a verdade”, por exemplo, a leitura integral da obra não leva à crença em uma verdade unívoca, com a perspectiva positivista de que Gusdorf foi acusado anos depois no Brasil. Em várias passagens ele situa “a verdade” como “a verdade de cada um”, algo que se descobre por meio de trajetórias únicas, individuais.
Encontrando Forrester (2000), de Gus van Sant: o jovem Jamal encontra o verdadeiro mestre fora da escola, onde há um professor mesquinho |
Da mesma maneira, há termos então correntes que hoje ganhariam novas designações em função de outros autores e conceitos terem adquirido notoriedade. É o caso de indivíduo, hoje quase sempre substituído por sujeito, ou de transindividual, usado em uma passagem seminal da obra, cuja “tradução temporal” provavelmente nos levaria contemporaneamente a trocar por intersubjetivo.
O exato e o inexato
A valorização do professor como grande diferencial na vida dos alunos, a mestria, é contraposta pela ação da burocracia educacional, materializada nos técnicos responsáveis por sua articulação. O sistema educacional – talvez seja difícil discordar disso – seria pensado para o professor mediano e para o aluno mediano. O professor que reza pela cartilha e está pouco confortável para sair dela. E o aluno que, não tendo sido despertado para algo maior, esmera-se em sair da escola o mais rápido possível, empregando o menor esforço a seu alcance. Assim, a educação não atingiria seu objetivo maior, de trazer o estudante para o mundo da cultura, de incluí-lo numa aventura solidária, humanista.
Um ponto importante desse embate situa-se, na visão de Gusdorf, na prevalência do cientificismo sobre a noção mais ampla de cultura, e de sua influência no universo da educação. O modelo de raciocínio consagrado a partir de Galileu e Descartes levaria a uma crença na matemática e na exatidão, “nas normas rigorosas e universalizáveis”, em detrimento da visão da cultura, que vê o homem como “um ser aproximativo, inexato e contraditório”. E completa: “(…) No domínio humano, a verdade sem o valor não passa de um fantasma de verdade, uma verdade morta”.
Algo que pode ser comparado à atual mistificação da informação fartamente disponível e acessível ao educando, como se ela bastasse para formar um sujeito com raízes sociais.
Na continuação desse raciocínio, Gusdorf alertava para o fato de que nunca se falara tanto sobre o que, a quem e como ensinar, discussão similar à pauta atual sobre o currículo no Brasil. Mas, em contraponto, lembrava que a missão da cultura, em sua percepção, continuava a ser a de inventariar o real e promover a busca do preferível entre as possibilidades para a vida humana. E lamentava a “intemperança pedagógica”, desconectada de uma reflexão precedente para definir a razão de ser da educação na França de então:
“(…) É falso, em todo caso, e perigoso imaginar que a pedagogia possa ser uma espécie de panaceia, o remédio milagroso para todos os males do nosso século. Ela não passa de um conjunto de técnicas; ela propõe meios que, por sua vez, estão subordinados à determinação dos fins que se propõe a sociedade que os põe em ação. Ora, a nossa civilização está incerta de seus fins e valores. (…) Números, curvas e gráficos desenrolam-se no vazio e, como não repousam em nada, a nada conduzem. No máximo, confirmam essa impressão de niilismo e inutilidade que, misturada a um tédio profundo, é uma das características mais constantes da literatura pedagógica”.
A grande missão da educação, então, seria a de fazer dos educandos seres de cultura, e não detentores de saberes específicos, passíveis de ser obliterados por descobertas mais recentes. Para isso, a grande missão da escola seria, e aqui Gusdorf recorre a Kant, fazer com que os estudantes aprendam a pensar. Ainda professor, Kant angustiava-se com a tarefa educativa, intuindo que é preciso dar aos estudantes ferramentas que lhes sirvam para seu desenvolvimento futuro. Não se deve, diz o filósofo alemão, transportar o estudante, “(…) mas guiá-lo, se quisermos que, no futuro, seja capaz de dirigir-se por meios próprios”. Trata-se, evidentemente, da tão sonhada passagem da heteronomia à autonomia que a vida escolar deve proporcionar aos sujeitos que nela navegam. Do plano individual ao coletivo, isso se traduziria por uma visão de cultura que nos leva do conhecimento do nosso universo imediato à “pluralidade dos universos possíveis”.
Incerteza da mestria
Gusdorf, por fim, alerta para o caráter precário da mestria e para os diversos riscos nela embutidos, como a soberba, o autoritarismo, a tentação de criar seguidores e não seres pensantes, a idolatria, a tentação de promover mais escândalos do que o necessário pensar contra a corrente. Sublinha que, apesar de assimétrica, pois pressupõe que o mestre tenha mais a dar, a relação não implica subordinação. E tem caráter provisório, pois seu grande intento é construir a autonomia do discípulo para seu voo solo, ou, quem sabe, para tornar-se ele próprio um mestre. Para finalizar, relembra uma bela passagem de Nietzsche, em que o filósofo alemão – talvez o mais escandaloso dos mestres, mas indubitavelmente mestre – realça esse aspecto, mostrando o educador no papel de grande libertador de seus educandos.
Nos dias atuais, talvez cause certa estranheza o modo assertivo de Gusdorf costurar suas ideias, sem os meios-tons que se tornaram obrigatórios no exercício de relativizar tudo para não causar melindres aos mais diversos grupos e correntes de pensamento. Mas essa assertividade, às vezes vista como autoritária, deriva da necessidade de reafirmar, num momento em que o lugar do professor era não apenas questionado, mas bombardeado, a essência de seu ofício e de seu papel social. Significava a luta não pela verdade do autor, mas para garantir o espaço de busca incessante das verdades que formam sujeitos plenos no universo da escola.