NOTÍCIA
Conceber a escola dessa forma pressupõe que seja regida pelo princípio da igualdade
A reunião de pais congregava várias turmas e a pauta girava em torno de problemas aos quais a escola supostamente deveria dar mais atenção. Em meio às reclamações mais corriqueiras – como a qualidade da merenda ou a falta de professores – surgiu algo até então inusitado e que trouxe um silêncio àquele espaço eloquente. Uma mãe exigia providências em relação ao “roubo” de materiais por parte de algumas crianças. Passada a perplexidade inicial, outra mãe ponderou que se tratava de meninos e meninas de apenas oito anos de idade, que eventualmente poderiam ter se apropriado de algo que não lhes pertencia, mas não lhe parecia o caso de chamar tais ocorrências de roubo ou furto. Talvez bastasse pedir que devolvessem o material que pegaram por engano, sem autorização; orientá-los nesse sentido. A outra mãe, contudo, insistia na ideia de que deveriam ser tratados como “roubos”.
Cerca de quatro anos antes, em face de um auditório para o qual eu acabara de falar sobre educação e igualdade étnico-racial, ouvi de uma professora da educação infantil que mesmo crianças de quatro anos já eram racistas e pouco poderíamos fazer em relação a isso. Para corroborar seu ponto de vista narrou um episódio no qual um menino negro, após ouvir uma história que deveria ser encenada pela turma, pediu-lhe para fazer o papel do príncipe. Imediatamente ouviu de seus companheiros que, por ser negro, não poderia ser um príncipe. A professora os classificou de racistas, mas não insistiu para que o menino negro fizesse o papel de príncipe.
Separadas por quase uma década essas histórias têm algo em comum: recusam à escola seu fator distintivo, que é a configuração de um tempo e um espaço de formação. Afirmar que a escola é um tempo e um espaço de formação implica concebê-la como uma instituição que opera uma suspensão em relação às relações sociais cotidianas. Implica também que aqueles que a frequentam ainda não estão formados, mas em processo de constituição de suas subjetividades.
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Quando acontece fora da escola, um ato de racismo ou discriminação racial deve ser tratado como um crime. Na escola, pode e deve ser concebido como mais um momento de formação. Ao cidadão cabe fazer o boletim de ocorrência. Ao professor, explicar à classe que há príncipes negros, que aquele menino pode fazer o papel do príncipe e que, ao menos naquele espaço, todos os alunos são iguais. Poderá mesmo explicar que a desigualdade étnico-racial marca profundamente nossas relações sociais, mas deverá mostrar (e não só falar!) que aquele é um espaço diferente, que parte do princípio da igualdade. E assim estará a um só tempo contribuindo para a formação de seus alunos e recusando qualquer estigmatização precoce e indevida.
Afirmar que a escola é um tempo e um espaço de formação implica, pois, concebê-la como uma instituição que permite a permanente reconfiguração de subjetividades que ainda se encontram em processo de constituição; que as atitudes presentes nas crianças e adolescentes com os quais lidamos não estão fadadas à permanência. Numa palavra, implica que a experiência escolar toma como pressuposto que as identidades não estão congeladas, mas em processo de construção. Por isso, de adultos esperamos que respondam por seus atos e palavras, mas às crianças oferecemos oportunidades para que os repensem e, assim, possam se constituir como pessoas capazes de um dia por eles responder com integridade.