© Arquivo da revista Educação Infantil
A pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto (1908-1988) foi uma das responsáveis pela grande popularização da psicanálise de crianças desde o início do século 20. Nascida numa tradicional família católica parisiense, estudou medicina e especializou-se em pediatria. Depois de uma análise pessoal, decidiu dedicar-se à psicanálise de crianças. Em 1988, perto de sua morte, declarou que, sem sua fé em Deus, não teria podido ser psicanalista.
A ideia inicial de Françoise Dolto era prestar aos adultos (pais, pedagogos, religiosos, educadores em geral) uma ajuda “iluminada” para que pudessem criar um clima alegre, do qual a criança tem necessidade para seu desenvolvimento. A psicanalista chamou atenção para o fato de que apenas os cuidados corporais do adulto com a criança não são suficientes: eles precisam ser acompanhados de uma linguagem rica e sutil, utilizada constantemente pela mãe ou pelo cuidador.
Entre 1976 e 1978, Dolto participou de uma série de programas na Rádio Francesa. Respondia a cartas de pais e teve enorme sucesso a partir dessa interlocução. Os pais apresentavam situações e ela respondia de forma “desdramatizada” a respeito de como deveriam proceder. Por essa exposição, foi muito criticada e atacada por muitos psicanalistas de seu tempo, sob a alegação de popularizar demais a psicanálise de crianças, gerando assim distorções de interpretações e abrindo espaço para o surgimento de “pequenos tiranos”.
A psicanálise foi utilizada por ela, inicialmente, como um instrumento capaz de ajudá-la a fazer melhor seu trabalho de pediatra. Mas, mesmo escolhendo tornar-se psicanalista, não abandonou o que sempre foi sua primeira motivação: a leitura do corpo. Como psicanalista, tanto de crianças como de adultos, o corpo que a preocupava como médica não desapareceu, apenas deu lugar ao corpo erógeno, libidinal. O conceito desenvolvido por ela de “imagem do corpo” exprime esse conjunto de cuidados do adulto com a criança, com o corpo e com a linguagem, que juntos deixam marcas profundas no inconsciente.
A psicanalista também insistiu na necessidade de separação da mãe, para que a criança possa rea-
lizar seu autoerotismo. Para ela, a mãe precisa fazer diversas “castrações simbólicas” nas diferentes etapas de desenvolvimento da criança, de modo que a fusão entre elas possa se desfazer e abrir espaço para outros personagens de sua cultura, principalmente o pai. Em sua vasta obra, frequentemente Dolto convocou o pai a oferecer um amor verdadeiro à criança.
Entre as publicações de Dolto traduzidas para o português, merecem destaque os livros No jogo do desejo: ensaios clínicos (Editora Ática), Quando os filhos precisam dos pais, O caso Dominique: educação e psicose, Destinos de criança, As etapas decisivas da infância (estes quatro pela Editora Martins Fontes), A imagem inconsciente do corpo (Perspectiva) e Quando os pais se separam (Zahar).
Entre os pressupostos básicos que permeiam a obra de Dolto, alguns se popularizaram. Destes, destacam-se:
– As crianças, incluindo bebês bem pequenos, são “pessoas”, que precisam ser vistas e escutadas.
– Os adultos devem conversar com a criança: “o silêncio provoca mais danos que a palavra”.
– A criança é um sujeito de plenos direitos, não um “objeto”.
– Uma criança nunca deve ser julgada.
– Sem coerção ou manipulação com a criança!
– Deve-se falar com franqueza com a criança, sem jamais enganá-la.
Ser criança nos tempos de Dolto
Escolhendo ser uma perguntadora incessante, Dolto não se distanciava das crianças do tempo de Freud. No texto que Freud escreveu sobre o Pequeno Hans (1908), no qual ele analisa o surgimento de uma fobia em um menino de 5 anos, há inúmeras referências à curiosidade das crianças, e em especial desse menino, o pequeno Hans. Segundo o “pai da psicanálise”, os adultos daquela época costumavam abafar a curiosidade ou mesmo as manifestações psíquicas – os medos, por exemplo – das crianças com gritos ou com indiferença. Desse modo, Dolto era contemporânea das “crianças de Freud” e de sua ideia de libertá-las.
Pode-se afirmar que a criança do tempo de Dolto e de Freud não era ouvida, não recebia a atenção dos adultos. Ninguém lhe dizia a verdade, supondo-se que nada compreenderia. Tanto Freud quanto Dolto perceberam os efeitos terríveis que poderiam ocorrer à criança que sabia – inconscientemente – sobre a verdade dos fatos sem que nada lhe fosse dito sobre eles. Isso a obrigava a supor que, se ninguém lhe dizia nada sobre o que todos sabiam, então deveria calar-se ou fingir que tudo desconhecia, não fazendo senão imitar nisso os adultos. Por isso, Freud recomendava aos educadores de seu tempo o abandono da “política da avestruz”, que faz mais mal do que a verdade nua e crua.
Desde pequena, Dolto afirmava que os adultos não entendem as crianças. Possivelmente por isso dedicou sua vida à causa das crianças. Seu trabalho começou com as análises de crianças, mas prosseguiu buscando sempre iluminar o trabalho educativo dos pais e depois dos professores, na tentativa de evitar que “os problemas de educação” tirassem a tranquilidade das crianças. Dedicou, assim, uma extensa parte de sua obra a uma profunda e consequente reflexão sobre a educação.
A criadora de novos objetos e novas palavras
© Arquivo da revista Educação Infantil
A psicanalista utilizava o jogo e o desenho na psicoterapia de crianças. Colocava à disposição na sala de atendimento papel, lápis, massa plástica, soldadinhos, facas de brinquedo, apitos etc. Mas uma das criações mais importantes em seus atendimentos foi a “boneca-flor”. Ela a utilizou pelas primeiras vezes com duas meninas psicóticas: Bernardette e Nicole, apresentando o sucesso dessa estratégia à Sociedade Psicanalítica de Paris, em 1949.
A primeira boneca-flor foi fabricada pela mãe de Bernardette, a pedido de Dolto: consistia num cilindro recoberto de tela verde (que tinha a função de um corpo) e um rosto que era uma margarida. Esse e outros objetos presentes nas sessões serviam para “trocar e inventar palavras”.
Dolto permaneceu atenta aos mistérios das palavras, à incerteza de seu sentido, à sua polissemia, tão próxima do “mal-entendido”. Seus alunos e colaboradores afirmaram que ela se sentia livre, como as crianças, para inventar várias palavras designativas de aspectos de sua prática clínica: “mamaisar”, “simboligênico” etc. Dessa forma, ela transmitia suas experiências clínicas absolutamente singulares com seu olhar único, criando palavras novas. Ela dizia ser preciso não estar submetida ao censor e conservador mundo dos adultos, que ela não levava muito a sério.
Um bebê podia entender desde o seu nascimento o que diziam à sua volta, segundo Dolto. Assim, a verdade precisava ser-lhe dita desde o início. Ela relata inúmeros casos de bebês cujos problemas de alimentação ou de sono desapareciam, quando as supostas raízes de suas dificuldades lhes eram explicadas. Essas raízes estavam, principalmente, na relação cuidador-bebê. Para ela, os bebês são muito sensíveis à angústia dos adultos e reagem a ela, na tentativa de ajudá-los.
A influência de Dolto na ação dos cuidadores de creches foi imensa a partir dos anos 50. Ao dar valor às palavras dirigidas aos bebês, provocou uma difusão de conhecimentos que atingiu esses cuidadores, levando-os a conversar com os bebês diariamente. Em seus programas de rádio, divulgou que essa prática de falar ao menos 5 minutos diariamente com os bebês teria diminuído em 50% a mortalidade infantil nas creches em uma região francesa.
As Casas Verdes
Dolto acreditava que a autonomia precisava ser conquistada de forma gradual e regular. Percebia que, em geral, as crianças eram obrigadas a fazer a passagem família–sociedade de modo brusco e, portanto, de forma traumática, tanto para os pais como para elas. Reconhecia o quanto era difícil chegar sem conflitos à necessária separação dos cuidadores e à autonomia psíquica das crianças. Assim, propôs e implantou uma experiência educacional sem precedentes na França, que dura até hoje e que teve reflexos em diversos países, incluindo o Brasil: as Casas Verdes, criadas por ela em 1979. Em 2001, os Arquivos Françoise Dolto contaram mais de 130 Casas Verdes espalhadas pela França.
Convencida de que a educação de uma criança se fazia, sobretudo, com o inconsciente, Dolto afirmava que de nada valeriam conhecimentos pedagógicos aprendidos. Por isso, introduziu a presença de um “psi” auxiliando os pais a recuperar o contato com seu próprio desejo e com o desejo da criança. Ela não fornecia referências cronológicas ou pautas de desenvolvimento. O importante era acompanhar a história de desejo singular de cada criança, pois era sobre ele que se erguia o seu desenvolvimento.
As Casas Verdes recebem crianças de zero a três anos com seus pais. Ali, são convidados a permanecer durante o dia em uma grande sala onde há sofás e brinquedos espalhados pelos tapetes. As crianças ficam soltas, e podem ir livremente até o cantinho da água, ou aos espaços reservados aos maiores de 3 anos. Há algumas poucas regras e limites, visando a segurança das crianças. Três psicanalistas ficam por perto, sentam-se com eles e conversam. Seu trabalho é acompanhar as crianças e seus pais. Um dos psicanalistas, que fica mais a distância, deve ser uma espécie de “esponja” para a angústia. Durante os incidentes cotidianos, a função dele é “desdramatizar” as situações de tensão. Em resumo, a equipe deverá ajudar os pais a sustentar os filhos na descoberta dos outros e do mundo.
Desde 1938, quando conheceu o psicanalista Jacques Lacan, Françoise Dolto e ele acompanharam-se mutuamente e compartilharam suas obras. Durante 40 anos, seriam o “casal parental” para muitos psicanalistas franceses.