88 páginas, R$ 47,90.
No primeiro dia de agosto de 1968, a Cordilheira dos Andes estava uma secura só. O verão seco espalhara aridez pelas montanhas. Vista do alto, deve ter feito o homem que retornava de Bogotá, Colômbia, para Santiago lembrar-se do sertão pernambucano vizinho ao Recife onde fora criado. Obviamente, não pela altura das montanhas, mas pelas cores que evocavam a fome.
O homem em questão era Paulo Reglus Neves Freire, ou simplesmente Paulo Freire, como ficou internacionalmente conhecido. A revelação de sua estupefação pela visão da Cordilheira está em uma carta escrita a Nathercia Lacerda, ou Nathercinha, sua pequena prima então com 10 anos.
Freire a havia conhecido no Rio de Janeiro, na casa do avô da menina, que por sua vez era irmão da mãe do autor de Pedagogia do oprimido. Ou seja, sua prima em segundo grau.
Esta carta, como outras cinco a ela destinadas (uma conjuntamente a sua irmã), todas escritas entre os anos de 1967 e 1969, quando Freire vivia exilado no Chile, fazem parte de um tesouro descoberto numa conversa entre amigas. Num papo com as pesquisadoras Cristina Laclette Porto e Denise Sampaio Gusmão, Nathercia revelou o parentesco e o contato que tivera com o primo e educador brasileiro.
A preservação da correspondência, se não era suficiente em si para justificar uma obra epistolar, seria um ótimo ponto de partida para um livro que pudesse revelar, a um só tempo, uma faceta pouco conhecida de Paulo Freire e escavar a memória de sua família e da autora. Acaba por constituir um inventário de formas de convívio familiares no Brasil do século 20, assim como revela os deslocamentos de duas naturezas que marcaram esse tempo. Primeiro, o migratório, no interior do Brasil, com famílias inteiras que deixaram o Nordeste em direção ao Sudeste. Depois, a fuga decorrente dos anos de chumbo da ditadura militar, da qual resultou a correspondência entre os primos de diferentes idades.
Nas cartas, uma marca muito viva é o encanto de Paulo Freire com a descoberta de um novo mundo – bem diferente daquela paisagem seca de 1968. No outono de 1967, a mesma Cordilheira estava coberta de neve, e o espírito curioso e alma de menino – como ele tanto ressalta na correspondência – vêm à tona, materializados pela possibilidade simples e prazenteira de brincar com o gelo.
A empolgação quase eufórica dessa descoberta revela uma faceta em tudo congruente com a do educador que por toda a vida perscrutou o mundo e as pessoas. Como na memória da prima Nathercia, parece ter guardado uma singeleza que comumente perdemos ao longo da vida.