NOTÍCIA
Mecanismo nos ajuda a solucionar problemas e a ensaiar para situações da vida
Publicado em 15/12/2016
O sonho foi reconhecido biologicamente só na década de 1950, quando foi identificado o sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), durante o qual ocorrem os sonhos. O sono REM acontece depois do sono profundo, e os dois tipos se alternam ao longo da noite. Conforme a manhã se aproxima, o sono REM se torna mais longo, até que a pessoa acorde.
Duas décadas depois, os cientistas perceberam que a privação de sono atrapalhava o aprendizado, e que a pessoa dormia mais após períodos de aprendizado intenso. “As pessoas que sonham mais são mais estressadas”, explica a neurocientista Paula Tiba, da Universidade Federal do ABC. “O sonho pode ter a função de ser uma espécie de treinamento para situações estressantes, uma tentativa de elaborar uma estratégia para lidar com essas situações.”
Curiosamente, esse fenômeno foi detectado também em ratos e aves canoras (distintas pelo canto), tendo duração proporcional ao conteúdo do dia anterior – ou seja, quanto maior o aprendizado, maior a atividade cerebral durante a noite. Até recentemente, porém, não se sabia que esse aprendizado ocorria especificamente durante o sonho. “Hoje sabemos que a reverberação das memórias, que Freud chamava de ‘restos’ do dia, acontece durante o sono profundo. Durante o sono REM, quando os sonhos acontecem, são ativados os genes que promovem a fixação das memórias”, diz Sidarta Ribeiro. A fixação de memórias acontece quando as memórias de curta duração, armazenadas no hipocampo (estrutura importante para a memória), são transpostas para o córtex cerebral, região mais exterior, onde são armazenadas as memórias de longa duração.
Na educação, as descobertas sobre sono, sonho e aprendizado têm implicações importantes. “O sono deve ser visto como algo relevante para os alunos, e não como mero problema de disciplina”, diz o neurocientista Fernando Louzada, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ou seja, quando um aluno dormir na aula, o professor deve lembrar que isso não é necessariamente falta de interesse.
Um dos problemas é que as aulas começam muito cedo e não respeitam o ritmo biológico dos jovens, diferente do de adultos e crianças. Embora entre os cientistas isso seja um consenso, o horário das aulas nas escolas não mudou. A principal dificuldade é reorganizar o horário de forma que seja bom para todo mundo: escolas, alunos e professores. Além disso, é importante perceber que o bom sono não serve só para manter os alunos atentos no dia seguinte durante as aulas, mas também para consolidar o que se aprendeu na aula do dia anterior. “A falta de sono na noite anterior pode fazer com que o aluno não aprenda direito. Se ele dormir mal no dia seguinte, porém, ele vai aprender, mas seu aprendizado será menos flexível”, explica Paula Tiba. “Em laboratório, observamos que ratos aprendem a se localizar em um labirinto, mas se dormem mal no dia seguinte, fazem sempre o mesmo caminho. Se você bloquear esse caminho, ele tem dificuldade em achar uma alternativa.” Dormindo bem e sonhando, o cérebro reativa redes neurais ativadas durante o dia e transforma memórias de curto prazo em longo prazo, que poderão ser utilizadas depois, aproveitando ao máximo as informações.
A falta de sono também pode estar por trás de problemas de aprendizagem. “Alguns alunos que parecem ter dificuldade para acompanhar a aula podem na verdade estar com algum distúrbio do sono, como a apneia, que diminui o fluxo de oxigênio e atrapalha o aprendizado”, diz a neuropsicóloga Camila Cruz Rodrigues, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Por enquanto, a neurociência abordou aspectos periféricos da psicanálise. Mesmo assim, a aproximação entre duas áreas antes completamente apartadas é significativa. “Acreditamos que o pai da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud, tenha deixado um verdadeiro plano de pesquisa que poderá inspirar os neurocientistas em descobertas futuras sobre o funcionamento da mente”, diz Sidarta Ribeiro. Para os psicanalistas, a aproximação não causa grande surpresa. “Freud começou trabalhando com neurociência, mas optou pela clínica porque percebeu que não havia instrumentos para avançar no conhecimento da mente”, diz Tales Ab’Sáber, psicanalista e autor do livro Sonhar restaurado (Editora 34). Explicar o significado biológico dos sonhos, no entanto, não explica qual o significado do conteúdo do sonho para as pessoas. Nesse ponto, a psicanálise ainda é a única ferramenta disponível. No início do século passado, Freud observou que os sonhos são formados de desejos reprimidos durante o dia, quando os mecanismos de censura estão mais ativos. Geralmente, esses desejos são suprimidos por questões morais. Mas, de noite, a censura afrouxa, e os desejos podem se manifestar mais livremente. Mesmo de noite, porém, a censura ainda mantém alguma força, distorcendo a forma como os desejos se manifestam nos sonhos. Por isso, os sonhos geralmente são tão enigmáticos. Embora o sonho seja parecido com um filme que é projetado na mente, em alguns casos é possível entrar nesse filme e viver o sonho de maneira quase consciente. O chamado sonho lúcido acontece quando a consciência desperta, mas a pessoa ainda está sonhando, ou seja, em sono REM.
Ao contrário do que muita gente pensa, o sonho hoje não é mais o elemento central da psicanálise, e o fato de a pessoa se lembrar do sonho também não é fundamental para a busca do autoconhecimento mediante essa técnica. “O sonho é algo feito para ser esquecido; por isso, raramente lembramos.” Por outro lado, aquilo que é esquecido são elementos do nosso inconsciente que de alguma forma tentam voltar. O que a análise faz é convidar a pessoa a tratar desses elementos inconscientes”, diz Tales Ab’Sáber. “A análise não precisa se debruçar sobre os sonhos, porque ela segue a lógica do sonho.” Ou seja, assim como o sonho, a análise traz à tona aquilo que foi reprimido, para que a pessoa entre em contato com as próprias emoções. Uma vez feito isso, é mais fácil entrar em contato com a realidade.