NOTÍCIA

Edição 203

Descaminhos da hipercorreção

Corrigir muito a grafia de uma palavra sem esclarecer por que os erros acontecem também pode induzir a enganos

Foto: Pixabay

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Chama-se de hipercorreção ao processo que leva a corrigir também quando não se deve corrigir. Ou seja, na tentativa de ser correto, corrige-se demais.
As fontes da hipercorreção são duas. Uma é a própria variação linguística, que sempre envolve uma forma considerada correta e outra considerada errada. A segunda fonte é a vontade de ser correto.
Tomemos um caso como paradigma: o “l” de final de sílaba é, em geral, pronunciado como semivogal (como se fosse um “u”): assim, “maldade” se pronuncia “maudade”.
Uma das atividades escolares consiste em insistir na grafia correta. Ora, na mesma posição ocorrem semivogais “de verdade”, como em “cauda” (rabo). Uma das atividades escolares consiste em corrigir erros como “maudade”, o que levaria os alunos (e ex-alunos) a eliminar o “u” nesta posição. Mas o mesmo trabalho que leva a acertar a grafia de “maldade” leva a errar a grafia de “cauda”. Acrescente-se que existe também a palavra “calda”, a dos doces, o que ajuda a complicar a questão: no limite, alguém pode trocar “u” e “l”, escrevendo “cauda” quando deveria escrever “calda” e vice-versa (o mesmo ocorre em “auto / alto”, “mal / mau”).
Muitos erros de grafia se devem a este fenômeno. Ao lado de escritas como “hoge” (hoje) ou “pessa” (peça), previsíveis, dado o nosso sistema de escrita, ocorrem casos como os comentados acima.
Também há hipercorreções sintáticas, como o excesso de concordância. Uma das características do português “popular” é a diminuição das flexões verbais. A terceira pessoa do singular funciona como “curinga” das outras pessoas: casos extremos podem ser representados por “eu vou / você vai / ele vai / nós vai / vocês vai / eles vai”, conjugação na qual só a primeira do singular é diferente (parece inglês…). Ora, estas formas são corrigidas na escola, pelo menos quando se decoram as conjugações. É uma pena, mas dificilmente se constrói uma espécie de gramática contrastiva, o que seria bem interessante e penso que eficaz.
“Flexionar mais” parece ser um imperativo. Não seria estranho dizer que formas como “haviam muitas pessoas” e “fazem cinco anos” são efeito dessa vontade de acertar, de colocar verbos no plural, que é o que se cobra sempre…
Ênclises demais
Pelo mesmo mecanismo se podem explicar certos casos de ênclise, como “que (não) inscreveram-se”, pelo estigma associado às próclises, simbolizadas por formas como “me parece”, sempre condenadas. O resultado é o exagero de ênclises, que até substituem mesóclises: em vez de “mostrar-se-ia”, ocorre “mostraria-se”. Uma das razões é que “se mostraria” soa errado.
Um bom exemplo é o seguinte, que reú­ne dois casos de hipercorreção em uma só palavra (na verdade, numa só letra / som): uma placa ou faixa anunciando show com um cover de Renato Russo significa que um cantor executará músicas daquele roqueiro.
Possivelmente, mas não necessariamente, ele se vestirá como Russo se vestia ou procurará ter aparência semelhante à dele. Um cover de Elvis Presley sempre ostentará aquela cabeleira e vestirá camisas com aquela gola alta.
Um problema que pode aparecer nessa faixa ou placa é a grafia de “cover”. A que tem circulado pela internet é “colver”. De onde ela virá? Os idiotas da gramatiquinha (uma alusão à expressão “idiotas da objetividade”, de Nelson Rodrigues) di­rão simplesmente que é ridículo, gritarão “veja o nível de nossa escola” etc.
Estarão certos, em parte. De fato, deveria ter sido possível que todos escrevessem “cover”, que soubessem que é uma palavra inglesa etc.
Atualidades
Mas os fatos são diferentes. Muita gente apreende o sentido da palavra (desta e de outras tantas) com base em seu uso, em sua circulação em determinados contextos. E a emprega corretamente, exceto pela grafia, às vezes. Que não é aleatória, e revela dois traços do português atual.
Um desses traços é a eliminação de semivogais em muitos ditongos. Palavras como “outro / dourado”, além de “caixa / peixe” etc., são frequentemente pronunciadas sem a semivogal do ditongo: “otro / dorado / caxa / pexe”. Mas aprende-se na escola, mesmo se ela é um pouco precária, que essas palavras se escrevem “outro / dourado / peixe / caixa”. Ou seja, que há mais um elemento sonoro na sílaba, e não apenas a vogal.
Outro fenômeno comum em nossa língua é a vocalização do “l” em final de sílaba (só em final de sílaba!). A maioria diz “braziw”, com uma semivogal no final da sílaba, tal como diz “awto” (alto), azuw” (azul), “cawma” (calma) etc.
Quando se escreve, as dúvidas se instalam: como grafar a primeira sílaba de “ouro / dourado / cover”? Com ou sem ditongo? Se se decide pelo ditongo, como grafar o som “w”: com “u” ou com “l”?
Na palavra “cover”, a dúvida é dupla, como se vê: a) há ou não um ditongo na primeira sílaba (“cover” é como “otro”?)? b) se sim, como grafar o som “w”? Será uma semivogal (escrita “u”) ou uma consoante lateral (escrita “l”)? Se a decisão caminhar na direção das correções comuns, o resultado é a grafia “colver”.
Ditongo onde não tem
O autor da placa decidiu que a pronúncia comum era informal, que a escrita deveria expressar a forma padrão: e cometeu dois erros (deve-se reconhecer que suas hipóteses são finas, relativamente sofisticadas, apesar de erradas).
A “correção” consiste, usualmente, em casos como esse, em acrescentar um som às sílabas que deixaram de conter ditongo (já que a fala informal elimina o ditongo), e em colocar um “l” no lugar de um “u” (é o “l” que se converte em “u”, não o inverso).
Uma hipercorre­ção consiste em acrescentar um som mesmo quando não há ditongo (bandei­ja, professoura): o resultado, no caso, é “couver”. Outra hipercorreção consiste em substituir “cou” por “col”, porque se avaliou que o “u” é de fato um “l”.
Um dos casos mais incríveis de hipercorreção de que já ouvi falar é “Pallo” para “Paulo” – por se tratar de nome próprio bastante comum, se me perdoam o trocadilho. Explico: o escrevente imaginou que a sílaba “Pau” se escrevesse “Pal”, que a pronúncia “Pau” seria uma forma inovadora, e que, portanto, a grafia deveria seguir regras como a que se segue em “maldade”, pronunciada “maudade”…
Numa aula, um professor pode só corrigir. Mas, se souber explicar o que (provavelmente) aconteceu “na cabeça” do escrevente, isso fará dele um professor diferenciado. É mais ou menos como a diferença que há entre o professor de matemática que só manda aplicar uma fórmula e o que sabe o que ela significa. Um é matemático, e raciocina. O outro poderia ser substituído pelo segurança da escola.

Autor

Sírio Possenti, da revista Língua Portuguesa


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