NOTÍCIA
É primordial buscar correlacionar o que já se sabe há décadas em educação com o que todo o aparato teórico-metodológico da neurociência nos permite, atualmente, conhecer sobre o funcionamento do cérebro
Publicado em 15/12/2017
Está cada vez mais claro para a ciência que nosso cérebro evoluiu para as interações sociais. Inúmeros estudos com mamíferos, indo dos pequenos ratinhos aos grandes gorilas, evidenciam que estamos profundamente afetados por nosso ambiente social. Além disso, quanto mais nossa civilização evolui, mais se torna importante o papel das interações entre as pessoas, de modo que os laços sociais são determinantes para o nosso desenvolvimento integral como ser humano. Assim, do ponto de vista científico, nosso bem-estar depende necessariamente de nossas conexões com os outros.
Isso acontece porque nossas ações, sentimentos e pensamentos estão intrinsecamente vinculados à linguagem, que nasce e se desenvolve imersa em um mundo social. Com o avanço da neurociência, é possível entendermos cada vez mais os processos cerebrais envolvidos no desenvolvimento e uso da linguagem e suas relações com o pensamento e a comunicação. Contudo, o que ocorre nos cérebros de duas pessoas enquanto elas estão engajadas em uma interação social é muito pouco conhecido.
Dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, Margaret Wilson e Thomas Wilson, propuseram em 2005 um modelo teórico segundo o qual diversos “osciladores” existentes no cérebro seriam a chave para o processo de interação entre as pessoas. Eles são nada mais que populações de neurônios que apresentam, coletivamente, uma periodicidade, um ritmo em suas atividades. Esses osciladores endógenos já são conhecidos na literatura científica e estão ligados a uma série de processos cognitivos, como a percepção, o controle motor e a atenção. O que os autores fizeram foi estender a ideia de ativação acoplada ou sincronismo neuronal para entender o mecanismo das interações entre os indivíduos.
Segundo esses pesquisadores, durante uma interação social (como em um diálogo) vários osciladores no cérebro da pessoa que ouve têm sua frequência de atividade afetada por alguns dos osciladores do cérebro da pessoa que fala. E, nessa interação oscilatória, os dois cérebros se sincronizam. Uma boa metáfora para entender esse processo é a imitação. Quando uma criança imita imediatamente um gesto que alguém está fazendo, ela estaria em perfeita sincronia interativa: o que o outro faz leva a criança a fazer exatamente a mesma coisa justamente por causa da interação entre eles. Note que esse exemplo é metafórico, referindo-se apenas às semelhanças motoras dos gestos. Para Wilson e Wilson, esse processo é muito mais profundo e apontaria para uma capacidade humana intrínseca de perceber e produzir eventos de maneira sincronizada com outras pessoas em um ambiente social.
Essa proposição teórica recentemente tem sido colocada a teste dado o surgimento de uma nova técnica denominada hyperscanning. Ela permite investigar os mecanismos neurais durante as interações sociais em tempo real ao registrar, simultaneamente, as atividades neurais entre múltiplos sujeitos. Isso permite, por exemplo, registrar ao mesmo tempo os cérebros de duas pessoas envolvidas em uma conversa. Essa técnica tem sido aplicada tanto com ressonância magnética funcional (fMRI) quanto com eletroencefalografia (EEG), e os resultados obtidos até o momento têm sido bastante reveladores.
Uma pesquisa com EEG revelou uma sincronização na atividade cerebral de dois indivíduos quando eles tocavam guitarra juntos. Outro estudo, de 2016, que comparou o sincronismo neuronal de indivíduos em situações de cooperação ou competição, evidenciou uma sincronização significativamente maior de populações neuronais de determinadas regiões dos cérebros dos participantes quando cooperavam do que quando competiam.
Ao se pensar a escola, não há dúvida alguma acerca da influência do ambiente social e suas interações no desenvolvimento da criança. Assim, a necessidade de pesquisas que possam, da maneira mais natural possível, investigar o que ocorre no cérebro dos alunos durante uma aula é fundamental para quem trabalha com neurociência e educação.
Em uma pesquisa recente, publicada em abril de 2017, a pesquisadora Suzanne Dikker, da Universidade de Nova York, e colaboradores de outras instituições, como o Instituto de Linguística da Universidade de Utrecht e o Instituto Max Planck, investigaram o sincronismo entre os cérebros de estudantes em uma sala de aula real. Usando um equipamento de EEG portátil, os pesquisadores registraram simultaneamente a atividade cerebral de uma turma de 12 alunos do ensino médio em 11 aulas regulares distribuídas ao longo de um semestre. As medidas foram tomadas enquanto os alunos faziam diferentes atividades escolares, como assistir ao professor explicando um determinado conteúdo, ver vídeos sobre o tema e participarem de discussões em grupo, sempre em aulas de 50 minutos, aproximando-se o máximo possível das condições reais de uma sala de aula. O objetivo principal dos pesquisadores era explorar a hipótese de que a atividade neural sincronizada em um grupo de alunos seria capaz de predizer envolvimento em sala de aula e nas dinâmicas sociais. A ideia era encontrar possíveis marcadores neurais de engajamento social durante interações no ambiente escolar.
Os pesquisadores também combinaram a técnica de hyperscanning com autorrelatos dos estudantes com diferentes questionários, sobre como se sentiam ao longo das aulas, como era o professor, qual era a afinidade com os grupos, entre outros. Os resultados são muito interessantes e apontam para profundas discussões futuras. Por exemplo, eles encontraram evidências de que fatores individuais (como foco e traços de personalidade) contribuem fortemente para a sincronia cerebral. Isso implica que o sincronismo é um mecanismo que não ocorre por si só, dependendo unicamente do estímulo que o gera.
Eles encontraram também resultados bastante relevantes quando se pensa a sala de aula: a sincronização enquanto o professor falava comparada com o momento em que eles assistiam aos vídeos e quando participavam de discussões em grupo. Como esperado, a maior sincronicidade ocorreu ao se engajarem nas discussões. Mais que isso, tal sincronicidade estava correlacionada com a atenção sustentada desses alunos, revelando que a intencionalidade compartilhada pode ser um suporte para a cognição social em uma variedade de contextos sociopsicológicos.
Ao se comparar o professor palestrando com o vídeo, os resultados são reveladores: ainda que houvesse uma variação entre os alunos, a sincronia foi consistentemente maior para quando assistiam ao vídeo do que para as sessões de palestras. Contudo, quanto mais os estudantes avaliavam bem o professor, menor era a diferença de sincronia entre a sessão de vídeo e a de palestra.
Por fim, vale ressaltar um último resultado encontrado nessa pesquisa que relaciona o “olho no olho” com o sincronismo cerebral. Ao analisarem os dados ao longo dessas 11 aulas, os pesquisadores descobriram que a interação face a face antes da aula aumentava a sincronia cérebro-cérebro durante a aula. Para os autores, olhar no rosto do outro serviu de “gatilho” para a alocação de recursos envolvidos na interação interpessoal.
De maneira sumária, os autores advogam que os estilos de ensino, as diferenças individuais e a própria dinâmica social medeiam a atenção no nível neural. Para eles, esse processo afeta a sincronicidade neural dos estudantes, levando-os a se envolver mais ou menos nas tarefas. Assim, alunos menos engajados apresentam menores níveis de sincronia cérebro-cérebro com o restante do grupo, sugerindo assim que essa sincronização pode ser um marcador sensível para entender e prever as interações em sala de aula.
Sendo assim, com base nessas evidências é possível entender os sincronismos desses osciladores endógenos como elementos fundamentais do desenvolvimento cognitivo dos estudantes em um ambiente escolar. Mais que isso, é possível, assim, buscar compreender quais estratégias didáticas podem propiciar maior sincronicidade entre os estudantes e como isso afeta a aprendizagem. A pergunta agora é: como conciliar esses achados com o que já sabemos há décadas com os estudos em educação? Esse é o nosso desafio.
Quando nos debruçamos sobre as especificidades produzidas pelo campo da educação quanto à constituição e implementação dos processos de ensino e aprendizagem, identificamos uma longa história de aproximações e recuos com as teorias psicológicas sobre desenvolvimento humano. O princípio dessa história, todavia, explicita uma conjuntura de subjugação das práticas pedagógicas a uma espécie de algoz psicológico. Supostamente caberia à psicologia iluminar os passos que deveriam ser dados por professores na seara da atividade docente. Felizmente, a luta pela interrupção dessa conjuntura caminhou a passos largos e produziu avanços produtivos que, certamente, devem ser atribuídos a psicólogos e pedagogos. Por outro lado, e provavelmente em razão dessa subjugação sistemática, em alguns espaços significativos da realidade escolar, muitos educadores continuam e insistem em esperar que outras disciplinas ou campos de conhecimento lhes ofereçam a receita com os passos da realização da atividade pedagógica. Neste momento da história, o que notamos é que essa espera muitas vezes toma como fonte os conhecimentos produzidos pela neurociência. E, assim, uma vez mais nos rendemos todos – com mais ou menos intenção – à reprodução de uma circunstância que já sabemos que devemos combater. É uma tragédia denunciada.
Se a tomamos por denúncia é porque nos dedicamos ao intuito de alcançar seus determinantes de uma perspectiva genética. E, assim, não podemos nos furtar da tarefa de composição de um anúncio, ou seja, da oferta de possibilidades de superação que, no mínimo, também nos convide a todos a refletir de maneira mais consistente sobre os processos que constituem e definem as atividades de estudo e aprendizagem.
Nesse sentido, importa que retomemos a compreensão acerca do vínculo entre psicologia e pedagogia. Partilhamos a convicção teórico-metodológica de que, se esse vínculo for adequadamente compreendido, ele pode esclarecer a unidade que, realmente, constitui as dimensões biológicas, culturais, psicológicas e sociais da educação.
Na direção dessa compreensão adequada, devemos resgatar o marco da psicologia soviética que, ainda em 1927, acentuou a interface biologia e cultura na definição dos processos educativos. Não seria, portanto, apressado dizer que Vigotski, o eminente representante dessa escola, esclareceu que, na verdade, os dispositivos neurais nunca estiveram à margem dessa interface. O funcionamento cerebral é, exatamente, a base sobre a qual a cultura se assenta. Ela o transforma. Mas, sem eles, a possibilidade da transformação nem sequer existiria.
Para efetivarmos esse resgate, priorizamos a reflexão acerca de um dos conceitos oriundos da psicologia soviética mais disseminados no meio educacional: zona de desenvolvimento proximal. Não é incomum observarmos, seja em espaços de discussão acadêmica, seja no cotidiano de atuação dos professores nas escolas, a identificação da ideia de zona de desenvolvimento proximal com “a gota d’água”, o “clique” ou o “insight” que faltava para que a criança atingisse o nível de aprendizagem necessário estipulado por algum tipo de critério que, usualmente, também não se sabe precisar. Atrelada a essa compreensão, surge a ideia de mediação, definida como a tarefa de apoio, auxílio ou espécie de presença significativa que o professor oferece ficando “entre” o aluno e o conhecimento que ele deve acessar.
Anunciamos, pois, que endossamos aqui o entendimento de que essa é uma compreensão equivocada do conceito elaborado por Vigotski. Ao propor essa formulação, o psicólogo russo acentuava a relação entre a aprendizagem já alcançada e aquela que se pretende conquistar com o recurso do processo de instrução. Isso significa que as aprendizagens já consolidadas se vinculam àquelas que ainda podem ser conquistadas. É a compreensão de que “aquilo que pode ser” de alguma forma já está expresso “naquilo que é”. Para a psicologia histórico-cultural, os conhecimentos científicos universalizados pela cultura humana devem ser transmitidos pelos professores na escola porque as funções psíquicas superiores (atenção, pensamento, memória etc.) só se desenvolvem na presença de conhecimentos que as requeiram. Assim, essas funções essencialmente humanas constituem-se como função da ação consciente e sistematizada de sujeitos competentes. Desse modo, por exemplo, o desenvolvimento da palavra tece bases que avançam e precipitam movimentos cada vez mais elaborados do pensamento. A mediação, portanto, vincula-se ao conceito de zona de desenvolvimento proximal, mas de maneira diferente. Ela constitui-se com o recurso dos signos, objetos eleitos pelo professor, que, por essa razão carregam a universalidade produzida pela cultura e acessam a singularidade dos sujeitos que se desenvolvem. Nesse sentido, não deveríamos falar em zona de desenvolvimento proximal, mas sim em zona de desenvolvimento iminente. Assim, enfatizamos de maneira mais fidedigna a iminência daquilo que deve ser produzido por meio da ação sistematizada e consciente do professor.
As evidências científicas que anunciam os processos neurais envolvidos no chamado sincronismo cerebral materializam a unidade acentuada por Vigotski entre os processos culturais e biológicos que marcam o desenvolvimento humano. E acreditamos que a sincronicidade neuronal ocorra justamente dentro da zona de desenvolvimento iminente. Eis, agora, mais uma vez nossa defesa primordial: a prática educativa é o coração dessa unidade. E exatamente por isso cabe a todos nós, que de muitas maneiras lidamos com a educação, o entendimento de que biologia, cultura e interação social são dimensões que a constituem integralmente. Com isso, queremos dizer que, se avançamos na compreensão dos processos que determinam o seu funcionamento biopsicossocial, avançamos também na direção da organização dos procedimentos didáticos que podem conduzir a sua operacionalização de maneira cada vez mais eficiente.
Vigotski afirmou que o desenvolvimento segue rumos revolucionários e que o encontro humano é muito mais do que uma interação que influencia nossos modos de agir no mundo. Ele produz, isso sim, transformações genéticas, psiquismos que se desenvolvem conjuntamente porque se conectam materialmente. Ansiamos que essa reflexão assuma os contornos de um convite à compreensão de que aquilo a que nos dedicamos é um fenômeno único, mas multideterminado. Não é uma disputa. Mas carece sempre de que não abramos mão do rigor.