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Arte e Cultura

Uma história de terror e de amor

Gabriel Perissé escreve sobre livro de contos assustadores de Liudmila Petruchévskaia

Publicado em 17/05/2018

por Gabriel Perissé

terror

Crédito: Shutterstock


A biblioterapia é a terapia da leitura. Leitura cura tudo. Ou quase tudo.
Mas há outro tipo de terapia, anterior a esta, que consiste em visitar a livraria em busca de autores desconhecidos. É uma aventura que nos ensina a correr riscos. O risco da decepção. Ou o risco da alegria.
Fui recentemente à livraria, disposto a me surpreender com alguma escolha. Descartei o que conhecia, ou o que soava familiar. Evitei as temáticas com as quais tenho convivido. Abri mão dos gostos pessoais e dos hábitos arraigados. Fui atrás do novo, que pode ser valioso ou frustrante.
Não me deixei seduzir por títulos que oferecessem ajuda, prazer, ideias geniais, que prometessem sucesso, vitória ou dinheiro. Teria de ser algo que me tirasse do sério. Que tocasse o meu avesso. Que me fizesse sair da rota da rotina.
Deparei então com uma capa vermelha e o desenho de um gato preto. O gato olhando para o futuro leitor lhe diz, e este é o título: Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha. A autora chama-se Liudmila Petruchévskaia. Nasceu na Rússia. Ela teve a ideia de transformar o gato em anunciador dessa coletânea de contos. Há um subtítulo: “Histórias de contos de fadas assustadores”. Senti vontade de ficar assustado, como no tempo da infância, quando algumas leituras e filmes me roubavam o sono.
Na mesma capa vermelha, ao lado do gato, a editora (Companhia das Letras) achou por bem salientar que o livro é um best-seller nos Estados Unidos e que em algum momento ganhou, entre outros, o prestigioso prêmio World Fantasy. Essas informações poderiam me desestimular, mas dou pouca atenção à opinião e à fantasia alheias. Vou adquirir o livro assim mesmo.
Alguém não pode ser ninguém
terror

Divulgação


Escolho um dos contos, aleatoriamente. O conto chama-se A lanterna. Boa ideia! Estou precisando de uma luz.
O começo parece simples e despretensioso:
Certa vez, numa noite de inverno, uma jovem estava voltando de trem elétrico para casa na aldeia. Não era longe para ir andando, mas a estrada passava por uma pontezinha e seguia para cima, pelo campo.
É nesse início, tão modesto, que reside o grande perigo. Que imprudência é essa, menina? Como pode uma jovem como você andar sozinha à noite, mais ainda durante o inverno russo? Onde está com a cabeça? Não venha me dizer que “não é longe”. E ninguém me convence de que essa “pontezinha” seja segura. A narradora insinua com sua breve descrição que o caminho esconde problemas.
Foi quando a menina viu uma luz, ao longe, como se alguém estivesse segurando uma lanterna. O raio de luz incidia bem nos seus olhos. Não havia ninguém ao redor, mas alguém poderia estar na trilha, segurando a lanterna no meio da escuridão.
O desconhecido nos amedronta. O pronome indefinido “alguém” mete medo em qualquer um. Será um assaltante? Um psicopata perdido na noite? Seres extraterrestres que descobriram vida no Universo, e essa vida somos nós? Um espírito luminoso cujas reais intenções são misteriosas e obscuras?
A neve caindo. A luz da lanterna fascinando os olhos da jovem. Atraindo os passos da jovem. O coração da jovem batendo mais forte. Uma explosão em local um tanto distante dali ilumina o céu da noite por alguns minutos. E de novo a escuridão toma conta de tudo.
Já não sabia direito para onde estava indo. Perdeu a noção de tempo. Como chegará em casa? Seus pais devem estar preocupados. De fato, estão. E agora? Lembrou-se da querida avó Pólia. Que lhe contava histórias sobre pessoas que haviam se perdido no meio da neve. Que morreram congeladas. Vovó Pólia faleceu faz pouco tempo.
A moça chora. A luz da lanterna continua ali à frente. O coração acelerado. A boca seca. A garganta ardendo. E de repente percebe que entrou, sem querer, num cemitério. Vislumbra um monte de cruzes. Túmulos. Não era um cemitério qualquer. Ali estava enterrada sua avó Pólia. E era do túmulo da avó que vinha a luz da lanterna. Que agora se apaga.
A história continua
A explosão que ela viu ao longe foi a de um gasoduto que estava em seu caminho de sempre. Bem na trilha que ela iria, como de hábito, percorrer mais uma vez. A luz da lanterna desviou seus passos do perigo. Seus pais, cientes da explosão, já imaginavam que a filha havia morrido.
Mas a jovem não foi atingida pela explosão, e sim pela luz da lanterna. Não morreu, não foi chamada por Deus, mas foi chamada pela avó Pólia, que a salvou. Foi a avó que acendeu a lanterna no meio do breu. O cemitério nem sempre é fonte de trevas e terror.
A história continua em novas trilhas. Ler livros de autores desconhecidos, sobre questões diversas, optar por gêneros literários diferentes dos favoritos são formas de nos expormos a visões variadas, que levam nossos passos para outros mapas existenciais.
Mas há ainda um outro personagem na história:
E então alguém tocou de leve sua luva, e depois a pegou e a puxou para o lado. A jovem abriu os olhos e viu um pequeno cachorro peludo que, sorrindo, olhava para ela. Na mesma hora sentiu a alma mais leve. A moça olhou pela cerca: a luzinha no cemitério havia apagado. O cachorro puxou a jovem para o lado mais uma vez. A jovem estava numa trilha batida, bastante larga […]. E então ela saiu correndo a toda a velocidade por aquela trilha encontrada, e o cachorro imediatamente ficou para trás.
O sorriso do cachorro que apareceu do nada é sinal de amor pedagógico. Ele conduz a moça para um caminho melhor. A luz da lanterna e o cachorro sorridente dão leveza à alma da menina.
Toda leitura pode ser uma aula esclarecedora. Mesmo quando nos sentimos absolutamente perdidos. Liudmila Petruchévskaia acendeu uma luz para seus leitores. Do outro lado do planeta, acenou para nós.

Leia também:

http://www.revistaeducacao.com.br/livro-nao-se-empresta-e-nem-se-devolve/

Autor

Gabriel Perissé


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