Especialistas aconselham prudência diante de evidências de que o uso abusivo de games está associado a alterações cerebrais (foto: Shutterstock)
Há aproximadamente 20 anos tive a oportunidade de visitar escolas de educação infantil no Canadá. Eu e outros pesquisadores brasileiros que participavam da visita ficamos fascinados com a desenvoltura com que crianças brincavam com
tablets rudimentares. Atualmente, percebemos que os jogos digitais, praticados
online ou
offline, nos
smartphones ou nos computadores, vieram para ficar. Estima-se que o número de jogadores digitais chegue a 80% da população em países desenvolvidos. E o fascínio passou a conviver com a crescente preocupação por parte de pais e educadores em relação aos eventuais riscos a crianças e adolescentes, tanto pelo conteúdo quanto pelo tempo dispendido. Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um trabalho que aumentou essa preocupação. A Classificação Internacional das Doenças (CID), publicada pela OMS, é o principal documento que norteia os diagnósticos médicos em todo o mundo. Em maio de 2019 será apresentada a 11ª versão (CID-11), a qual passará a valer a partir de 2022. A inclusão do “
gaming disorder” (que poderia ser traduzido como transtorno da dependência por jogos digitais) entre os comportamentos aditivos tem causado polêmica entre especialistas.
A versão preliminar da CID-11 define
gaming disorder como um transtorno caracterizado por um padrão de comportamento no qual o controle sobre o jogo está comprometido – há um aumento da prioridade dada ao jogo sobre outras atividades e ocorre sua manutenção apesar das consequências negativas. A Organização Mundial da Saúde argumenta que tomou a decisão baseada em uma extensa revisão das evidências globais, mas essa posição está longe de ser um consenso entre pesquisadores da área.
De acordo com a proposta da OMS, para que o transtorno seja diagnosticado, o padrão de comportamento precisa ser suficientemente severo para comprometer a vida pessoal, familiar, social, educacional ou ocupacional durante ao menos 12 meses. Outro importante manual, o DSM, em sua quinta versão, publicada em 2013, incluiu
internet gaming disorder como uma condição que merece estudos futuros, mas sem sua caracterização para um diagnóstico clínico.
No início de 2018, um grupo formado por dezenas de especialistas na área publicou artigo na revista científica
Journal of Behavioral Addictions, no qual expressavam suas discordâncias em relação à inclusão do novo transtorno na CID-11. Eles concordam que jogadores podem vivenciar problemas decorrentes de seus padrões de comportamento. Entretanto, não está claro se estamos diante de uma nova entidade nosológica (classificatória). Argumentam que a proposta é prematura e tem base científica fraca, pois carece de validação científica e fundamentos teóricos mais sólidos. Ainda segundo os autores do artigo, será mais um de outros tantos transtornos cujos profissionais terão enorme dificuldade em separar o comportamento “normal” do “patológico”, levando a uma enorme quantidade de falsos diagnósticos com consequências sociais e econômicas. Ao final, solicitam a remoção da categoria da nova versão da CID.
Concordo com grande parte dos argumentos utilizados pelos autores do artigo. A definição do transtorno é vaga, o que vai contribuir para a ocorrência de falsos diagnósticos. A OMS se apoia em estudos que mostraram correlações entre padrões comportamentais e a prática de jogos digitais, mas não existem evidências de relações causais. Além disso, não há distinção entre casos leves, moderados ou severos – ou seja, o corte é seco: portador ou não portador do transtorno.
Outro aspecto se refere ao risco da estigmatização de crianças e adolescentes para os quais os games fazem parte de uma vida saudável. Talvez não exista uma diferença substancial entre games e outras formas de lazer. Corremos o risco de abrir espaço para outros diagnósticos, envolvendo esportes, dança, alimentação, jardinagem ou qualquer outra atividade? Indo um pouco mais longe, devemos evitar que os direitos das crianças de jogar e participar de ambientes digitais sejam violados, preservando assim sua liberdade de expressão.
Esta crítica à posição da OMS não significa que não devemos nos preocupar com o comportamento de crianças e adolescentes em relação aos games. Quando utilizados em excesso, eles podem trazer sérios prejuízos acadêmicos, sociais e emocionais. Há inúmeras evidências de que o uso abusivo de dispositivos digitais está associado a alterações funcionais do cérebro.
Entretanto, em nome da prudência, na falta de melhor caracterização de uma possível entidade nosológica que permita um diagnóstico, devemos acompanhar o comportamento cotidiano. Ele ou ela passa mais tempo nos games ou em brincadeiras com outras pessoas? Nos games ou em atividades de estudo? Quando solicitado, consegue parar a atividade para participar de uma refeição ou conversa em família? Consegue interromper a atividade para se preparar para dormir? Perguntas simples, mas cujas respostas podem sinalizar para a necessidade de uma intervenção, sem precisarmos aguardar um diagnóstico médico que, nesse caso, pode trazer mais problemas do que soluções.
Leia também:
http://www.revistaeducacao.com.br/seriadomerli/