NOTÍCIA
Publicado em 06/03/2019
Por: João Jonas Veiga Sobral*
Nunca se produziu tanto texto escrito quanto agora, em tempos de redes sociais. De posse de um computador ou de um celular, todo indivíduo é um produtor de texto, difusor de ideias e intérprete de opiniões alheias. São tempos de escrita e de leitura. Tempos perigosos, porque a capacidade de algumas cabeças compreenderem aquilo que se enuncia e se anuncia não acompanha a velocidade dos dedos que escrevem.
Vale retomar a máxima de Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. O educador sugere que aquele que não compreende a realidade, as suas correlações e implicações, não entende a palavra, refuta o contexto e impõe aos fatos uma leitura, às vezes, equivocada, enviesada e repleta de predisposições.
Quando o leitor é tomado por ranços ou ignorância, ele é incapaz de compreender as evidências mais claras e óbvias disponíveis no texto. Descarta o contexto, os fatos e os indícios e entende o que lê com uma fé anterior inabalável, como se carregasse consigo uma leitura prévia do texto. Esse tipo de leitor é a causa das famosas fake news. Ele é o adubo que fertiliza os absurdos que se publicam por aí, porque sua leitura de mundo é a predisposição necessária para que textos ou situações inverossímeis encontrem amparo, guarida e obtusa sustentação.
Qualquer texto alucinado encontrará respaldo em um consórcio prévio entre o leitor e sua crença, e – por outro lado – qualquer texto razoável receberá a descrença absoluta ou uma interpretação convenientemente distorcida, gerada pela mesma motivação.
Para complicar a compreensão daquilo que se comunica, há também as relações de afeto que atuam no texto de maneira a conformá-lo com a relação pré-estabelecida. Chico Buarque, na pungente canção “O meu guri”, mostra o esforço de uma mãe na interpretação dos fatos. Ela nega as evidências e acolhe os acontecimentos, os episódios e as mercadorias trazidas pelo filho amado como sinal da vida próspera de seu rebento.
“Chega suado e veloz do batente / Traz sempre um presente pra me encabular / Tanta corrente de ouro, seu moço / Que haja pescoço pra enfiar / Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro / Chave, caderneta, terço e patuá / Um lenço e uma penca de documentos / Pra finalmente eu me identificar, olha aí!”
Evidentemente, a mãe, a despeito dos fatos, despreza a possibilidade de aventar que seu filho seja um menor contraventor e que os presentes são resultados dos furtos do filho. Na canção, o que pode parecer mera ignorância da mãe passa a ser também pena e solidariedade do leitor diante da dor materna. Chico oferece duas possibilidades de leitura irônica e duas possibilidades de não enxergar o texto. Nas ironias propostas, resta saber se é a mãe do guri ou a leitura do enviesado leitor da letra da canção.
Talvez o universo imediato e raivoso da internet não permita ao leitor a apreciação e a contextualização adequadas do texto e do autor. Daí é um passo para a destilação do ódio pautado em uma interpretação enviesada, apressada e presunçosa.
Umberto Eco vaticinou: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.
Nos tempos atuais, há quem se incomode com as fake news. Creio que elas sejam apenas filhas da “pré-crença” que embota os sentidos e a razão e impõe ao texto uma verdade anterior à proposta nele.
* João Jonas Veiga Sobral é professor de Língua Portuguesa e orientador educacional
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