NOTÍCIA
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, que pode ser extinto em 2020, teve nos últimos nove anos, apenas 8,24% da arrecadação de impostos redistribuída a estados e municípios
Publicado em 01/05/2019
Com uma carga tributária de 32,43% de tudo o que o país produz (Produto Interno Bruto, o PIB), o Brasil é considerado uma das nações que mais cobram impostos no mundo. Uma parte desses recursos é direcionada para a educação, que atualmente recebe cerca de 6% do PIB, com a possibilidade de aumentar esse investimento para 10% até 2024, segundo a meta 20 do Plano Nacional de Educação, cuja intenção é ampliar os recursos públicos no setor.
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Embora haja algumas tentativas de melhorar o modelo educacional brasileiro com pouco recurso financeiro, especialistas são quase unânimes em dizer que é impossível fazer educação de qualidade sem um bom aporte governamental.
Criado em 2007 para ajudar a financiar a educação pública no país e para substituir o antigo Fundef, atualmente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) é composto por uma cesta de 20% de impostos arrecadados por estados e municípios – com complementação da União – e redistribuídos por repartição de receita. Assim, todo o dinheiro do Fundo é redistribuído por número de matrículas, de modo que haja uma equalização no âmbito de cada estado do valor disponível por aluno para todas as redes municipais e estaduais de ensino.
Um levantamento feito pela revista Educação – a partir de dados divulgados pelo Tesouro Nacional e pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) – revela que nos últimos nove anos os recursos redistribuídos pelo Fundeb para os 26 estados, além do Distrito Federal, a partir de impostos como o ICMS, IPI, IPVA, ITCMD e ITR representam apenas 8,24% do total arrecadado pela União e pelos próprios estados entre os anos de 2010 e 2018 em todas as unidades da Federação.
Estados com menos recursos (como Ceará, Alagoas e Bahia, por exemplo) recebem retorno de cerca de 5% da sua arrecadação através dos recursos do Fundeb. No Maranhão, que possui municípios mais pobres e tem mais participação do Fundo percentualmente, só se conseguiu redistribuir para o estado 4,3% da arrecadação total dos impostos mencionados, o menor índice do país.
“O Fundeb representa ajuda mútua e colaborativa entre os entes, ou seja, falar deste Fundo representa pensar na educação como um todo e não em um estado da Federação específico. A redistribuição desproporcional é decorrente do critério de distribuição dos recursos, que tem por base a quantidade de matrículas nas escolas públicas e conveniadas. Os dados apresentados pela revista Educação indicam a aplicação do princípio da solidariedade, essencial ao federalismo cooperativo, modelo de organização do Estado adotado pelo Brasil”, afirma Felipe Costa Camarão, secretário de Educação do Maranhão.
Já o Rio Grande do Sul, um dos estados mais ricos da Federação e com 8,70% de retorno dos recursos do Fundo, acredita que o atual modelo do Fundeb recompensa apenas os municípios e acaba onerando os cofres estaduais.
“A sistemática do Fundeb faz com que os estados transfiram mais recursos para o Fundo do que recebem de retorno. O Rio Grande do Sul, por exemplo, teve perdas financeiras próximas a R$ 1,5 bilhão com o Fundeb em 2018, e a previsão para o conjunto dos estados passa dos R$ 30 bilhões, com tendência crescente”, aponta a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul.
Autor do estudo técnico n° 24/2017 da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (Conof/CD), em que é demonstrado que municípios de nível socioeconômico alto dispõem de 79% mais dinheiro por aluno que os municípios de nível socioeconômico baixo, o consultor Claudio Riyudi Tanno explica que a efetivação do Fundeb representou uma minirreforma tributária, de modo a promover uma repartição de impostos mais equitativa, no âmbito de cada estado.
“Há transferências líquidas dos governos estaduais a municípios, da ordem de R$ 25 bilhões anuais, muitas vezes tratado como perdas. Municípios de pequeno porte também perdem recursos. Para os parlamentares, em vista da situação fiscal de estados e municípios, haveria uma maior resistência a alterações que repactuem essa repartição tributária”, salienta o consultor legislativo.
Tanno ainda diz que o fim do Fundeb, previsto para acontecer no dia 31 de dezembro de 2020, segundo a Emenda Constitucional nº 53, promulgada em 19 de dezembro de 2006, geraria o colapso financeiro dos municípios.
“Sem o Fundo, os municípios aplicariam 25% de seus impostos, o que é insuficiente para cobrir as despesas de pessoal, cujo comprometimento pode ultrapassar 90% dos recursos do Fundeb em municípios com essa dependência. Haveria o colapso das finanças municipais”, alerta.
Além do ICMS, IPI, IPVA, ITCMD e ITR, a cesta tributária do Fundeb também é composta pelo Fundo de Participação dos Estados (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM), Desoneração das Exportações (LC nº 87/96), receitas da dívida ativa e de juros e multas incidentes.
Com a previsão de expirar no final de 2020, diversas são as especulações e as propostas para que se desenhe um novo modelo do Fundeb, em que haja ainda mais equidade e um mecanismo mais redistributivo para estados e municípios.
Além disso, duas Propostas de Emenda Constitucional (PECs), uma no Senado e outra na Câmara dos Deputados, pretendem incorporar o modelo de redistribuição do Fundo à Constituição.
Apresentado pela deputada federal reeleita professora Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), uma das ideias da PEC 15 é aumentar a porcentagem de complementação da União de 10% para 30%.
“A União deveria contribuir mais com essa cesta do Fundo e mais estados e municípios passariam a receber maior complementação da União, havendo assim uma melhor redistribuição de recursos em nosso país”, opina o presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima.
Todos os anos o Ministério da Educação determina um valor mínimo anual por estudante na redistribuição dos recursos do Fundeb, que é válido para todo o país.
De acordo com a Portaria Interministerial 6/2018, no ano passado esse valor foi de R$ 3.227,36. Aqueles que não atingem o valor mínimo acabam sendo contemplados pelo repasse da União. Em 2018, receberam os repasses os estados de Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí, além dos seus respectivos municípios.
Segundo o especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Camillo de Moraes Bassi, estados e municípios poderiam investir diretamente no Fundeb o mínimo constitucional – 25% de toda a arrecadação – destinado a educação.
Para ele, um novo Fundeb pode acumular recursos suficientes à implantação do CAQi, mecanismo criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação que traduz em valores o quanto o Brasil precisa investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da Educação Básica Pública, para garantir, ao menos, um padrão mínimo de qualidade do ensino.
“A alavancagem do Fundeb via incorporação dos mínimos constitucionais seria uma maneira de induzir uma maior participação da União – uma espécie de soft power, já que a complementação tem como limite mínimo a somatória de todos os fundos estaduais – ocorrência que não pode ser desprestigiada”, comenta o pesquisador.
Advogada da área educacional e mestre em Direito pela FGV/SP, Alynne Nayara Ferreira Nunes acredita que essa discussão sobre os repasses da União ganhará força durante o ano legislativo. “A União tem mais condições financeiras e tributárias para destinar mais recursos à educação, do que os estados e municípios – muitos em grave crise fiscal e que dependem do repasse dos recursos do Fundeb para manter funcionando minimamente sua estrutura educacional”, destaca.
Para o coordenador de projetos do Todos pela Educação e participante do grupo de especialistas que se dedicam à formulação de propostas para um novo Fundeb, Caio de Oliveira Callegari, o Fundo funciona, na verdade, como uma espécie de “Robin Hood”, repartindo recursos de quem tem muito com quem tem pouco. Na prática, o Fundeb permite que os municípios mais pobres, em média, dobrem a disponibilidade de recursos para investir por aluno (valor aluno/ano).
“Se o município tem pouco recurso para o número de alunos que tem, ele vai ser um recebedor líquido do Fundeb. Um município que tem muito imposto e pouco estudante perde para o Fundeb porque ele manda 20% dos seus impostos e recebe pouco de volta. É esse processo de tirar de quem tem muito e dar para quem tem pouco. A ideia é que nós nos aproximemos de um patamar de equidade que seja razoável através de condições financeiras também equalizadas para investimento por estudante da educação básica”, aponta o especialista.
Com pouco mais de 70 mil habitantes, segundo o IBGE, o município de Santa Luzia, que fica a 294 quilômetros de São Luís, no Maranhão, arrecada pouco imposto e por isso está entre as cidades que mais recebem verbas percentualmente do Fundeb (se levado em conta o número de matrículas e o valor aluno/ano). No ano passado, esse percentual foi de 88,7% dos R$ 3.238,58 gastos por aluno no município.
Abastecida por uma economia simples baseada na agricultura e na pecuária, Santa Luzia possui mais de 17 mil alunos matriculados em todos os níveis da educação básica em 154 escolas com 1.200 profissionais ligados ao magistério, além de 496 pessoas que trabalham nessas escolas. Neste ano, a cidade deve receber mais de R$ 60 milhões de recursos oriundos do Fundo. A população teme pelo fim do Fundeb.
“Desconsiderar as receitas do Fundo seria decretar o fim do nosso sistema de ensino. Além disso, jamais teríamos condições de pagar o piso salarial nacional dos nossos docentes”, afirma o secretário de Educação do município, Antonio da Silva.
Assim como os alunos, professores e funcionários do município de Santa Luzia, milhões de pessoas ligadas à Educação serão afetadas com a falta de recursos provenientes do Fundeb caso ele seja mesmo extinto no fim de 2020.
Um estudo do movimento Todos pela Educação mostra que, em 4.810 municípios brasileiros, o Fundeb corresponde a 50% de tudo o que se gasta por aluno a cada ano. Em 1.102 desses municípios, a participação do Fundo chega a 80% do total. Além disso, 60% de todo o dinheiro do Fundeb serve para pagar salários de professores.
“O fim do Fundeb traria um caos para as redes de ensino do país. Se o Fundeb deixar de existir essa fonte de recursos vai secar. Ao secar, as redes de ensino não vão ter condição de pagar professor, comprar uniforme, merenda, pagar transporte escolar. Além disso, boa parte dessas redes que vivem com o dinheiro do Fundo atendem estudantes de nível socioeconômico mais baixo. Acabar com esses recursos faria com que voltasse uma grande desigualdade em termos de recursos a disposição, porque o dinheiro voltaria para os municípios mais ricos, enquanto os municípios mais pobres não teriam mais o dinheiro do Fundo”, alerta Callegari.
Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao MEC e responsável pela administração do Fundeb, somente em 2018 foram investidos R$ 149,2 bilhões na educação infantil, ensinos fundamental e médio, além da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Dados do próprio FNDE ainda mostram que os recursos aplicados na educação básica a partir do Fundeb quase triplicaram entre 2007 e 2015. Nesse período, estados e municípios receberam mais de R$ 844 bilhões do Fundo para investir em educação.
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