Os primeiros dias do presidente Jair Bolsonaro no poder vêm sendo marcados pelo anúncio de medidas e intenções polêmicas em quase todas as áreas. Algumas delas dividiram fortemente corações e mentes de especialistas, professores, gestores e instituições no ambiente da educação. Entre essas decisões que balançam o setor está regulamentar legalmente a prática da Educação Domiciliar (ED), ou Doméstica, ou Familiar, ou Homeschooling, no Brasil.
No segundo semestre de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em caráter liminar, que o ensino realizado em casa, embora não proibido explicitamente pela Constituição, deve ter seu escopo definido e aprovado pelo Congresso, pois a presença obrigatória das crianças e jovens é exigida por lei no país. Na prática não proíbe, mas também não garante.
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Agora, autoridades dos ministérios da Educação e da Família anunciam ter em mãos o texto pronto de uma medida provisória (MP) sobre o assunto, que deverá ser editada a qualquer momento pela Presidência da República. A partir da colocação da MP em campo, deputados e senadores terão 60 dias, prorrogáveis por mais 60, para decidir sobre a legislação.
Educação ouviu defensores e críticos da oficialização da ED para contribuir com o debate em busca do melhor caminho na questão. Entre um lado e outro, cerca de 15 mil estudantes de 7,5 mil famílias brasileiras envolvidas atualmente com a ED, de acordo com a Associação Brasileira de Educação Domiciliar (Aned), aguardam uma solução.
Os críticos afirmam que a modalidade impede o processo pleno de socialização das crianças e jovens, algo só possível, segundo eles, no ambiente escolar. Argumentam ainda que ED é uma forma de os pais isolarem os alunos da discussão de temas fundamentais para a evolução do aprendizado por motivos religiosos, morais e ideológicos.
“A homeschooling impede o aluno de receber o conhecimento adquirido nas atividades em conjunto”, criticou, em conversa recente com a reportagem, o sociólogo e consultor educacional Cesar Callegari, que foi conselheiro do Conselho Nacional de Educação, secretário de Educação Básica do MEC e de Educação da cidade de São Paulo. “Aprender com a diversidade é direito de todo aluno. Esse processo inclui movimentos ligados ao interesse de certas correntes religiosas e até seitas. Isso é negativo. Fere os fundamentos do Estado brasileiro”, acrescentou ele.
O publicitário Rick Dias, presidente da Aned, discorda frontalmente. “A discussão nesses termos me parece desleal. Entendemos de escola porque estivemos lá, mas os educadores contrários no Brasil não entendem nada de homeschooling porque jamais a fizeram, estudaram o tema ou mergulharam em pesquisas internacionais sobre o assunto. Minha mulher e eu educamos dois filhos em casa: um está no segundo curso superior e outro deverá entrar na graduação em 2019. Falo do que conheço”, acusa.
Callegari é contundente: a ED interessa a correntes religiosas e seitas, além de ferir os fundamentos do Estado brasileiro (foto: divulgação)
“Se a Constituição menciona pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas, não podemos conceber que a escolarização seja a única maneira de transmitir conhecimento. Não somos e nunca fomos contra a escola. Tampouco defendemos sua extinção e jamais iremos demonizá-la. Apenas fizemos a opção que entendemos ser a melhor para nossos filhos. Pais de família corretos, pagadores de impostos, cumpridores de seus deveres, não podem sofrer pressões jurídicas e até ameaça de perder a guarda de seus filhos por causa da opção pela educação doméstica”.
Dias afirma que, ao contrário do que os críticos deixam a entender, há adeptos da ED de todas as origens e classes sociais. “O homeschooling é para todos – mas não é para todo mundo. Então para quem é? Para negros, brancos, evangélicos, católicos, ateus, budistas, pobres e ricos? A rigor, é para quem a quer. São pais que estão descontentes com o modelo educacional, o ambiente da escola ou as duas coisas juntas – e têm esse direito. Nossa luta nunca foi nem nunca será contra a escola, e sim pela autonomia educacional das famílias.”
O presidente da Aned chama atenção também para o que considera “uma avaliação absurdamente equivocada e exagerada” dos críticos ao identificarem na educação doméstica uma ameaça aos sistemas e redes educacionais brasileiros e à formação de gerações futuras.
“A educação doméstica é hoje legalizada em mais de 60 países nos cinco continentes. Muitos a regulamentaram há uma, duas décadas, ou mais. Em todos os casos, a quantidade de alunos domiciliares, se comparada ao total incluído no sistema escolar, é mínima, na maioria dos casos até residual. Nos Estados Unidos, onde há, disparado, a maior quantidade, eles não passam de 2,5 milhões. Em outros países, não chegam a 250 mil e, na maioria, sequer aos cem mil. No Brasil, temos hoje 15 mil num universo de mais de 40 milhões de alunos. Ainda que isso se multiplique por dez, será pouco”, contabiliza.
“É um equívoco completo imaginar que essas pequenas parcelas de alunos ameaçam qualquer política ou plano estratégico educacional de um país, mesmo ao longo prazo. Defendemos a ED como mais uma opção de liberdade, como convém às democracias, jamais como algo contra ou em detrimento da educação tradicional em escolas e redes”, defende.
Édison Prado de Andrade é advogado, professor e diretor da Associação Brasileira de Defesa e Promoção da Educação Familiar (ABDPEF). Sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo tem o título “Educação Familiar Desescolarizada e o Direito da Criança e do Adolescente: relevância, limites e possibilidades na ampliação do direito à educação”. Além da pesquisa, tem no currículo defesas, com sentenças favoráveis, de famílias que optaram pela ED. Em entrevista à
Educação, destacou pontos jurídicos importantes sobre o tema.
Ele esclarece que a emenda nº 59, de 2009, que altera o inciso Iº do artigo 208 da Constituição, estabelece que é dever do Estado brasileiro garantir a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos 17 anos, assegurando também sua oferta gratuita para todos os que não tiveram acesso na faixa etária definida.
O especialista detalha a situação na prática. “Ainda não existe uma definição legal sobre a prática da educação familiar. Há apenas dispositivos constitucionais que sugerem a obrigatoriedade de matrícula e frequência nas escolas”, posiciona.
“Participo diretamente da luta pela regulamentação da modalidade, como defensor de famílias em processos e recursos no STF para garantir o direito de ensinar seus filhos em casa. A rápida definição de uma legislação sobre o assunto terá importância fundamental para evitar o risco de se jogar na ilegalidade famílias que demostram que seus filhos aprendem mais em casa do que na escola. Um sistema marcado fortemente pela exposição das crianças a situações negativas, bullying, violência e até mesmo episódios de morte, como infelizmente vimos recentemente na escola Raul Brasil, em Suzano, na região metropolitana de São Paulo. Os homeschoolers são felizes estudando ao lado dos pais e irmãos. Por que não aceitar legalmente essa realidade?”, pergunta.
Rick Dias, presidente da Associação Brasileira de Educação Domiciliar: luta pela autonomia educacional das famílias – e não contra a escola (foto: divulgação)
Os argumentos de Dias e Andrade não são, contudo, suficientes para convencer grande parte dos educadores. “Escola e família são instituições complementares, e não capazes de substituir, uma a outra, no processo de ensino”, afirma a pedagoga Telma Vinha, doutora na área de Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação e professora e docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A educadora aponta outras dúvidas para além das motivações religiosas, morais, sexuais e político-ideológicas. “Até que ponto os pais estão ou estarão preparados para ensinar seus filhos de forma ampla? São e serão capazes de controlar todos os pontos no desenvolvimento dos valores? E de identificar quando um erro é estrutural ou desenvolvimento? São só alguns dos muitos exemplos”, questiona ela.
“Além disso, existe uma contradição: se as leis brasileiras exigem, no mínimo, que professores sejam graduados nas escolas, como entregar o ensino nas mãos de pais sem um controle de formação mínima. Digo isso porque não confio na capacidade de fiscalização dos governos nesse ponto. E, ainda que a família seja extremamente religiosa, é necessário que o aluno, mesmo com essas convicções, aprenda outras teorias além do criacionismo, por exemplo. A escola é responsável por parte da proteção do desenvolvimento da criança, inclusive para identificar e denunciar abusos eventualmente cometidos no seio da família. Não bastasse, temo que muitas crianças simplesmente parem de estudar com o argumento externo de que estão submetidas à educação domiciliar”, revela.
As posições de Telma são compartilhadas por Anna Helena Althenfelder, pedagoga com doutorado em psicologia da educação e presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), e Neide Noffs, professora titular do Departamento de Formação Docente, Gestão e Tecnologias da PUC-SP. “Os pais têm todo o direito de escolher o tipo de educação que desejam dar aos filhos e de passar a eles os seus valores. A família tem primazia no desenvolvimento dos princípios, mas o espaço adequado para a formação plena, plural, com crianças e jovens da mesma idade, é a escola”, diz Anna Helena.
“Profissionais tecnicamente preparados estão no ambiente escolar. Quando alguém adoece, procuramos um médico. Se a necessidade é de amparo legal, ruma-se ao encontro de um advogado. O raciocínio é o mesmo. E, depois, com tantos problemas e desafios históricos, imensos e urgentes a serem vencidos na educação brasileira, causa estranheza que a educação domiciliar, que envolve hoje no máximo 15 mil alunos em meio a mais de 40 milhões de alunos, seja colocada em pauta com tanto estardalhaço e desgaste. Com o mais absoluto respeito às famílias envolvidas, trata-se, no mínimo, de uma inversão de prioridades difícil de entender”, opina Neide.
Professora da Faculdade de Educação da Unicamp, defensora da ED e autora de uma tese de doutorado sobre o assunto, Luciane Barbosa não enxerga problemas volumosos derivados dessas questões. Quando iniciou a pesquisa, chamaram sua atenção alguns fatores diferentes do que imaginava. “Entrevistei famílias brasileiras que responderam ou estavam respondendo a algum processo judicial por terem retirado os filhos da escola. Elas apresentaram motivações mais relacionadas à falta de qualidade da escola, pública ou privada, do que a posicionamentos religiosos”, conta.
“Outro ponto importante: os argumentos utilizados pelo Judiciário e o Legislativo, estes nos pareceres de negação dos projetos de lei apresentados até então, associavam o homeschooling à falta de socialização. Eram pontos considerados ultrapassados por vários pesquisadores e uma realidade que pude constatar ao acompanhar famílias de homeschoolers numa pesquisas que fiz no Canadá. No Brasil, esses pontos eram apresentados diante de um quadro de uma escola não necessariamente real, em que a socialização era imaginada como obrigatoriamente plural e de relações positivas”, relata a educadora.
Luciane reconhece a necessidade de mobilizar a sociedade para melhorar a convivência e a produção de resultado nas escolas. Mas enfileira também críticas “derivadas da socialização” escolar no ambiente atual.
“São situações como violência, bullying e, muitas vezes, até mesmo a ausência de clareza do que seria e da existência de uma ‘formação para cidadania’, diante de uma escola muitas vezes preocupada exclusivamente com notas em avaliações externas e aprovações em exames e vestibulares.”
Na avaliação da educadora, a regulamentação deve ser realizada “com muito cuidado”, em grupos de trabalho que envolvam universidade, famílias, associações representantes e poder público. “Assim será possível fazer com que os direitos de todas as crianças, dentro e fora das escolas, sejam respeitados”, acredita. “Estou entre os convencidos de que a ED não é uma ameaça ao sistema educacional, mas uma opção dentro dele. A saída é equilibrar a liberdade de escolha dos pais com o papel do Estado como ente responsável pela viabilização e fiscalização do direito à educação das crianças e adolescentes.”
Para que isso ocorra, continua ela, será necessário “viabilizar equipes e processos para avaliar o rendimento acadêmico dos homeschoolers, provavelmente em sistemas anuais, a prática das famílias e as modalidades de ensino. E também, na outra ponta, os critérios para a eventual perda da possibilidade de educar em casa caso os direitos da criança sejam violados”, propõe.
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