NOTÍCIA
Em cinco episódios, programa do mais renomado médico brasileiro investiga, de forma científica e cuidadosa, o uso recreativo da maconha – “onde moram os riscos, os tabus e a hipocrisia”
Publicado em 30/05/2019
A parte do Brasil que luta pela circulação de informações de efetiva utilidade pública, apuradas e organizadas com inteligência, acaba de ganhar uma ferramenta de peso. Na segunda-feira 22 de abril, pontualmente às 4h20, entrou no ar, no YouTube e no portal do médico Drauzio Varella a websérie Drauzio Dichava.
A nova investida do consagrado oncologista, professor, escritor e pesquisador é um conjunto de cinco filmes, cada um com duração entre sete e dez minutos, que retrata facetas, realidades e circunstâncias do uso adulto da maconha. Tudo com a responsabilidade e o refinamento comuns a todas as suas abordagens anteriores.
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Autor de best-sellers que viraram filmes e séries, como Estação Carandiru, consultor e colunista e de programas de tevê, destaque do time de estudiosos pioneiros do HIV/Aids no país, Drauzio consegue uma vez mais, em Dichava, resultados com uma marca de fazer inveja a muito comunicador de talento: a transformação do que seria complicado para a maioria em matéria de entendimento simples para praticamente todo mundo.
Para atingir novamente esse objetivo, recolocou em campo sua fórmula aparentemente infalível baseada em dois pilares. O primeiro é o conhecimento profundo e multifacetado sobre praticamente tudo o que diz respeito à medicina. E o segundo, derivado do primeiro e também da forma sempre honesta com que se expressa, é o respeito conquistado em quase todas as classes e faixas sociais e intelectuais, do cidadão que fuma um baseado na rua ao psiquiatra pós-doutor da universidade respeitada. Uma condição que lhe garante excelente recepção, elogios, reverência e, muitas vezes, até idolatria das fontes que procura para conversar e debater temas. Nos encontros com Drauzio, quem parece fazer a suprema gentileza de participar da conversa é sempre o outro, seja ele entrevistador, entrevistado, projeto de famoso ou celebridade de fato. “Muito obrigado por nos trazer, mais uma vez, a sua luz”, derreteu-se o apresentador Pedro Bial, no dia seguinte ao do lançamento de Dichava, ao receber o oncologista em seu programa Conversa com Bial, exibido nas noites da Rede Globo.
“Há 12 mil anos já havia maconheiro no planeta”, descontrai Drauzio logo na apresentação da série. “E, atualmente, estamos diante de uma tendência mundial de liberação da maconha”, prossegue, em off, escoltado por imagens de passeatas de defensores da planta no Brasil e no mundo. “Como sou médico, você deve estar pensando que vou abordar as pesquisas sobre o uso medicinal da planta. Acho essas pesquisas válidas. Se a ciência concluir que elas podem trazer benefícios a grupos de pessoas, isso será positivo. Mas estou aqui para discutir o uso recreativo, ou melhor, o uso adulto da maconha, porque é aí que moram os riscos, os tabus e a hipocrisia”, completa ele.
O primeiro episódio, Era uma vez uma planta, inicia com análises de Drauzio sobre os países que começam a legalizar ou descriminalizar a maconha, e também sobre a Marcha da Maconha, que abrigou mais de cem mil defensores nas ruas de São Paulo, em 2018. Em seguida, há um histórico sobre o cultivo e o uso da planta no mundo, com destaque para a relação feita entre consumo da erva, imigração mexicana e racismo nos Estados Unidos. E depois no Brasil, com manchetes de jornais como “O Veneno Africano”.
No segundo filme, A brisa, o mais “médico” dos episódios, o oncologista, “na busca de uma reflexão imparcial sobre o assunto, isenta de ideias preconcebidas”, discute como a maconha atua no cérebro, seus efeitos e quem pode usar a substância. Neste ponto, o timing de bom entrevistador faz os discursos de “dois estudiosos que defendem pontos de vista diferentes” – Valentim Gentil, professor titular da cadeira de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, e o neurocientista Renato Filev, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – parecerem didaticamente complementares em alguns momentos.
“Dizer que a maconha é a porta de entrada para outras drogas é um mito. Álcool e cigarro chegam primeiro na suprema maioria dos casos. Esse pensamento equivocado está diretamente ligado à questão da ilicitude, que faz as pessoas pensarem dessa forma”, diz Filev, defensor de que uma eventual legalização ou descriminalização diminuiria, e não aumentaria, o consumo no Brasil. “Mesmo os adeptos da legalização admitem que a gente não sabe o que vai acontecer com o tempo. E que ainda não há ferramentas para avaliar os transtornos de uma medida dessa a longo prazo com consumo. E os caras querem legalizar por aí? Então legalize primeiro a cocaína, que dá psicose aguda. Os usuários vão fazer muita besteira”, discorda o psiquiatra Gentil.
No terceiro capítulo, Cannabusine$$, o oncologista visita o quartel-general do Um Dois, “um canal na internet dirigido aos maconheiros, ou maconhistas, como eles se definem”. É recebido no portão da sede com um carinhoso grito de “fala, dotô”. Um dos rapazes pega uma câmera e coloca o visitante ao vivo no canal. Drauzio cumprimenta a audiência com um alô educado. Um dos rapazes ensina: “A gente costuma cumprimentar a turma assim: falem, maconhistas!”. O médico dá uma risada contida e confessa: “isso eu não falo não; vou deixar para vocês”. Em seguida, visita duas lojas de apetrechos para o consumo de maconha, uma no Rio e outra em São Paulo. Sim, porque a venda de cannabis é oficialmente proibida no Brasil, mas a da parafernália aparentemente usada para o seu consumo, e para o de outros tipos de fumo, ao que parece ainda não.
O quarto episódio, Onde o bicho pega, é o “politizado”. Mostra que décadas de guerra às drogas no Brasil não reduziu o consumo e aumentou a violência no país. “Mas não contra todos os brasileiros: quem arca com o ônus da repressão é a população preta, pobre e periférica.” No último, O Jardineiro Fiel, lidera uma reportagem sensível sobre um comerciante “que cultiva e vende maconha sem passar pelo ‘tráfico convencional’”. Não falta freguesia, e o perfil da clientela “está longe do estereótipo de ‘marginal’”, explica o entrevistador.
“Não fumo maconha, mas tenho uma vivência longa com a droga por causa do trabalho que faço nas cadeias. São 30 anos frequentando cadeia toda semana”, diz Drauzio a Cauê Moura no podcast Poucas. “É uma convivência longa com maconha, cocaína. Tive uma enorme vivência com usuários de crack.” Sobre a criminalização da maconha, reflete: “a pessoa pensa assim: ‘se eu prender todos os traficantes de maconha não vai ter droga pra ser vendida e, consequentemente, meu filho não vai usar droga’. Tudo bem, eu também acho. Se prendessem todos, aí, tudo bem, não ia ter droga vendida. Mas é possível fazer isso? Obviamente, não. As drogas jamais estiveram tão disponíveis. E seguimos no erro de manter uma política de repressão incapaz de conter o consumo e não investir em educação e ajuda aos dependentes para que controlem a dependência”.
O compromisso lúcido de Antônio Drauzio Varella com ideias, debates e propostas verdadeiramente produtivas é um dos poucos antídotos, no Brasil fraturado de hoje, capaz de neutralizar o veneno dos pós-graduados, mestres e doutores na arte de ter as velhas – e imutáveis – opiniões formadas sobre tudo.
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