NOTÍCIA

Edição 259

Aprendizagem multidomiciliar

O homeshooling não é a solução para os males que afetam o sistema educativo

Publicado em 22/07/2019

por José Pacheco

As mães do António e do Alex perguntaram se poderíamos acolher os seus filhos na nossa escola. Compreendemos a preocupação daquelas mães. Uma delas, professora universitária, tomara consciência dos malefícios da “educação bancária”. E assim nasceu a primeira experiência de homeschooling, como lhe chamaram na década de 1980.

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Na década anterior, havíamos passado do ensino centrado no professor para a aprendizagem centrada no aluno, com ganhos de excelência acadêmica e inclusão social. Por isso, muitas matrículas nos eram solicitadas. Porém, o domicílio do António e do Alex distava dezenas de quilômetros da “domus” Escola da Ponte. E, conforme rezavam os normativos, as matrículas deveriam ser feitas na escola da área de residência.
Naquele tempo, a internet ainda era miragem. Para evitar que as crianças fossem forçadas a longas viagens e para estabelecer contato, tínhamos o telefone fixo. Não havia regulamentação de homeschooling, restava-nos a transgressão fundamentada no direito humano a uma boa educação. Até que uma lei foi publicada. E os dois jovens passaram a desenvolver os seus estudos, em casa… ouvindo aula.
O que aprendemos com a experiência? Que o homeschooling não é solução para os males que afetam o sistema educativo. Entre ouvir aula em casa, ou ter aula na escola, preferíamos a aula na escola, dada por professores qualificados e competentes. Aprendemos que o “ensino domiciliar” é um “salve-se quem puder”, estratégia de quem pode “salvar-se” porque tem recursos para tal. Compreendemos que o “ensino domiciliar” é mero paliativo de um modelo educacional obsoleto, concebido no século XIX e responsável por um autêntico genocídio educacional.
Trinta anos decorridos, vejo repetir-se a situação… no Brasil. Porque cultivo o diálogo e estou sempre disponível para o debate, em 2018, participei na mesa de abertura de um seminário sobre homeschooling, realizado em Brasília. Fui receptivo ao convite, porque, em 2016, acompanhei a “Global Home Education Conference”, tendo ficado deveras preocupado com o conteúdo de algumas das intervenções, sobretudo de ditos “especialistas”, para os quais as ciências da educação ainda são ciências ocultas e que creem – é de uma crença que se trata – que se aprende sozinho, com o auxílio de um dador de aula, ou da internet.
No Brasil, acompanhei o processo de descolarização dos filhos de um amigo. Ele sabia que aprendemos uns com os outros, na atribuição de sentido, na produção de conhecimento, criando vínculos. Que a aprendizagem acontece na relação. Para garantir uma boa educação para os seus filhos, não os matriculou numa escola. Fê-los sujeitos de aprendizagem, no lar e em contextos comunitários. O elevado nível de proficiência alcançado pelos filhos do Cleber permitiram-lhes ganhar bolsas de estudo numa das melhores universidades norte-americanas. Mas, por ter optado por uma educação integral, integrando escola, família e comunidade, o meu amigo foi condenado por… “abandono intelectual dos filhos”.
O prefixo “multi” tem origem no latim multu. Juntemo-lo ao vocábulo “domiciliar”, para que se entenda que a educação acontece em múltiplos espaços de aprendizagem. Pode acontecer num prédio a que é costume dar o nome de “escola”. Mas, também, acontece nos lares, nas bibliotecas públicas, nas igrejas, nas empresas, na internet, nos campos e florestas, nas ruas e praças. E, para que aconteça, não carece de decreto. Não faz sentido legalizar o “ensino domiciliar”. Falemos, antes, de… aprendizagem multidomiciliar.
José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
josepacheco@editorasegmento.com.br

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Foto: Steinar Engeland/ Unsplash

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