NOTÍCIA
Estar diante, impedindo a passagem, é uma noção que se espalha numa família de palavras com mesma base de origem, que vai de “objeto” e “obsessão” a “óbito” e “ocidente”
Publicado em 23/10/2019
Por Mário Eduardo Viaro, da revista Língua portuguesa
Conhecer os elementos de formação da língua portuguesa é uma tarefa muito importante para a determinação do significado original de seus vocábulos. Contudo, o conhecimento sistemático do vocabulário de origem latina ou grega está longe de ser algo banal.
Por exemplo, sabemos que re- é um prefixo que significa “outra vez”, pois o vemos funcionando ainda hoje em português não só em “refazer”, “reeleger”, mas em vários outros neologismos. O uso do re- com esse sentido já existia no latim clássico, mas foi revitalizado na Idade Média e sua alta produtividade em português vem dessa época.
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O sentido original de re-, no entanto, é menos óbvio (“para trás”). Há uma metáfora entre o sentido produtivo do português e seu significado primitivo: algo que volta para trás pode, na verdade, voltar para o início e, portanto, simbolizar não só um retrocesso, mas uma nova oportunidade de recomeço.
Para ficar menos ambíguo, o sentido original foi reforçado por uma terminação (-ter-, que assumia normalmente as formas -tro- e -tra-) e hoje temos dois prefixos que significam “para trás”: re- e retro-. O mesmo reforço se vê em in-, intra-, intro-; ex-, extra-, extro-; cis-, citra-, entre outros.
Há elementos de formação que são bem pouco evidentes em português. Esse é o caso do prefixo ob- (em frente). O latim dispunha de diferenças bastante sutis na descrição daquilo que está na nossa frente.
Por exemplo, para indicar alguém com quem se está face a face, o latim usava ante- (cuja origem indo-europeia significa “rosto”). Se está, ao contrário, de costas para nós, o mais frequente era prae- ou pri-. Se o que está face a face vem em nossa direção, dizia contra-, que passou a ter valor de hostilidade. Se o que está na nossa frente, de costas para nós, avança, dizia pro- (e nesse sentido, imagina-se que nós estamos com ele, ajudando-o). Mas se algo simplesmente se põe na nossa frente, havia um prefixo por-, que foi substituído aos poucos por ob-.
O colocar-se na nossa frente foi interpretado como hostilidade, mas algo distinto do que transmitia o prefixo contra-: o prefixo ob- passou a indicar uma espécie de impedimento do nosso curso.
Quase não sobreviveram palavras com esse sufixo ob- no latim vulgar. As que existem no português atual são, em sua maioria, palavras medievais ou mais tardias, ressuscitadas com o manto do latim clássico. Por isso mesmo, ainda há muita transparência na sua forma e não houve mudanças semânticas para além das que já existiam em latim. A sua composição é bastante evidente e trata-se de uma motivação para quem gostaria de aprender Etimologia.
Muitas palavras obviamente sumiram. Por exemplo, oblatrare (pôr-se diante e ficar latindo). Outras ainda não nos permitem enxergar com nitidez o prefixo, que muda de formato. Assim sendo, dependendo da consoante seguinte, o -b final de ob- era suscetível de mudança: bastava o verbo iniciar-se com c-, f-, g- e p- e o prefixo se tornava, respectivamente, oc-, of-, og- e op-. Antes de um verbo que começasse com m-, seu formato mais comum era o-. Antes de c- e t-, também era comum a forma obs-, às vezes alterada para os-.
A noção de algo que está na frente é visível em “obstruir”, que vem de obstruĕre (construir algo na frente, impedindo a passagem). O mesmo radical se encontra em “construir” e “destruir”.
Um “objeto” é um termo bastante comum, que tem sentidos banais ou muitos especializados (como na filosofia ou na lógica). Sua origem remonta ao latim objectus, particípio também do verbo objicĕre (jogar na frente, impedindo a passagem). Metaforicamente, palavras podem ser jogadas às pessoas que nos ouvem e, assim, nasceu em latim o verbo derivado objectare (opor, censurar, repreender), fonte de “objeção”.
Também o verbo obsidere (estar sentado diante, impedindo a passagem) não sobreviveu em português, a não ser na forma do seu particípio obsessus, base da nossa palavra “obsessão”, inicialmente usada com o sentido de “aparições demoníacas à mente humana”, mas vulgarizado como “compulsão, ato teimoso e, às vezes, irracional”. A grafia de “obsessão” é a mesma de “sessão”, ou seja, um ato realizado por pessoas que estão sentadas, como ocorre em sessões de cinema ou em sessões da Câmara Municipal.
Mais surpreendente é o verbo offerre, que sobreviveu no latim vulgar sob a forma *offerescĕre e se transformou em “oferecer”. Etimologicamente, trata-se do ato de “levar diante, apresentar”. Por ser muito antigo, esse verbo ainda não tem o sentido pejorativo de impedimento.
Do verbo ostendĕre (“estender diante, pôr diante dos olhos”) temos o particípio ostensus, que gera a palavra “ostensão”, que, desde muito cedo, adquiriu o sentido de um ato arrogante ou vanglorioso. Pela grafia, percebemos que essa palavra não vem do seu derivado ostentare (“ficar mostrando diante de todos”), que gerou a palavra ostentatĭo, isto é, “ostentação”.
De obire (“ir contra, afrontar”) só temos o particípio obĭtus (“ato de ir ao encontro”), donde nasceu o sentido de “ato de ir ao encontro da morte”, palavra ressuscitada no português em “óbito”.
Pôr-se de pé, impedindo a passagem, se dizia em latim obstare, donde nasceu o nosso “obstar” e também “obstáculo”, latinismo do século 16, como tantos outros.
O ato de estar na frente não precisa ser feito por uma só pessoa. Muitos podem impedir a passagem, cercando a pobre vítima. Isso explica por que ob- às vezes tem o sentido de “em volta”. Por exemplo, obsidĭum era o termo usado para o cerco ou o sítio feito numa batalha. Uma das mais notáveis sobrevivências desse sentido é o da palavra obligare (amarrar em volta). Uma pessoa se diz obrigada a fazer algo quando não tem escolha, assim como uma pessoa atada: nosso verbo “obrigar” vem do latim obligare.
A palavra pouco usada “obnubilado” com o sentido de “pouco claro” vem da mesma metáfora derivada, uma vez que obnubilare em latim é “cercar por meio de nuvens”. A origem de “obscuro” é semelhante, pois remonta ao antiquíssimo adjetivo latino obscurus, o qual, transmitido pelo latim vulgar, gerou o oscuro do espanhol e o nosso “escuro”.
O latim obtusus denotava a pessoa que foi cercada e espancada. O verbo da raiz é tundĕre (golpear), cujo particípio tusus se encontra também na palavra “contusão”. Já em latim, a palavra obtusus tinha os sentidos de “fraco, esgotado, grosseiro, estúpido”. A etimologia de algumas palavras às vezes é bastante cruel.
Quando obturamos um dente não temos consciência da origem dessa palavra técnica. O verbo obturare significa “fechar completamente, obstruir”. Esse valor de intensidade do sufixo ob-, derivado do sentido anterior de cerco, não é incomum.
Talvez o caso mais surpreendente seja o do verbo occidĕre (cair completamente, desmoronar), que, bem cedo passou a significar “morrer”. Referindo-se à descida diária do sol quando se põe, as flexões desse verbo dão origem a duas palavras portuguesas. Uma delas, bastante culta, é “ocaso”, que nada mais é que o particípio passado occasus do mesmo verbo (“aquilo que caiu completamente, aquilo que morreu”). Outra, provinda do particípio presente, occidens “o que está morrendo”, passou a designar o oeste, ou seja, o que hoje chamamos “ocidente”, local onde o sol se põe, por oposição de oriens “local onde o sol nasce”, derivado do verbo oriri “levantar, nascer”.
Ainda com o sentido de intensidade encontramos o mesmo prefixo com um derivado do verbo celare “esconder”, o qual, por meio da prefixação e de uma mudança fonética típica das prefixações (e das palavras que têm -l-), deu origem ao verbo occulare “esconder completamente”, donde o particípio occultus, base para o nosso adjetivo “oculto”. Apesar de ser um sentido bastante derivado, o valor de intensidade já se havia desenvolvido bem cedo no latim arcaico, como mostram esses últimos exemplos.
Quando descobrimos o prefixo ob- e entendemos seus sentidos, uma porta para a Etimologia está aberta. Sabendo que servare em latim é “olhar com atenção”, obviamente observare, étimo de nosso “observar”, significará “ficar diante, olhando com atenção”. Se sequi é “seguir, prestar ajuda”, obsequi é “ir adiante, prestando auxílio”, donde “obséquio” nada mais é que uma submissão ou deferência por alguém. O etimólogo aprendiz estará pronto para acompanhar discussões etimológicas mais complexas, como sobre a origem da palavra “oblíquo” ou “obedecer”.
Parecerá evidente que a palavra “óbvio” na verdade significa “aquilo que está diante, na via, isto é, no caminho, de forma evidente” e, de fato, este é o sentido da palavra latina obvĭus. Ele desconfiará que “ocorrer” seja um desses casos e, de fato, occurrĕre significa “vir correndo e apresentar-se aos nossos olhos”. O mesmo perceberá quanto ao verbo “opor”: que pode ser, se não “pôr-se diante, atrapalhando a passagem”? E, de fato, a comprovação dessa hipótese só se dá com uma consulta a um dicionário latino, onde encontrará opponĕre “pôr na frente”.
Nosso etimólogo aprendiz só deverá aceitar resignado quando perceber que nem todo o- provém deste prefixo, pois não se trata de um problema de lógica, mas de história, que é muito mais acidentada que o mundo platônico das inferências pseudoetimológicas. De fato, ocŭlus “olho”, não está entre os casos de prefixação, acima apresentado, e há muitas provas disso (como a comparação entre as línguas indo-europeias, donde vem também o latim).
Folheando o dicionário, encontrará muitos outros casos, pouco usuais, porque os modismos em que se pauta a história preferiram ignorá-los dando-lhes poucas oportunidades de uso nos textos: “obducto”, “obtemperar”, “objurgar”, “obducente”, “obumbrar”, palavras que soam pedantes por causa da sua pouca frequência, mas que são facilmente decifradas por quem domina um pouco de latim.
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