NOTÍCIA
Em sua coluna, Gabriel Perissé fala de uma pós-verdade que legitima lorotas com a credibilidade alheia
Publicado em 23/11/2019
Tudo pode ser falsificação, desinformação, imagem manipulada. Tudo pode ser prática diária de conspiração, e não mera teoria da conspiração. Tudo pode ser uma verdadeira mentira.
Precisamos perguntar o tempo todo se o que lemos, ouvimos e repetimos vem de fontes potáveis ou envenenadas. Precisamos distinguir quais delações premiadas não são, afinal, belas calúnias. Precisamos rezar muito para saber se determinadas declarações religiosas vêm do céu ou do inferno.
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Na vida acadêmica, estudantes podem plagiar trabalhos sobre ética para serem aprovados na disciplina de Ética. Quem atua na pós-graduação conhece casos em que mestrandos e doutorandos copiam sem aspas (com requintes de malandragem) trechos imensos de dissertações e teses que jamais escreveriam. Para meu supremo espanto, já deparei com projetos pedagógicos de algumas instituições respeitáveis que, em boa parte, eram cópia de projetos pedagógicos de outras instituições respeitáveis.
O relativismo do passado era brincadeira de criança. O sofisma entre gregos e latinos era para amadores. Há quem diga que, no início deste nosso século, entramos numa guerra total contra qualquer coisa que se assemelhe ao conhecimento obtido pela verificação honesta daquilo que é ou deixa de ser.
Contudo, sempre houve boatos, patranhas e inverdades. Contos do vigário, lorotas fantásticas, lendas rurais e urbanas não são invenção de hoje. Sempre foi necessário fazer pesquisa para tirar a prova dos nove.
Procurar saber se uma frase famosa foi realmente dita ou escrita por fulano ou sicrano é exercitar-se na arte da pesquisa. Citações fake existiram e existem aos montes.
A famosa frase “índio bom é índio morto”, atribuída ao general norte-americano Philip Henry Sheridan (1831-1888), provavelmente não é da sua autoria, ou, se ele a proferiu, já estava antes na boca de muitos outros norte-americanos da época.
O antropólogo potiguar Mércio Pereira Gomes, ao escrever sobre a origem dessa frase, teve o cuidado de salientar que Sheridan talvez fosse seu autor. E é essa prudência que torna a ciência confiável.
De qualquer modo, a frase não teria sido exatamente essa. Contam seus biógrafos que, por volta de 1869, Sheridan encontrou-se com o chefe dos comanches, Tosawi, e este afirmara: “Mim Tosawi. Mim índio bom”.Sheridan teria respondido: “Os únicos índios bons que eu vi na vida estavam mortos”, algo que ele, mais tarde, negou ter falado. Segundo o historiador Walter Hixson, mesmo se tratando de uma piadinha de mau gosto, a frase expressaria os reais sentimentos do general.
A pesquisa amplia nossa consciência acerca do que está em jogo. A simplificação da resposta de Sheridan revela algo mais duradouro, para além da resposta isolada. “Índio bom é índio morto” condensa doses cavalares de ódio, e desde então inspirou outras frases condenáveis: “negro bom…”, “bandido bom…”, “gay bom…” etc.
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Ziraldo, no seu seriíssimo livro O pensamento vivo de um assessor de palpite, refere-se a uma frase que considera meio idiota, típica dos “otimistas norte-americanos”: “Hoje é o primeiro dia do resto de nossas vidas”.
Tornou-se chavão em livros de autoajuda. Em sua pseudoprofundidade, faz pensar na mudança automática, na vitória súbita sobre todos os infortúnios do passado. É atribuída por muitos a Charles Dederich (1913-1997), um líder manipulador que prometia recuperar dependentes químicos. Mas também foi uma das frases favoritas do ativista social e político Abbot Hoffman (1936-1989), e por isso dizia-se que fora criada por ele. Outra possibilidade: o ator Emmett Grogan (1942-1978), que liderou ações de solidariedade durante a década de 1960. Usaria essas palavras como slogan do seu grupo.
Divertido, e estranho, é quando a autoria atravessa as fronteiras. Entre os franceses, há quem pense que Victor Hugo (1802-1885) escreveu em alguma parte: “Aujourd’hui c’est le premier jour du reste de ma vie”. Ou então seria uma frase do filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980). Em ambos os casos, ninguém cita livros ou páginas.
Quando falta pesquisa, sobram “chutes”. Nas redes sociais (em que todos somos, não só assessores, mas especialistas em palpites), um internauta italiano cismou que se trata de aforismo medieval, “Hodie primus dies reliqui meae vitae est”, de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109)!
A busca até aqui leva à conclusão (provisória) de que a frase, ligada à “sabedoria” das ruas, começou a correr o mundo a partir da década de 1960.
Por isso, meus amigos, que hoje seja nosso primeiro dia de um novo tempo de dedicação à pesquisa!
No campo da educação (e das palestras motivacionais), é comum ouvir que “o ser humano só utiliza 10% do seu cérebro”. Para que tal enormidade seja aceita sem questionamento, acrescenta-se que foi Einstein quem a enunciou. Pobre Einstein!
No livro Ciência: conceitos-chave em filosofia, de Steven French, do professor de Filosofia da Ciência na Universidade de Leeds (Inglaterra), lê-se que Einstein (de novo!) teria dito que “se os fatos não se encaixam na teoria, mudem-se os fatos”. Absurdo! E citação apócrifa. Pobre Einstein!
Outra frase apreciada por educadores: “Se você acha a educação cara, experimente a ignorância”. O problema é saber quem de fato a formulou.
Terá sido Derek Bok, ex-reitor da Universidade de Harvard? Segundo o economista Gustavo Ioschpe, em A ignorância custa um mundo (mas não só ele afirma isso), Bok seria o criador da frase. Porém, este mesmo educador, por uma questão de honestidade intelectual, esclareceu em certa ocasião que não era dele o pensamento, mas do professor e cientista Claus Moser (1922-2005).
Conhecer é trabalhoso. Se, com pesquisa atenta, já encontramos dificuldades para estabelecer “quem é quem” no mundo das citações, quanto mais em campos do saber de altíssima complexidade!
Gabriel Perissé é escritor e palestrante www.perisse.com.br