NOTÍCIA
A escola já vinha desenvolvendo uma série de competências que permitiram tomadas de decisões quase que instantâneas
Publicado em 03/07/2020
Há alguns anos, surgiu no mundo da educação a jocosa ideia de que a escola era do século XIX, os professores do século XX e os alunos do século XXI. Poucas afirmações podem ser tão equivocadas e superficiais como essa. A virada do século XIX trouxe toda uma concepção de centralidade da educação no aprendiz e os movimentos sociais do mesmo período trouxeram a importância da escola como espaço de socialização e de construção da cidadania. A violência física e psicológica que perdurou em muitos sistemas de ensino até os anos 60 do século passado foram sendo substituídas pelo diálogo e o respeito aos estudantes.
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Cenas de professores com réguas e palmatórias que vimos no filme The Wall não mais povoam o cotidiano dos alunos. O movimento escolanovista, o construtivismo e o sociointeracionismo inspiraram outros movimentos e teorias que transformaram decisivamente a escola no século XX.
As rápidas mudanças do século passado trouxeram à luz pensamentos relacionados à complexidade e à aleatoriedade, seja no campo das ciências exatas seja no campo das ciências humanas.
A teoria do caos inspirou vários setores da produção humana, da previsão de bolsa de valores ao movimento de cardumes de peixes. O século XXI inicia prodigiosamente com eventos complexos, como a queda das Torres Gêmeas, a quebra da economia em 2008, os movimentos sociais na década de 2010, como o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha. Além dos movimentos sociais de junho de 2013 no Brasil e a ocupação das escolas por estudantes secundaristas em vários estados brasileiros. A pandemia do coronavírus representa como nenhum outro fenômeno a complexidade de nossos dias. A escola vem reagindo da melhor maneira possível, movimentando conhecimentos, administradores, professores, alunos, famílias, tecnologia e toda capacidade de ação e afeto que a comunidade escolar pode gerar.
Por outro lado, a rápida resposta a tamanha emergência só foi possível porque a escola já vinha desenvolvendo uma série de competências que permitiram tomadas de decisões quase que instantâneas. O uso de tecnologias digitais é uma constante na escola, seja via o prosaico WhatsApp ou em plataformas de EAD para aulas ou para repositório de conteúdos.
Possibilidades didáticas online são discutidas em reuniões pedagógicas ou aplicadas por professores mais arrojados ou com maior conhecimento da cultura digital, gravando aulas no YouTube ou mesmo arriscando aulas em podcasts. O surto de lives que vemos não surgiu do nada, mas de um grupo de cidadãos acostumados com os Skypes da vida. Não é raro encontrar salas cheias aos sábados com dezenas ou centenas de professores em busca de conhecimento sobre o uso de tecnologias digitais.
Assim, já existia nos bastidores educativos toda uma cultura de acesso online que agora, forçosamente, se coloca no palco didático. Ainda precisamos avançar muito no mundo “On”, vivemos em um país muito desigual, mas seguramente não estamos no século XIX nem em termos de teoria do conhecimento, nem em termos de uso de tecnologia digital.
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Por outro lado, a aleatoriedade do mundo complexo contemporâneo não se expressou apenas nas ações emergenciais da escola. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) apresenta ideias como temas, projetos, estudos do meio, contextualização ou aulas ativas que permitem a bem-vinda presença do acaso, típico do mundo contemporâneo, nas práticas educativas. A ideia de um projeto de vida dos estudantes como um valor educacional, a partir de seus desejos, traz elementos subjetivos e afetivos como importante parceiro da escola.
A reforma do ensino médio estrutura um currículo que apresenta como novidade os itinerários formativos, que permitem escolhas aleatórias de conteúdos pelos estudantes. O contraturno escolar vem há muitos anos apresentando possibilidades alternativas na forma de cursos eletivos ou projetos individuais ou em grupo. Em recente pesquisa que fiz com escolas particulares de São Paulo pude constatar que a maioria delas já vem oferecendo possibilidades para que os alunos escolham cursos oferecidos por professores da escola ou mesmo por prestadores de serviços externos.
Gerir essas ofertas é um grande desafio para gestores escolares, seja por aspectos logísticos, orçamentários ou mesmo cultural. Mas, mesmo com essas dificuldades, mais e mais escolas se arriscam no mundo das ofertas variadas de conteúdos, contemplando desejos de alunos e da atualidade. A tradicional grade escolar permanece uma senhora severa e disciplinada, mas um conjunto de novas possibilidades vai se oferecendo cada vez mais, inserindo escola no mundo VUCA.
Assim, as emergências contemporâneas exigem da escola uma interpretação menos fixa do mundo e uma interação maior com os contextos de sua época. E ela vem respondendo a essas demandas, com mais ou menos arrojo.
No entanto, devemos pensar que a escola é um espaço de muitos tempos: dos milhares de anos de produção do conhecimento, das lutas pela popularização da educação, da cultura digital e infantojuvenil e da virtualização pandêmica. Tradição e ruptura num mesmo lugar.
Miguel Thompson é diretor acadêmico da Fundação Santillana e presidente do Conselho Editorial da revista Educação
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