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Nosso cotidiano, por Machado de Assis

O que o clássico do final do século XIX tem a nos dizer sobre os dias de hoje

Publicado em 16/07/2020

por João Jonas Veiga Sobral

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, com a ironia que lhe é peculiar, Machado de Assis revela um texto ambíguo. Emprestando a voz narrativa ao pouco confiável defunto-autor, permite a ele defender a idoneidade de seu cunhado Cotrim e também o acusar de falta dela. No entanto, o artifício empregado no texto revela uma defesa cúmplice de Brás quando se identifica com Cotrim, e um ataque ao seu caráter quando não se identifica com ele. O texto desnuda, nas duas personagens, o ranço arcaico e bárbaro que calçava a classe dominante do tempo de Machado (e talvez do nosso), que respirava fumos de altruísmo e benevolência, mas mantinha o comportamento violento que pautava o sistema escravocrata.

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Brás afirma, em suas memórias, que seu cunhado tinha um “caráter ferozmente honrado”. Aparentemente as palavras “ferozmente” e “honrado” não fazem bom par, sugerem dissonância. Mas na sociedade daquele tempo, com ares de modernidade e brisa de barbárie, elas se juntam e se ajustam bem. Cotrim era mesmo um modelo de uma boa parcela da sociedade, de pequenos proprietários, que buscava fortuna e tinha sede de nomeada de glória.

Machado de Assis

Vejamos o caráter feroz do cunhado: “O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”. Temos aí “mordida” do defunto-autor, na acusação do caráter violento de Cotrim, que não foge muito à educação do menino brejeiro Brás, que montava o outro menino escravo Prudêncio e dava-lhe pancadas dizendo “cala boca, besta”. Por capricho e peraltice, quebrava a cabeça das escravas que lhe negavam experimentar o doce que cozia no tacho de cobre.

No entanto, Brás, depois da “mordida” acusatória em Cotrim, assopra e amortiza a condição violenta do cunhado. Ironicamente, é verdade, mas a suaviza ou a relativiza. “Mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões”. E continua na mesma toada de mordida, “tendo longamente contrabandeado escravos”, e de assopro, “habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”.

Brás, homem de verniz polido, que aprendeu a decorar a fraseologia e os ornamentos da cultura, ironicamente despreza o cunhado bruto e ilícito, mas não considerava de todo mau o trato bárbaro dispensado aos escravos – fonte de renda e de sustentáculo social da classe dominante. E como num passe de mágica, o texto ajusta o ataque e a defesa de ambos.

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Contrabandista, mas caridoso

Cotrim era um contrabandista de escravos, mas era também um homem que amava a família e religioso filantropo, sempre pronto a fazer caridade aos necessitados – os tais homens livres sem acesso aos bens de consumo e à civilização moderna incipiente.

Ou seja, o mesmo homem pio – que ajoelhava diante da imagem do Cristo acoitado, e que se condoía com a miséria dos necessitados, punha, no pelourinho, a deitar o sangue dos escravos fujões. Um retrato sarcástico de Brás que, cínico e contraditório, citava a fraseologia cristã mas se comportava de forma pouco religiosa em sua vida mundana.

Brás também ironiza a benevolência interesseira de Cotrim, ávido por fortuna e glória, que publicava suas benfeitorias no jornal. “Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava – sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso.” Evidentemente que o “mas” empregado logo depois da mordida da reprovação atenua-a novamente – criando, assim, o jogo de espelhos entre os dois representantes das classes abastadas.

Temos no Brás as mesmas feições contraditórias que vemos em Cotrim, uma vez que, achando uma moedinha sem muito valor, dá publicidade ao ato devolvendo-a com uma carta ao delegado de polícia. Elabora sarcasticamente a teoria da equivalência das janelas: “Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”. O que nas palavras do crítico literário Roberto Schwarz fica assim: “No recesso da consciência ou no espaço da cumplicidade de classe, trata-se da satisfação de violar a lei e juntamente prestigiá-la, com o benefício dos aplausos devidos a uma e outra atitude”.

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Benevolência e brutalidade 

Machado, de forma bastante irônica, diz que o homem religioso e gentil com os seus é capaz de gestos bárbaros e de abraçar causas ilícitas. Como se denunciasse que a coexistência do moderno e do arcaico servissem aos interesses da classe proprietária que mantinha os processos de dominação, misturando traços burgueses e senhoris, amalgamando, com tranquilidade, a benevolência e a brutalidade com a finalidade de manter a condição superior, as aparências e o chicote sob controle. “A melhor maneira de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.”

Não raro, vemos hoje com frequência o exercício elegante do poder truculento em nosso cotidiano.

Gente com boa escolaridade defendendo ditadura militar, linchamento, pena de morte, uso de armas para defender pessoas de bem e toda sorte de violência social. Além, é claro, dos pronunciamentos hostis em redes sociais e na vida pública.

Nosso Chefe maior que administra o país para todos ajuda a engrossar o angu de caroço da nossa dicotômica sociedade, quando sugere, referindo-se à polêmica criada por ele sobre o uso da cloroquina: “Toma quem quiser. Quem não quiser não toma. Quem for de direita toma cloroquina. Quem for de esquerda toma tubaína”.

E, assim, ferozmente honrados defendem a saúde pública e o bem-estar da nação.

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Autor

João Jonas Veiga Sobral


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