NOTÍCIA
Conrado Hübner discorre sobre a Constituição de 1988 em reparar as desigualdades do país e defende que deve haver uma responsabilidade individual e coletiva sob tal propósito
Publicado em 17/08/2020
Toda semana, Conrado Hübner Mendes, professor em tempo integral de Direito Constitucional na USP e embaixador científico da Fundação Alexander Von Humboldt, descortina os excessos dos poderes Executivo e Judiciário. Ele é colunista da Folha de S. Paulo e dessa tribuna jornalística já disse que o Tribunal de Justiça de São Paulo “precisa se fazer respeitar pelo que faz, não pelo que fala de si. Porque o que fala, nesse linguajar cafona, faz corar até as fechaduras do tribunal”.
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Autor de obras sobre constitucionalidade, Conrado Hübner Mendes formou-se em Direito na PUC de São Paulo e tem mestrado e doutorado em Ciência Política pela USP. Posteriormente fez doutorado em Direito, na Escócia, na Universidade de Edimburgo. Morou seis anos entre Nova York e Berlim. De volta ao Brasil, atuou na criação da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas –FGV. “Participei de uma fase de preparação de material didático, desenho do curso, de uma reflexão sobre metodologia de ensino junto a uma equipe de jovens professores contratados antes dos alunos para se prepararem, porque o curso pretendia ser muito inovador no campo do ensino jurídico brasileiro, e de fato foi inovador.”
Confira, a seguir, a entrevista concedida à Educação.
Por que de repente parece que voltamos no tempo, com o governo do presidente Bolsonaro invocando a Lei de Segurança Nacional de 1983 para processar jornalistas e membros do STF?
A gente vive um momento muito dramático da democracia brasileira, em que certos valores, certas práticas que pensávamos estar consolidados passaram a sofrer ataques frontais em um volume, em uma intensidade, que foram inesperados. De fato, coisas como a necessidade da construção de um inimigo, o vigilantismo, a intimidação, a produção do medo e de um clima político do qual líderes autocráticos se beneficiam, esse patrulhamento político e a transformação da divergência em conflito irreconciliável, a exclusão desse divergente da esfera do diálogo, é algo que está corroendo nossa democracia. Já não há mais muito desacordo quanto a essa descrição.
O Brasil entrou para o clube dos regimes em vias de autocratização, e isso não somos nós, brasileiros, que estamos dizendo. São grandes estudiosos das democracias no mundo. Todos os índices de avaliação global da qualidade da democracia mostram o Brasil em franco declínio.
Claro que é preciso entender o conjunto de fatores históricos dos últimos cinco anos que abriram espaço para que o Bolsonaro fosse possível. Mas não é controverso dizer que Bolsonaro representa uma enorme ameaça à democracia brasileira.
Há algum risco para a democracia termos grande participação de militares em cargos no governo federal?
A gente não vive hoje em um regime que já se possa chamar de militar, mas temos um governo de militares. Há nada menos que seis mil militares alocados em diferentes postos de governo. E há muitas coisas que se pode temer nisso. Primeiro, o mais gritante: as Forças Armadas em uma democracia são uma instituição de Estado, elas não se confundem com governo ou partido. Assim como outras instituições de Estado, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, assim como algumas políticas públicas constitucionais, elas precisam pairar acima das divergências partidárias. No momento em que elas se envolvem com o governo, começam a corroer esse lastro de legitimidade que têm. Elas, portanto, se politizam e, ao se politizar, passam a ser fiadoras desse governo e ter toda a sua legitimidade sujeita ao sucesso ou ao fracasso do governo.
Instituições de Estado não só têm de ser imparciais, mas percebidas como imparciais. Governos são representações de um certo programa, eleitos por parcela do povo, etc., e se legitimam por isso. As Forças Armadas não se legitimam pelo voto, se legitimam em sua capacidade de cumprir uma função de Estado. No momento em que você rompe essa fronteira entre uma coisa e outra, você perde o seu lastro de legitimidade. Então, os militares se colocaram como lastro de um projeto de desconstrução e de ataque à Constituição brasileira. É muito grave a militarização. Militarização é um índice de autocratização de um regime. É um índice de corrosão democrática.
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E essa postura negacionista em relação à pandemia se estende também às questões institucionais? O senhor acha que isso afeta, de alguma forma, a democracia?
A democracia é um regime que depende, entre outras coisas, de um edifício institucional de produção ou aproximação da verdade, da verdade sobre fatos e das narrativas sobre fatos delas. A partir dessa base comum e compartilhada, é possível que a gente discuta, divirja, chegue a consensos e tome decisões coletivas. No momento em que se destrói esse edifício de produção da verdade factual perde-se o chão comum. O negacionismo científico ameaça a democracia, claro, afinal, alija a ciência da discussão pública e abre o caminho para que líderes populistas passem, por meio de mecanismos de desinformação, a ter uma avenida livre para a opressão e a manipulação.
Em última instância, negacionismo científico é um ataque à liberdade. Um ser manipulado carece do requisito mínimo para ser livre. É um ataque à possibilidade de as pessoas tomarem decisões autônomas por sua conta, com base em fatos. No momento em que você priva as pessoas de conhecer fatos, você as controla. Pessoas crentes no WhatsApp renunciam à possibilidade de se autogovernar.
Não há governo do povo onde os membros desse povo não estejam informados: seja pelas ciências, seja pelo jornalismo. Pode até ter cara de democracia, etiqueta de democracia, mas não há democracia onde indivíduos em massa são manipulados. Democracia é um regime de indivíduos livres, um processo em permanente construção.
O senhor escreveu que ‘do STF deve brotar juízo jurídico corajoso, não acordos de pacificação’. Por quê?
Porque o SFT não é um partido político e nem deveria ser. O STF é uma instituição de enorme importância no concerto entre os poderes e ele não tem, por função, negociar constitucionalidade ou transacionar a legalidade. Um tribunal, quando passa a agir por essa lógica, deixa de ser tribunal e passa a ser uma espécie de câmara política de negociação. Nisso, perdemos a possibilidade de sermos governados pelas leis, por um Estado de direito, por mais falível e sujeito às idiossincrasias humanas que seja o projeto do Estado de direito. Negociação, acordo, formação de consenso entre diversos atores políticos de interesses diversos são coisas que a política deve fazer, não o Judiciário.
O Judiciário diz se algo é legal ou ilegal, se algo é constitucional ou inconstitucional e toda a sua estrutura de legitimidade está baseada na premissa de que juízes são independentes. Juízes não estão suscetíveis e nem devem levar em conta quem é mais forte ou mais fraco, quais são os interesses econômicos mais ou menos importantes. O juiz aplica a lei. Claro que o exercício de aplicar a lei também é complexo e existem variáveis que permeiam esse processo. Mas, seja como for, o que não pode acontecer é sentar em uma mesa de negociação. Claro que estou falando de uma teoria sobre como o Judiciário deve funcionar, e a legitimidade do Judiciário real depende da maior ou menor aderência a essa teoria. O Judiciário brasileiro falha miseravelmente nessa tarefa.
A Constituição brasileira de 1988 precisa ser reformulada?
A Constituição de 88 é a maior conquista política da história brasileira. Ela é uma ferramenta ambiciosa de transformação social e reparação das características mais problemáticas da sociedade brasileira na sua estrutura.
É uma Constituição também com defeitos, claro, mas na sua essência é uma Constituição que quer promover mudança social orientada por uma lógica igualitária, que tem, entre seus objetivos fundamentais, reduzir desigualdades regionais, combater discriminação de raça, gênero e de todos os outros marcadores sociais da diferença. Nesse sentido ela é chamada de Constituição cidadã. Não é uma Constituição generosa em direitos, é uma Constituição justa em direito, pois direitos não são produto de generosidade, mas de ideais de justiça e dignidade. E incorpora diversos tipos de direitos: direitos civis e políticos, direitos sociais como saúde, educação e ao trabalho digno. São pré-condições para se transformar um indivíduo num cidadão. Cidadão é um sujeito portador de direitos que, portanto, está habilitado a dialogar em condições de igualdade com qualquer outro cidadão de uma sociedade.
Claro que é muito difícil realizar essa missão em um contexto de altíssima desigualdade econômica e hierarquia de status. Desigualdade econômica não é mera desigualdade de riqueza, é uma desigualdade de poder. Então a Constituição tem uma missão heroica. Mas não é perfeita. Além de atribuir direitos universais a cidadãos, protegeu e engessou muitas corporações com interesses antirrepublicanos. A Constituição é cheia de contradições, mas essas contradições e problemas a gente pode ir aos poucos corrigindo, no percurso. O pior diagnóstico que se faz ou que se pode fazer com a Constituição de 88 é que está atrasada e que pode ser substituída por uma nova Constituição. Isso é um diagnóstico perigosíssimo.
É importante reconhecer que existe divergência e pluralidade nas Forças Armadas, e que de fato nem todos os militares estão confortáveis com esse envolvimento profundo no governo. É importante ressaltar também que quando falamos em membros das Forças Armadas temos de fazer uma distinção entre os membros da reserva, ou seja, os que saíram da carreira militar, e os membros da ativa, que continuam a ser militares. Então se já é grave que membros da reserva, em grande número, ocupem postos-chaves do governo, fica muito mais grave que militares da ativa façam isso.
No caso do Ministério da Saúde, a gente está há três meses sem ministro. Há um militar chamado de ministro “interino” por uma pequena fraude que o governo está cometendo: ele só não pode se transformar em ministro efetivo porque, pela lei, militares da ativa não podem ser ministros. Mas ao mesmo tempo decidem manter o general lá e chamam de interino. Na prática é um ministro.
Não existe ministro interino por três meses. Não estamos em fase de transição, mas no meio de uma pandemia e tem um ministro chamado de interino que é militar da ativa.
Como os educadores devem trabalhar com as novas gerações para mostrar a importância de defender uma Constituição, o que não é muito comum, uma vez que costuma ser uma discussão mais da elite e não do povo?
Não sou especialista em currículo de ensino básico, mas eu sei que a ideia de educação política foi algo subestimado na democratização brasileira. Se por um lado há gente que rechace, por boas razões, a tradição da educação moral e cívica, que não passava de uma educação autoritária, de celebração de símbolos nacionais, de uma visão conservadora de mundo e etc., uma espécie de doutrinação nacionalista bem pouco democrática, sua extinção deixou um vácuo que precisa ser ocupado. É preciso fazer uma educação política e constitucional que não seja apenas o ensino de noções elementares da Constituição.
Educação em direito constitucional não é apenas uma educação em direitos, não é só uma educação para esclarecer que direitos cada cidadão tem. É também para compreensão do bem comum, da responsabilidade individual e coletiva pela promoção do bem comum. Educação política deve ensinar uma educação para a prática desses valores igualitários, não apenas transmissão de conceitos abstratos. É uma educação que precisa levar a sério a sociedade desigual que a gente vive, em toda complexidade da desigualdade. Somos uma sociedade brutalmente desigual tanto em distribuição de riqueza quanto no reconhecimento de identidades e status.
Educação que precisa ser profunda, mais prática do que teórica, não só introdutória. Tem de entender o enorme desafio criado por uma história de 500 anos de muita violência, autoritarismo e exclusão.
Existem conteúdos constitucionais, claro, que qualquer cidadão precisa conhecer. Não só para se defender diante de ataques a seus direitos. Quando se precisa invocar a linguagem dos direitos é porque já se está em apuros. Quando preciso dizer que sou livre para fazer algo é porque alguém está ameaçando a minha liberdade. Isso é importante, claro. Mas a educação política e democrática tem de ensinar algo que precede a isso. Mostrar a responsabilidade de ser cidadão e ser coerente com esses valores abstratos que a gente professa, mas nem sempre pratica.
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Que conteúdos seriam esses que qualquer cidadão precisa saber?
Os 15 artigos iniciais da Constituição são um ponto de partida importante. Falam dos direitos e objetivos fundamentais. Os compromissos fundamentais com dignidade, liberdade, igualdade, direitos políticos e civis, direito de participação no exercício do poder, a noção de povo e de participação, os valores que orientam a inserção do Brasil na ordem internacional com base na proteção de direitos humanos. Não necessariamente é para fazer o aluno ler exaustivamente os artigos, mas criar uma discussão crítica sobre o que está por trás desses artigos.
Há outros artigos importantes, claro. Disciplinam direitos das crianças, os diferentes papéis de famílias, Estados e indivíduos na proteção e educação de crianças. A valorização do meio ambiente é um capítulo fundamental. A Constituição é um texto pesado e a leitura acaba desencorajando um pouco esse exercício. Quando falo em tradução da Constituição é para discutir criticamente os valores que estão dentro dela. Não é para simplificar a Constituição. É para entender nela o que realmente importa para o cidadão em geral. O professor pode ser um grande mediador dessa leitura. A educação política e constitucional pode ser feita de modo instigante e inteligente.
Há depoimento de professores que estão evitando falar abertamente em política, para não serem mal interpretados e o aluno levar para o pai, que reclama na escola. Isso é fruto de um momento em que vivemos?
Isso é um movimento de alguns anos, que espelha movimentos muito parecidos na história do século XX, nas maiores tragédias do século XX. Um dos lugares em que o alarme começa a tocar é a escola e a sala de aula. Quando a escola se torna um ambiente de vigilância sobre o que pensam e as ideias ali professadas, produz-se um mito generalizado de que salas de aula são grandes centros de doutrinação das novas gerações para um mundo amedrontador e degenerado. Estamos vivendo hoje algo muito parecido com o que se viveu em outros movimentos e revoluções autoritárias da história.
Isso se pode ver no projeto da Escola sem Partido, no combate às universidades públicas e na disseminação de desinformação sobre o que acontece na universidade pública. Busca-se construir um ambiente de medo e desconfiança, de intimidação e de vigilância. E não é só de liberdade de expressão que estamos falando, mas de liberdade acadêmica, liberdade pedagógica. Liberdade pedagógica não é a mesma coisa que liberdade de expressão. Eu, como professor, não posso dizer o que bem entender na sala de aula. Eu sou formado dentro de uma disciplina particular e tenho compromisso com essa disciplina, com as convenções dessa disciplina, com as perguntas e respostas dessa disciplina. E tenho dever de ser honesto sobre o grau de incerteza sobre as conclusões e divergências persistentes dessa disciplina.
É claro que tenho liberdade de pensar dentro dos limites dessa disciplina, de assumir posições dentro dos limites dessa disciplina. Se sou professor de história posso ter uma interpretação controversa de muitos episódios da história, mas essa visão precisa ser justificada e fundamentada dentro dessa disciplina. Há controvérsias nas ciências, e ainda mais nas ciências sociais. Não tenho liberdade de expressão para falar qualquer coisa na sala de aula, para doutrinar ou inventar fatos que não existiram.
A educação para a emancipação do aluno é uma educação em que isso esteja claro: o professor é um intérprete e transmissor da sua disciplina. Ele pode e deve ter visão crítica sobre seu objeto de estudo, pode defender algumas posições e rechaçar outras, optar por defender certos pensadores e criticar outros. O que ele não pode é dizer o que bem entender e ser desonesto.
E o que faz um projeto como a Escola sem Partido nada mais é que produzir um mito que professores são agentes politicamente interessados no exercício de doutrinação e recrutamento de alunos.
Esse diagnóstico empírico é, na melhor das hipóteses, impressionista, um senso comum jamais demonstrado (exceto por “causos” anedóticos). Na pior das hipóteses, é desonesto e pura má-fé. Um projeto como esse erra dramaticamente no remédio que propõe, porque se fosse verdade que alguns professores fazem algo que possa ser chamado de doutrinação, que é um conceito por si só escorregadio, o remédio, certamente não é criar um ambiente de vigilância de professores por pais e alunos nas escolas. Há mecanismos de governança entre o que fazem professores.
Transformar pais e alunos em denunciantes de professores é uma opção ignorante. Não há um só educador que defenda isso. São violações muito toscas do processo pedagógico e ninguém ganha com isso. E quem perde mais é o aluno, que vai se transformar em um robô estupidificado.
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O próprio Paulo Freire traz esse movimento de que educar é um ato político, porque tenta mudar a realidade, a desigualdade. Só que governos autoritários costumam não gostar dessa associação. Que educação governos autoritários querem?
Governos autoritários não querem educação para liberdade, para autonomia e para a crítica. Não querem cidadãos que pensem por sua conta. Querem operadores de máquinas e aplicadores de fórmulas, querem formação puramente profissional, que é também papel fundamental da educação, mas que, inclusive do ponto de vista puramente econômico, já não faz mais sentido no mundo de hoje. Ter um profissional puramente domesticado não ajuda a economia do conhecimento. Autonomia intelectual, autonomia para a crítica é algo que se desenvolve com a pluralidade de professores, com professores com ideias diversas e provoquem alunos a pensar diferente, que provoquem alunos a discordar do professor. Regimes autoritários não querem educadores, querem transmitir um conjunto de habilidades operacionais. Democracias precisam educar para a vida democrática, senão a democracia continua a ser mera fachada.
É importante dizer que uma das ferramentas mais poderosas de emancipação e produção de igualdade e democratização em uma sociedade é a educação pública universal em que os diferentes se encontram.
A minha vida num colégio como o Porto Seguro não foi uma vida infeliz, mas foi socialmente paupérrima. Uma homogeneidade artificial, que não existe na sociedade brasileira. Homogeneidade da porta para dentro. Tenho boas memórias de minha educação e guardo bons amigos, mas lamento que tenha tido de frequentar um colégio assim, onde convivi com pessoas que pensavam exatamente como eu pensava, cujos pais pensavam exatamente como meus pais pensavam. Em que eu não pude ter nenhum colega negro. Essa não é uma educação para a democracia. Essa é uma educação de uma elite produtora de desigualdade. Portanto, o Brasil é um poço de contradições que a Constituição brasileira tenta enfrentar. Não há democratização no Brasil sem levar a sério a educação pública.
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