NOTÍCIA
Neste artigo, a educomunicadora Januária Alves discorre como as histórias nos revelam a realidade
Publicado em 01/04/2021
Se Pinóquio, o famoso personagem do italiano Carlo Collodi, chegasse hoje aqui no planeta Terra certamente se sentiria mais em casa do que nunca. Encontraria milhares de pessoas, tal como ele, dizendo inverdades sem parar. Pinóquio descobriria, para total espanto, que as pessoas por aqui andam mentindo de maneira exponencial e nem mesmo se, de fato estivessem com o nariz crescendo a todo momento, não encontrariam problema nenhum nisso.
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Não à toa a figura do boneco de madeira cujo sonho era virar gente voltou à moda nos últimos tempos. Ano passado estreou nos cinemas a versão de Pinóquio do diretor italiano Matteo Garrone, com o indicado ao Oscar em A Vida é Bela (1997) Roberto Benigni no papel de Gepetto, o pai do menino.
O também premiado diretor mexicano Guillermo Del Toro prepara para a Netflix sua animação em stop motion, com previsão de estreia esse ano, na qual ambienta o clássico infantil na Itália de Mussolini, transformando Pinóquio em um herói antifascista.
E o não menos estrelado diretor americano Robert Zemeckis também trabalha em uma outra versão da história para a Disney, tendo Tom Hanks como Gepetto. Apesar de a mentira não ser o elemento central da história de Pinóquio, como podemos observar, ela assume destaque nas versões descritas acima. E por que será? Será que mentir virou o “novo normal”?
Em tempos de fake news, pós-verdade e desinformação, a mentira está no centro do palco. Talvez o que melhor defina a crise do nosso tempo é o fato de que estamos vivendo em um cenário no qual não conseguimos mais distinguir o que é mentira e o que verdade.
A ficção embaralhou-se a tal ponto com a realidade que cada um “escolhe a sua verdade”, a que melhor lhe convém, e então, os fatos são distorcidos e enquadrados com a lente que melhor serve a um determinado propósito. Nesse sentido, é bom que conheçamos melhor o que é a ficção e para que ela serve. Isso porque, é fundamental que se deixe claro que mentira tem de ser reconhecida, com todas as letras e imagens, como uma mentira (pena que não estejamos condenados como Pinóquio a crescer o nariz quando mentimos).
Mark Twain, um dos maiores escritores norte-americanos, afirmava que a vida real é mais estranha do que a ficção pela simples razão de que a ficção precisa estar inscrita na perspectiva do possível, ou seja, ela precisa fazer sentido, caso contrário, ‘não para em pé’ e não convence. A escritora canadense Margaret Atwood diz que há uma grande diferença entre ficção e mentira. E o que marca essa distinção é que a ficção busca dizer a verdade sobre os seres humanos, ao contrário da mentira.
Segundo um outro escritor, Salman Rushdie, que sabe bem a diferença entre uma coisa e outra, pois foi perseguido porque sua ficção retratava uma dolorosa verdade: “O propósito da literatura é revelar verdades. Já o propósito da mentira é o de obscurecer a verdade. Portanto, de várias maneiras, ficção e mentira são os opostos um do outro. Então, talvez exista um pequeno papel que a ficção pode exercer nesses tempos”.
O que a ficção e a mentira têm em comum é que elas são histórias. E é por meio das histórias que aprendemos sobre nós mesmos, sobre o mundo em que vivemos, é por meio delas que nos aproximamos do que é o mal, o bem, o medo, a felicidade, a morte.
E se as histórias fazem parte do nosso DNA é por meio delas que entendemos o que nos acontece, porque é humanamente impossível experimentarmos tudo o que há no mundo e, portanto, são as narrativas que nos levam a todas as viagens que sonhamos fazer. Desse modo, se as histórias nos mostram o mundo, também podemos escolhê-las de acordo com o mundo que queremos ver. “(…) Talvez ler bons livros seja parte do caminho de reconstruir o senso do que é o mundo real. Parece um paradoxo dizer que a ficção pode ajudar a verdade, mas penso que é real”, segue afirmando Rushdie.
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Daí porque é importante lermos muitas, muitas histórias. Muitas visões de mundo, novas perspectivas, muitas perguntas, mais de uma resposta para cada questão. “Se um cidadão gastar um pouco de tempo em adquirir cultura, ler livros, (…) se buscar mais de uma fonte, terá a possibilidade de criar um critério próprio para entender o que ocorre. Mas se escutar uma só voz, um só discurso, o de sua bolha, tudo estará determinado por essa voz”, afirma o também escritor Fernando Aramburu, autor do livro Pátria, já transformado em série pela HBO.
Seu livro, que retrata um dos períodos mais sangrentos da Espanha, quando havia atentados do grupo terrorista ETA, foi considerado um marco da literatura como retrato de acontecimentos dos últimos tempos, e por isso, ele diz que acredita firmemente no papel da ficção no combate à desinformação.
Há muitas definições do que é mentira, e as histórias de ficção se valem delas para nos alertarem sobre o que é verdade. O grande mestre dos “causos” e “histórias de trancoso”, o escritor Ariano Suassuna, foi brilhante ao nos brindar com um dos personagens mais icônicos da literatura brasileira: Chicó, protagonista de um de seus livros mais conhecidos, O Auto da Compadecida.
Narrador de histórias como ninguém, Chicó “contava um conto e aumentava um ponto”, encerrando suas histórias com o indefectível: “Ah, não sei, só sei que foi assim”, a “deixa” que revelava que o que acabou de contar pertencia ao reino da ficção. Mas não da mentira. As histórias de Chicó são facilmente reconhecíveis e sua estrutura fantástica nos dá pistas da sua inverossimilhança.
Diferentemente das mentiras – e pra não deixar de falar nelas, das fake news – arquitetadas para criar confusão entre fato e ficção, para embaralhar a nossa percepção (ainda que contenham muitas explicações), as histórias de ficção não mentem, porque retratam o nosso inconsciente, aquilo que sentimos e pensamos, e na maior parte das vezes, não nos damos conta. São verdades invisíveis a olho nu.
Por conta do sucesso da série da Netflix Cidade Invisível, o folclore nacional e suas histórias fantásticas têm estado na “boca do povo”. O meu livro Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro foi usado como fonte de pesquisa e inspiração do diretor Carlos Saldanha, criador da série. Com muita criatividade ele colocou os personagens do folclore brasileiro num contexto contemporâneo, urbano, usando a imaginação e o senso crítico, para nos mostrar o quanto a ficção pode desvelar o real de uma maneira mais contundente do que qualquer notícia.
Numa história onde trafegam o Boto, a Iara, o Saci-Pererê, a Cuca, O Tutu Marambá e o Curupira, entramos em contato com questões que são feridas profundas desse país: a destruição da natureza, o desmatamento indiscriminado, a situação de exclusão social de populações urbanas e rurais, a pobreza, o preconceito, mazelas que passam sob os nossos olhos todos os dias sem que prestemos atenção.
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E assim não poderia deixar de ser: o folclore é a identidade de um povo em seu mais profundo significado, cada personagem, cada narrativa, conta sobre o nosso imaginário, que se expressa em atitudes cotidianas, e traduzem o modo como entendemos o mundo, e que, consequentemente, dão origem aos problemas imensos que estamos tendo de lidar todos os dias.
E sem mais delongas, gostaria de encerrar este artigo indicando o filme recém-lançado pela Netflix Relatos do Mundo baseado no romance homônimo de Paulette Jiles, dirigido por Paul Greengrass. Na história, o Capitão Jefferson Kyle Kidd (Tom Hanks) é um veterano de guerra que trabalha como um “contador de notícias”. Ele viaja de cidade em cidade levando diversos jornais para narrar os principais acontecimentos do mundo para as pessoas daquela comunidade.
Além de uma trama repleta de sutilezas simbolizadas pelo seu encontro com uma garota órfã, Kidd (Helena Zengel), um dos temas principais do filme é demonstrar o poder das notícias na vida da sociedade. E o personagem de Tom Hanks descortina isso de uma maneira absolutamente sutil, original e emocionante: ele escolhe narrar as notícias em que as pessoas são o foco, e ao mostrar que atrás de cada notícia há um ser humano como qualquer um, revela a natureza sobre a qual se fazem as histórias, e as notícias.
E é aí, na beleza dos contos, na importância do folclore, dos livros, das narrativas, que talvez resida uma possibilidade para a “cura” do fenômeno da pós-verdade, uma “receita” para o combate à desinformação. Precisamos conhecer as histórias – todas elas, de ficção ou não – para vivermos em plenitude e em comunhão, porque elas são a fonte primária da empatia. Pois, no final de tudo, como escreve outro grande autor, o latino-americano Eduardo Galeano “… os cientistas dizem que somos feitos de átomos, porém eu creio que somos feitos de histórias”.
*Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e membro da UNESCO MIL Aliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da UNESCO. Para saber mais acesse (www.entrepalavras.com.br).
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