NOTÍCIA
Publicado em 21/07/2021
O país parece defenestrar Anísio Teixeira e Clarice Lispector, que completariam 121 e 101 anos em 2021, respectivamente. Ao mesmo tempo joga no lixo um projeto, mal-iniciado, de liderar outros países, com um olhar próprio.
Um feito possível de ser desenvolvido por uma nação com características peculiares: lusófona, de dimensões continentais, em plena América Latina maioritariamente espanhola. Afinal, que outro país poderia construir com tanta propriedade uma educação emancipatória original que misturasse raízes indígenas, africanas, europeias e asiáticas em um currículo com raiz fincada no solo, com radar sintonizado no mundo?
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A obsessão pela construção de uma identidade nacional, instigada pela Semana de Arte Moderna de 22, encontrou algum respiro em vários campos da sociedade brasileira – inclusive na educação do último século -, mas está morta agora. Causa mortis: asfixia. Pobre Oswald de Andrade.
O Ministério da Educação (MEC) conserva as marcas avermelhadas de dedos no pescoço. Inoperante, moribundo e desgovernado, mais se parece com um zumbi vagando num lixão. Quem respira e mantém alguma força no corpo são as secretarias municipais e estaduais, além do Conselho Nacional de Educação (CNE), que se esforçam, apesar do MEC, em fazer a educação de qualidade chegar à diversidade cultural do Brasil.
Como delinear os contornos do país sem um projeto de educação? O sonho do baiano Anísio Teixeira, em plena era Vargas, não era pequeno, tampouco incoerente. O Manifesto dos pioneiros de uma educação nova (1932) – que insiste em não envelhecer – é um registro de diretrizes nacionais para a educação pública de uma época de êxodo rural e crescimento populacional.
O que foi chamado de uma renovação na educação traçou os parâmetros de uma escola pública laica, obrigatória, gratuita e universal para uma nação em formação que ecoava justamente o modernismo de 22 e um desejo de desenho de país.
Vinha ganhando força desde o fim do século 19. A começar pelo desejo da educação de respirar sempre a filosofia de seu tempo – como bem escrito. Educar para o presente, olhando para o futuro e tendo o passado como realidade.
A evidência cabal de seu fracasso é o fato de que, a cada década, reinventamos um novo movimento “escolanovista”, sem nenhum compromisso com o anterior – como quem pretensamente cria um marco inicial, mas no fundo, está retrocedendo. Trata-se de uma “amnésia sistêmica” da sociedade com relação ao proposto pelos 26 signatários do Manifesto, incluindo Roquette-Pinto e Cecília Meireles.
A permanente revisita à Escola Nova revela a ineficiência atual de educar a totalidade da população brasileira (o desafio da universalização) – olhando para as particularidades de cada um (os percalços da personalização) dentro da diversidade. Quantas diretrizes, parâmetros e currículos foram desenhados no Brasil nos últimos 90 anos?
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Há sim uma bela coleção de documentos bem escritos, e também boas práticas e experiências. A escola-parque, por exemplo, projeto de Teixeira enquanto secretário da Educação do Estado da Bahia, está no DNA dos Cieps, da Escola Plural, do Bairro-Escola, e do olhar complexo sobre educação integral de muitos gestores e educadores que ajudaram na construção do Mais Escola, no MEC de 2004. Iniciativas caracterizadas por ambição e utopia.
Entretanto, um projeto de dimensão nacional, mesmo com a atual Base Nacional Comum Curricular, parece longe e asséptico demais para ser atingido. Houve uma aceleração de escolarização na virada do milênio – mas o fracasso da atenção na qualidade da aprendizagem acabou por estimular a evasão que vivemos hoje. O espírito filosófico, cidadão e científico e a necessidade de uma formação de professores voltada às necessidades contemporâneas parecem ter ficado mesmo gravadas em uma obra de “ficção” na década de 1930.
Hoje, é notório um certo estranhamento quando revemos os valores da Escola Nova – como se eles fossem ambiciosos, caros, trabalhosos e perfeitos demais para o Brasil. Isso nos remete, sem muito esforço, aos personagens de outra brasileira em desuso, Clarice Lispector. É o mesmo estranhamento que Laura, personagem de A imitação da Rosa, revela quando presta atenção ao buquê de rosas-meninas que comprou na feira.
Um incômodo relacionamento dela com o seu próprio desejo. Afinal, as rosas são lindas demais para si – não cabem em seu mundo subserviente, machista e opaco. Em A imitação de Cristo, de Tomas de Kempis, relembra ela, o pecado maior era querer ser igual a Ele. Quem ousaria?
O que hoje jogamos pela janela – o sonho de Anísio Teixeira e a literatura de Clarice Lispector – parece muito bom para nós. É uma cena quase macabra, arremessar o suprasumo rumo ao esfacelamento. Mas o Brasil que vivemos é a imitação canhestra e grosseira do Brasil que poderíamos ter sido – aquilo que temos a certeza melancólica de que não merecemos. Um país profundo, complexo, tropical, simultaneamente único e múltiplo e generoso.
Como resgatar a utopia? Acreditando nela, como se acredita em si. Reconstruindo um projeto de nação. Em A imitação da Rosa, pareceu brotar novamente quando Laura diz ao marido: “Voltou, Armando”.
Enquanto nos faltar coragem, Clarice e Anísio têm seus pedaços espalhados no chão de terra batida, com o esgoto logo ali, correndo a céu aberto.
*Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da aliança mundial da Unesco para educação midiática, a UNESCO MIL Alliance.
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