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Arte e Cultura

De Elis Regina a Drummond: os vários olhares da primavera

Poetas, seresteiros, namorados, quem não cantou a primavera?

Publicado em 17/09/2021

por João Jonas Veiga Sobral

Setembro abre a temporada de flores com ventos auspiciosos e anuncia a primavera com promessas de felicidade, de paz e de esperança.  Bocage, poeta português setecentista, influenciado pelo tema, evoca o idílio amoroso – com o afastamento cinzento dos ares frios e invernosos – exortando sua amada para viver os bons tempos que sopram. ”Já se afastou de nós o Inverno agreste/Envolto nos seus úmidos vapores;/A fértil Primavera, a mãe das flores/O prado ameno de boninas veste/(..)Vem, ó Marília, vem lograr comigo/Destes alegres campos a beleza,/Destas copadas árvores o abrigo.”

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O mineiro Beto Guedes, em parceria com o carioca Ronaldo Bastos, entoa a canção com um evangelho: “Quando entrar setembro/E a boa-nova andar nos campos/Quero ver brotar o perdão/Onde a gente plantou/juntos outra vez” e, como o bardo português, sugere que a florada evocada sinaliza um chute singelo nas dores no tempo, provocadas por mortes, por perdas e por abandonos. “Já choramos muito/Muitos se perderam no caminho/Mesmo assim não custa inventar/Uma nova canção/Que venha nos trazer/Sol de primavera.” Elis Regina canta a singeleza do mundo pastoril, em Casa no Campo, composta por Zé Rodrix e Tavito. Canção que se tornou um hino da amizade e da concórdia: “Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa compor muitos rocks rurais/E tenha somente a certeza/Dos amigos do peito e nada mais/ Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa ficar no tamanho da paz”.

Elis Regina

Elis Regina invocada a “montanha da paz” (foto: reprodução)

No sentir das palavras

E se as canções campestres e bucólicas sugerem cenários propícios para encontros harmoniosos onde se respiram ares puros e de bondade, na voz de Alberto Caeiro, heterônimo campesino e sábio de Fernando Pessoa, a natureza ganha espaço para a reflexão singela, equilibrada e sensata. Não há nela a representação de um cenário amoroso ou de um recanto de paz ou de um simbolismo qualquer. A natureza se dispõe aos olhos do poeta com sua força natural e plena. Ela é o que é e oferece aos olhos de quem a vê e às mãos que a tocam somente o que ela pode ser. Há, na relação do poeta com natureza, apenas a absoluta compreensão, circunspecta e cheia de sabedoria. “Que metafísica têm aquelas árvores? /A de serem verdes e copadas e de terem ramos/ E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,/A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, /Que é a de não saber para que vivem/ Nem saber que o não sabem?” Constatação ponderada e atenta como a de Chico Buarque contemplando o Morro Dois Irmão, no Rio de Janeiro, “Aprendi a respeitar tua prumada/E desconfiar do teu silêncio”.

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Ao contrário do poeta, há quem prefira um contato tátil com as flores e as árvores – um abraço em busca de energia, paz e equilíbrio. Há quem veja e sinta nessa interação uma força ancestral, indizível e consoladora. E há quem ache desatino acreditar nessa interlocução e prefira o contato visual e silencioso. E há quem busque nelas algum aprendizado. Caio Fernando de Abreu, com sua verve lírica e sentimental, dispara ao coração dos incautos:

“Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.(…) Depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo”.

Da sombra à luz

Em tempos de aquecimento global, queimadas criminosas, descasos com o meio ambiente e projetos claros de desmate em nome da economia ou de qualquer desfaçatez que justifique o ímpeto de morte e de destruição, é necessário ouvir aqueles que cantaram o amor e a preservação, motivados pelos eflúvios emanados das flores, como ensinou o mestre Cartola: “As rosas não falam/Simplesmente as rosas exalam/O perfume que roubam de ti”. Mas no caminho tortuoso e árido em que as flores são empecilhos, já ouvimos, na voz de Ney Matogrosso, o lamento de Vinícius à brutalidade surda e endurecida: “Mas oh não se esqueçam/Da rosa da rosa/Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária/A rosa radioativa/Estúpida e inválida/A rosa com cirrose/A antirrosa atômica/Sem cor sem perfume/Sem rosa sem nada”.

Drummond, em Sentimento do mundo, nos chama atenção ao nosso recatado medo e ao conformismo perigoso em aceitar a ação dos que velam a morte dos nossos setembros, “o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,/o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,/cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,/cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,/depois morreremos de medo/e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”. No entanto, em “A rosa do povo”, o poeta vê – na insistência das flores que sabem procurar por vida e por luz – algum ensinamento e provocação para que evitemos o nascimento de flores amarelas e medrosas sobre nossas covas.  A metáfora da resistência de uma flor é o apelo de Drummond para que cuidemos de uma vida plena e sustentável. O nascimento de uma flor feia na rua, mas – sobretudo uma flor – é a pista. Ela, inquieta e desbotada, ilude a polícia, fura o asfalto, o tédio, o nojo e ódio. Talvez o poema sugira que silenciemos o rebento, mas não o gesto.

Há esperança

Que setembro faça renascer o nosso sentimento do mundo e pelo mundo e viceje para além da estação. Que ele afaste os vestígios agrestes que nos assombram e secam para que não nasçam ervas daninhas no chão pisado pelos senhores das mortes primaveris. Que as flores rompam o asfaltoelis- e paralisem os negócios, às vezes obscenos.

Deixo aqui um abraço, como um buquê, aos 25 anos da hoje Plataforma Educação que vem renascendo a cada dia e florindo os caminhos daqueles que ensinam e aprendem.

*João Jonas Veiga Sobral é professor de língua portuguesa e orientador educacional.

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Autor

João Jonas Veiga Sobral


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