NOTÍCIA
O trabalho heroico de grupos que têm a arte como ponte para a cura de feridas psicológicas em crianças e adultos que vivem em regiões de violência permanente, guerra e insurreições
Publicado em 22/09/2021
A pedagogia de emergência preocupa-se com o sentir, pensar e querer de cada criança que vive em região de guerra, de catástrofe natural ou violência – esse último tão naturalizado no Brasil de Ágatha Félix, assassinada aos oito anos, ou das primas executadas Emilly Victoria, de quatro anos, e Rebeca Beatriz, de sete. Com práticas pedagógicas e terapêuticas inspiradas nos princípios de Rudolf Steiner, filósofo e criador da pedagogia Waldorf, as intervenções ocorrem desde 2006 pelo mundo, como Faixa de Gaza, Iraque, Haiti, Quênia e Eslovênia. Em 2012 essa pedagogia chega ao Brasil para quatro anos depois se formalizar como uma associação. Ao todo, mais de 50 mil crianças já foram beneficiadas.
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Engajado em desenvolver seres humanos melhores, Steiner lançou suas ideias na Europa logo após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, período de medo e reconstrução social. Expressões artísticas que eliminam a rigidez e dão espaço para a leveza, criatividade, respiração e possibilitam aos pequenos colocarem a mão na massa (dança, argila e aquarela, por exemplo) foram defendidas pelo filósofo e adotadas nas intervenções da pedagogia de emergência.
“O trauma pega muito o físico, pode deixar paralisado. No segundo momento abala o ritmo: não come, dificuldade de concentração, atinge aparelho digestório (sic) e a criança volta a fazer xixi na cama. Terceira característica afeta a relação, interação. Trauma também pode trazer flash back. E tem a questão da identidade, do nosso eu, em que não sou mais capaz de lidar com a minha própria vida”, detalha Reinaldo Nascimento, cofundador da Associação de Pedagogia de Emergência Brasil e coordenador pedagógico do movimento internacional. Ele é também terapeuta social, psicopedagogo e educador físico.
Após uma catástrofe, o objetivo dos membros é chegar o mais rápido possível ao local, para que tais sintomas relatados sejam passageiros e não se desenvolvam para uma doença. Nascimento exemplifica que ninguém fica doente por um terremoto. São fases.
“Quando vou ao Iraque sei por que a guerra começou e quando. Na Rocinha, no Rio, ou no Jardim Ângela, bairro de São Paulo em que nasci, não.” Na visão do terapeuta social, a violência que ocorre nas periferias brasileiras é percussora de traumas crônicos e o desafio é ajudar as crianças a saírem de um ciclo que acham ser normal.
O trabalho é feito com as crianças, mas há formação para os educadores locais, principalmente sobre o que é o trauma e como lidar com cada uma das fases. É comum também roda de conversas com as famílias. Para cada intervenção há cerca de 15 pessoas, dentre pedagogos, educadores, terapeutas e médicos, a depender da realidade.
Após a passagem de um terremoto que arrasou em 2016 parte do Equador, 10 dias depois lá estava a brasileira Gabriela Winter. No mesmo ano pisou por três semanas em um campo de refugiados em Kakuma, Quênia – ali viviam, ou sobreviviam, cerca de 180 mil pessoas, sendo metade menores de idade. Em 2016 ela ainda esteve na Brasilândia, bairro periférico de SP, devido a um período de onda violenta, incluindo assassinatos.
Gabriela Winter faz parte da ONG Palhaços sem Fronteiras Brasil e também integra o time dos Estados Unidos. “Nosso lance é levar riso como ferramenta de regeneração”, diz.
“Na hora do espetáculo acontece um momento fora do tempo, como se saíssemos de nós. Esse intervalo de sair um pouco da realidade dá um respiro e traz esperança”, explica a artista que também transmutou a energia – como gosta de definir – de Brumadinho, MG, devido ao crime ambiental ocorrido em 2019 e que colocou toda a cidade em luto.
Presente em 15 países, a primeira expedição do Palhaços sem Fronteiras ocorreu em 1993, em um campo de refugiados na Croácia, período da Guerra da Bósnia. Já o Palhaços sem Fronteiras Brasil é o único presente na América Latina e foi fundado em 2016 por Aline Moreno, que é também diretora executiva. “Já fiz 15 projetos presenciais, do Saara à Cracolândia”, resume.
A fundadora enfatiza a importância das competências socioemocionais, que são desenvolvidas nos artistas, mas também no público, por meio de um jogo ou dança, já que nessas atividades lúdicas a pessoa passa a olhar para o seu próprio corpo, para si mesma. “Abre espaço para falar de questões que traumatizaram e não apenas verbalmente; não adianta meter conteúdo nas pessoas sem que elas consigam integrar – a criança não está sabendo nem o que ela é”, destaca Aline Moreno.
Outro ponto forte de transformação que Moreno reforça é com os espaços públicos. Segundo ela, é comum o local do tiroteio se tornar disseminador de ódio e estar atrelado a um trauma. “Se a gente ressignifica, faz um espetáculo ali, as pessoas olham de outra maneira. No México nos apresentamos no ponto zero de um terremoto a que ninguém mais ia.”
A junção da arte e causa social sempre fez parte da vida de Aline Moreno – seu pai é um dos fundadores do Sindicado dos Professores do ABC, SP. Tanto que para ela está claro que toda criança, independentemente de seu contexto, tem direito a brincar, ler, ser alfabetizada e acessar conhecimentos. Viver, para além de sobreviver. Sobre a covid-19, a artista diz que ela e demais membros da organização já estão acostumados a trabalhar em área em estado de crise, então não foi tão impactante.
“Já fazia parte da nossa realidade entender que o mundo está em crise, seja pandemia ou não”, diz Aline Moreno.
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Foi na cadeia que Antônio Hermes de Sousa descobriu habilidades como escultura, pintura, desenho e poesia. A troca de chave veio com a obra O alquimista, de Paulo Coelho, lida cinco vezes. “O livro me despertou capacitação interna, buscar em um lugar hostil, árido de mim mesmo, que não tem nada de conhecimento e acesso à arte, mas que ao mesmo tempo fortalece o desejo, busca.” Ao sair do presídio, em 2000, tinha em mente a arte como transformação social e a fé como ponto de equilíbrio para levá-lo a um lugar que mesmo não existindo pode transformar.
Um lixão localizado na zona leste de São Paulo, mais precisamente no hoje terceiro maior bairro periférico da cidade, União de Vila Nova, em São Miguel Paulista, virou semente, que floresceu, mudou de local algumas vezes, mas sempre na mesma região, e se transformou no Instituto Nova União da Arte (NUA), oficializado em 2005 e cuja missão se mantém até hoje: promover o desenvolvimento social, econômico e comunitário do bairro por meio da arte, educação, esporte e geração de renda.
O lixão era a moradia de um amigo que conheceu enquanto esteve preso.
“Foi ali que também pensei ser visto como lixo. Cara que ficou 10 anos preso por tráfico, assalto, ex-dependente do crack. O que mais podia ser: lixo. Era assim que me via. Tinha saído de um presídio e agora estava em um maior, portas fechadas. Andando, mas portas fechadas”, reflete Hermes de Sousa.
Por sorte, garra ou fé, não se prendeu a estigmas. Hoje, o Nua atende mensalmente cerca de 400 crianças, adolescentes e adultos. Entre os diversos projetos um envolve 240 crianças no contraturno escolar. “Meu sonho era trazer a Escola da Ponte [idealizada pelo educador português José Pacheco] para a favela. Como não conseguimos, construímos a Escola debaixo da Ponte.” No espaço há uma biblioteca, chamada de tráfico literário, quadra de futebol, pequena pista de atletismo, espaço para cinema e encontros da comunidade. Uma área está sendo ampliada para incluir arte e grafite a céu aberto.
Há ainda a rádio e TV Nuar, em que crianças e jovens participam como repórteres e cinegrafistas. Os conteúdos variam de esporte, saneamento básico aos cuidados contra a covid-19. Já a Quebrada Sustentável, junto a parceiros, está implantando uma moeda local. Além disso, forma facilitadores ambientais na periferia e foi precursora da criação de um coletivo de mulheres – a maioria nascidas no Nordeste – o G.A.U. (Grupo de Agricultoras Urbanas), que consegue gerar renda para cerca de 10 famílias por meio de venda de alimentos orgânicos e PANCs (plantas alimentícias não convencionais). “Favela é lugar de abundância e escassez”, decreta o fundador do Instituto Nua. E há muitas outras iniciativas em andamento ou que já aconteceram.
O fundador do instituto diz que ali é também um espaço de acolhimento, de escuta, em que se trabalha a regeneração da confiança. “Você escuta trauma e sonhos e os sonhos nos dão base para firmar identidade da pessoa, não no sofrimento, mas sonho, desejo, busca. Também buscamos promover uma inclusão que seja participativa, que as pessoas tenham voz.”
Hermes de Sousa volta aos anos 2000. Segundo ele, era comum acontecer 11 homicídios diariamente no bairro em que hoje está enraizado o Instituto Nua. Aos poucos a realidade começou a mudar. Ele e equipe acreditam que o Nua seja um dos motivos. “De uma coisa diária chegou a ficar quase sete anos sem homicídio. Há uma série de fatores envolvidos, como políticas públicas. Mas entendemos pelo olhar da importância da regeneração da confiança. Confiar na pessoa. Não vemos pessoa envolvida com tráfico sem volta. Se eu voltei qualquer um pode. Não vemos pessoas como bandido, assaltante. Vemos como filho de dona Maria, seu Pedro. Vemos pela história que cada um carrega.”
Giselle Paulino é jornalista, pesquisadora sobre segurança alimentar e nutricional em países africanos como a Etiópia e idealizadora de jornadas de aprendizagem em países asiáticos, entre eles Índia e Butão. Nessas vivências conheceu o indiano Manish Jain, formado em Harvard e que já trabalhou na Unesco e Banco Mundial, mas percebeu que a essência estava na sabedoria popular. O resultado: abandonou o modo de vida tradicional e voltou à Índia para aprender com sua avó. A partir de então passou a ser um precursor de repensar a educação por meio de espaços de aprendizagem livres. Manish Jain já veio ao Brasil e conheceu o Instituto Nua. “Ele disse que fazemos uma universidade livre”, conta Hermes de Sousa.
A pesquisadora também é cofundadora da Universidade das Kebradas, projeto cuja busca pela liberdade e quebra de paradigmas andam juntas. Os mestres são os moradores das periferias, líderes comunitários, indígenas, quilombolas e demais pessoas, que naturalmente transmitem ensinamentos adquiridos ao longo da vida, da sobrevivência, envolvendo dilemas sociais, ambientais ou saberes tradicionais. “Hermes jamais poderia dar aula em uma universidade tradicional, sendo que tem conhecimento”, pontua a pesquisadora.
Livro conta 21 histórias reais de estudantes, incluindo refugiados, que transformaram a educação