NOTÍCIA
O projeto de educação desde o governo Itamar Franco foi rompido
Publicado em 05/10/2021
Vivemos em um cenário de terra arrasada. A sucessão dos nomes que chegaram ao MEC desde 2019 é um elenco de filme B de terror – ou de comédias ao estilo Borat, o incorretíssimo jornalista criado por Sacha Baron Cohen. Como ministros da Educação sucederam-se o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, o foragido Abraham Weintraub e o pastor Milton Ribeiro. Todos se esmeraram em seus papéis de vilão, com decisões e falas que causaram assombro e indignação na sociedade.
Obrigar a gravação de crianças enaltecendo, após entoar o hino nacional, o slogan “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos” foi a grande contribuição do primeiro, ferrenho defensor da ditadura militar. O segundo notabilizou-se por praticar uma língua semelhante ao português, com erros grosseiros em suas postagens e discursos terraplanistas. Ao terceiro, restou entrar para a antologia desses tempos sombrios ao declarar que “é impossível a convivência na escola de crianças com determinado grau de deficiência: elas atrapalham”.
Essa tríade não mediu esforços em implodir, sobretudo, os alicerces humanistas que sustentaram o caminho de todos os seus antecessores, desde a redemocratização do país, mesmo os direitistas nomeados por José Sarney (a começar pelo respeitável conservador Marco Maciel), e outros, alguns remanescentes de uma direita que hoje somos obrigados a chamar de civilizada, pela força dos fatos.
Nessas mais de três décadas, até Bolsonaro, perfilaram no comando do MEC representantes das correntes partidárias relevantes e as mais diversas colorações ideológicas. Todos os presidentes eleitos assumiram o compromisso de fortalecer a escola brasileira – e cada um cumpriu esse papel, com maior ou menor impacto, mas sempre com alguma coerência e coesão.
Assistimos, notadamente a partir de Murílio Hingel (governo Itamar Franco), o desfile de nomes como Paulo Renato Souza, Cristovam Buarque, Tarso Genro, Fernando Haddad, Cid Gomes e Renato Janine Ribeiro. Em comum, é possível afirmar que esse time deu aparência e conteúdo ao mesmo projeto, uma educação universal, inclusiva e democrática.
Paulo Renato Souza merece destaque e reverência. Em seus oito anos à frente do Ministério, consolidou-se uma visão estruturada, planejada e projetada para colocar toda criança na escola e facilitar o acesso ao ensino superior.
Lá no governo FHC, já estavam desenhados um fortificado sistema de avaliação, política de cotas, parâmetros curriculares, um programa nacional para os livros didáticos, o Enem e a forte abertura de vagas no ensino superior privado, imprescindível para o sucesso (e a polêmica) do futuro Prouni.
Sem nenhuma paixão política, sem que houvesse polarização, respeitadas as diferenças e ênfases colocadas por cada gestor, em resumo, foi esse o caminho que o campo democrático seguiu para conduzir o Brasil até o desembarque fulminante do bolsonarismo. Ao final, o esforço de toda uma geração – aquela, que enfrentou o Golpe de 64 – se mostrou frágil e inflamável. Essa geração foi derrotada.
Leia: PNE: educação brasileira evolui lentamente
Toda a arquitetura erigida durante longos 34 anos ruiu ao menor sopro de autoritarismo. Em dois anos e meio da extrema-direita no poder, o estrago feito é tamanho que serão necessárias novas décadas caso queiram fazer o rescaldo dessa fornalha.
Está sendo um massacre. Não faltam exemplos de ataques sistemáticos ao estado laico, aos direitos humanos, à inclusão de minorias étnicas, às questões de gênero e a todo e qualquer valor republicano consagrado na Constituição de 1988.
De toda derrota fica uma lição. A mais desagradável – portanto, com maior probabilidade de ser determinante – é reconhecer que havia algo de muito equivocado nessa, hoje vemos, falsa epopeia geracional.
Bolsonaro sempre acusou nossas escolas (e faculdades) de formar comunistas, homossexuais, consumidores de drogas, ninfomaníacos e vagabundos. Chega a ser constrangedor rebater essas sandices, mas pior é admitir que boa parte da população acreditou nelas – ou não se importou com que fossem propagadas.
Por que esse desprezo (ou desconfiança, ou ignorância) com os professores e com o ofício de aprender e ensinar? Uma boa pista está nos números que ostentamos sobre a qualidade da educação brasileira. Qualquer pessoa com honestidade intelectual terá de reconhecer: o Brasil pouco ou nada evoluiu em questões fundamentais para a criança, o jovem ou o adulto que busca nossos bancos escolares.
Continuamos um país a formar analfabetos funcionais na saída do ensino médio e a jogar milhões de subempregados no mercado informal de trabalho. Sim, temos nichos de excelência. Sempre tivemos. Porém, a imensa maioria dos brasileiros não colhe frutos dessa escola da qual se fala nos cursos de pedagogia e nos acalorados debates de especialistas sobre o futuro e os desafios do ensino no Brasil.
Obviamente, esses valores são os corretos e nos distinguem enquanto cidadãos, seres civilizados e democratas. Não é questão de dogmatismo; é pura constatação pragmática: nossa educação é de péssima qualidade, incapaz de gerar empregos e inserir o país em um mundo altamente tecnológico e competitivo. Os números são implacáveis, nesse sentido.
Nesse mesmo período que tratamos – na verdade, um pouco menos, cerca de 20 anos – muitos países saíram de uma situação educacional bem mais grave que a brasileira. Hoje, as então miseráveis Coreia do Sul e China, por exemplo, estão na ponta de um ensino que transformou suas nações em potências econômicas. É possível.
Não há, neste momento, como arriscarmos uma resposta a tamanho desmonte. Já terá sido um enorme avanço (em meio a tantos recuos), se houver forças para nos debruçarmos sobre a realidade e dela tirarmos ensinamentos. Haja o que houver, daqui para a frente, o Brasil nunca mais será o mesmo. A educação também precisa mudar.
*Marco Antonio Araújo foi cocriador e primeiro editor da revista Educação