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Em entrevista, economista e diretor executivo do Semesp, Rodrigo Capelato alerta sobre a falta de políticas públicas para a inclusão de jovens de baixa renda nas faculdades e aponta caminhos para suprir parte do problema, como o modelo adotado na Austrália
Publicado em 20/10/2021
Em entrevista, economista e diretor executivo do Semesp, Rodrigo Capelato alerta sobre a falta de políticas públicas para a inclusão de jovens de baixa renda nas faculdades e aponta caminhos para suprir parte do problema, como o modelo adotado na Austrália
Paralisação de políticas públicas, crise econômica e uma pandemia. Se antes as instituições de ensino superior recebiam alunos que chegavam com defasagem de aprendizado, agora o quadro tornou-se mais preocupante. Muitos sem aula presencial há mais de um ano acabaram se desinteressando, com isso o risco de abandonar o ensino médio cresce a cada dia.
Em entrevista, o economista Rodrigo Capelato, diretor executivo do Semesp (entidade que representa mantenedoras de ensino superior no Brasil), apresenta uma visão crítica e realista do panorama educacional brasileiro, no qual toda uma geração, especialmente a de jovens vulneráveis, se verá cada vez mais distante da quebra do ciclo de pobreza e do acesso à formação superior. Os resultados são desoladores e levam o país ao retrocesso. A conta virá no futuro.
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Responsável pelo Mapa do Ensino Superior no Brasil, entre outros estudos estatísticos e econômicos para o setor educacional, Capelato é doutorando em estudos contemporâneos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Confira a entrevista.
As IES [instituições de ensino superior] vêm sofrendo com essa questão já há algum tempo. Grande parte dos alunos, especialmente os oriundos das escolas públicas, já chegavam com muitas defasagens, principalmente em português – leitura, interpretação e escrita -, e também em matemática. São muitos problemas de base, o que atrapalha o desenvolvimento nos cursos superiores. Tanto é que a evasão é muito grande já nos primeiros meses, quando eles percebem que não conseguem acompanhar os estudos, sobretudo em cursos que demandam cálculos e física, como é o caso das engenharias. As instituições passaram então a elaborar programas de nivelamento e uma série de coisas para atenuar essa situação. Trata-se de um problema que vem de anos de estudo entre o fundamental e médio. E com a pandemia esse problema se agravou e preocupa o que será a partir do ano que vem.
Temos observado que o aluno do ensino médio público ficou sem aula todo esse período. Apesar de o governo falar em aulas online, isso não estava acontecendo, muitos mal conseguiram acompanhar. Se no presencial eles já têm uma dificuldade muito grande de acompanhamento por causa da estrutura familiar mais vulnerável, que não apoia tanto os estudos – além dos próprios problemas da escola pública quanto à valorização de professores e da qualidade de ensino em si -, quando esse aluno parte para o totalmente online, a defasagem aumenta ainda mais. Então esse período não só o paralisou como o fez regredir três, quatro anos de estudo. Logo, essa é uma situação bastante preocupante e desafiadora para o setor.
Em torno de 2,7 até 3 milhões de estudantes com idade entre 18 e 24 anos prestam o Enem todos os anos e, desses, apenas 1,8 milhão ingressam no ensino superior. Sobra sempre uma média de 1 milhão que realiza a prova e não consegue ingressar.
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É uma questão bem delicada pelo seguinte: é uma prova que vai definir se o estudante vai entrar no ensino superior ou não, e olhando para aspectos muito pequenos para essa decisão. Chega a ser cruel definir a vida de uma pessoa com uma prova a qual dificilmente conseguirá extrair todas as habilidades que efetivamente esses jovens tenham e avaliar outros atributos que também são importantes e os quais não podem ser captados por uma prova. Além de situações como o fato de possivelmente ele estar nervoso bem no dia do exame. Mas, ao mesmo tempo, não há outros mecanismos e estamos falando de milhões de estudantes. Como fazer processos de admissão que não sejam dessa forma? Ficamos num impasse.
Por outro lado, uma coisa que é complicada, mas acho que poderia ser um pouco mais relativizada, é que, para qualquer programa social, seja o ProUni, o Fies ou cotas, é exigido o alcance de 450 pontos de nota pelo Enem, sem zerar na redação. Claro, deve ser exigido certo nível de conhecimento para ingressar no ensino superior, mas, olhando pelo fator social, os estudantes com renda mais baixa são os que menos conseguem atingir essa nota. Será que não poderia baixar um pouco a média para alunos de baixa renda, para 350, ao invés de 450 e aplicar um programa de reforço ou acompanhamento especial? Ou é melhor continuar tratando todo mundo igual e permitir que os estudantes de melhores condições financeiras sejam os que continuem tendo acesso a essas oportunidades, visto que é a grande maioria deles que atinge a média de 450 pontos?
Fica cada vez mais difícil ampliar o acesso pelos programas sociais por causa disso. Também deveria ser avaliado o nível dos cursos. Os tecnólogos, que são cursos técnicos de nível superior, não precisariam ter a mesma média exigida para quem quer cursar engenharia. Esses são alguns dos critérios que acredito serem injustos.
Setor está sem perspectiva, acredita o economista
Tem. Cada vez mais você vê as instituições indo por esse caminho, pois, do total de alunos no ensino superior, 90% pertencem às classes C, D e E; 75% destes, matriculados em instituições privadas. Na pública há poucas vagas, o que dificulta a concorrência; a maioria fica de fora. Na privada, onde há um número maior de vagas, eles não conseguem pagar a mensalidade. Então se faz obrigatório criar um sistema de financiamento estudantil, mas o único jeito de darmos acesso em larga escala é que este sistema exista como política pública. Não adianta um banco oferecer essa possibilidade porque acaba tendo taxas mais altas e muitas vezes recusa do crédito para quem realmente precisa, por medo de inadimplência. Como isso não tem acontecido de fato como política pública, as instituições estão se virando e buscando alternativas.
Uma delas, que não é solução, mas uma forma paliativa, é aumentar o crédito educativo próprio, no qual a própria IES financia parte dos estudos do aluno e ele paga em mais tempo, para além do período do curso, quando se espera que ele já esteja empregado na área, com melhor condição de renda. Mas isso é feito para um volume muito menor que a demanda existente, afinal, elas não têm condições de abrir essa possibilidade para todos os alunos que precisam.
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Hoje só 2,2% dos estudantes ingressam com o Fies, mas com o crédito próprio das instituições já são 5,5%, ou seja, é mais do que o dobro de quem entra com o financiamento público. Só para você ter uma ideia, em 2014, que foi o auge do programa, 21,3% dos alunos ingressavam em um curso superior por meio dele e só 0,3% utilizavam financiamento oferecido pela instituição de ensino.
Até 2014 pudemos ver um processo de expansão e inclusão ao ensino superior, pelo crescimento econômico e pela proporção de incentivos como o ProUni e o próprio Fies; logo a taxa líquida de escolarização (entre 18 e 24 anos) só foi crescendo e chegou a 18% e assim se manteve até hoje. A partir do momento em que o Fies entra em colapso, somado a uma crise econômica que começa em 2015 e só continua a se aprofundar desde então, esbarrando em uma pandemia, as camadas sociais mais vulneráveis são diretamente afetadas com maior dificuldade de acesso ao ensino superior. O que significa que o crédito educativo alivia essa deficiência, mas pouco. Tudo isso faz com que a taxa de escolarização líquida pare de crescer, e nós precisamos crescer, visto que o índice é muito baixo.
E isso apesar de a Meta 12 do PNE (Plano Nacional de Educação) estabelecer que, em 2024, haja 33% dos jovens entre 18 e 24 anos no ensino superior – só que paramos nos 18% e esse número não evolui. Em 2024 pode chegar a 20%, distante da meta; esse é ponto mais delicado.
Primeiro, não há uma solução única, é preciso trabalhar com um rol delas, pautadas em políticas públicas. Por exemplo, não adianta oferecer financiamento e ficar formando aluno no bacharelado, isso é uma ineficiência nossa. Paralelamente à inclusão no ensino superior, é preciso ampliar o número de alunos que cursam tecnólogos, por exemplo, que também são de nível superior, com menos tempo de duração e focados no mercado de trabalho. Isso é muito comum na Coreia do Sul, Alemanha, em outros países da Europa e nos Estados Unidos.
No Brasil, grande concentração de alunos do ensino superior está nos bacharelados. Isso acaba saturando algumas carreiras e causando escassez em outras, com cursos demorados, pesados para muitos alunos. São quatro, cinco anos de bacharelado quando se pode incentivar também os cursos de nível técnico (pensando naqueles que não conseguem ingressar no ensino superior) com formação mais rápida e com maior chance de empregabilidade.
Nesse caso poderia ser trabalhado o modelo australiano VET (Vocational Education and Training)*, que são microcertificações que o aluno vai construindo ao longo da aprendizagem, em paralelo com o curso superior, se habilitando em uma série de carreiras e depois pode migrar para o ensino superior lá na frente. Mas, para financiamento estudantil, a fórmula mais eficaz que existe, que também funciona na Austrália e Reino Unido, é vincular o pagamento do financiamento à renda futura desse aluno.
O Fies foi concedido, indiscriminadamente claro, com intenção eleitoreira, muitas instituições burlaram o sistema, outras não tinham qualidade alguma e o egresso não conseguiu melhores salários, emprego na área, ficou inadimplente. É interessante esse modelo de financiamento presente na Austrália e Reino Unido porque, quando formado, o aluno tem que pagar um valor mínimo previamente estipulado para que seja descontado do salário, uma porcentagem para pagamento do financiamento. Os que recebem mais, obviamente, pagam um valor mais alto, porém podem quitar mais rapidamente. Por que não fazer o mesmo por aqui? É uma garantia de que o dinheiro retornará para o fundo e outras pessoas também tenham a oportunidade de usufruir do programa. Não compromete nem o aluno, nem toda uma geração. Acredito que o modelo ideal é o que atrela o pagamento à renda futura do aluno.
Aí é que está o grande equívoco: ele coloca a situação como sendo uma excludente da outra. O médio técnico que o ministro defende é fundamental, porque não é todo mundo que vai ingressar no ensino superior. Só que no Brasil são pouquíssimas pessoas nesse nível. Se desse para todos estarem [no ensino superior], seria muito melhor; o ideal para qualquer país do mundo é que sua população tenha acesso ao ensino superior para ter altos níveis de capacitação. Mas falar que existem poucos técnicos porque tem muita gente no ensino superior, isso não existe. Na verdade, temos poucas pessoas no ensino técnico, poucas pessoas no ensino superior – é preciso avançar em todos os níveis.
Temos apenas 18% de jovens no ensino superior; na Argentina são 30%; no Chile. 40%; nos EUA e países da OCDE, a média é 43% e aqui estamos falando de apenas 18%. É muito abaixo do razoável. Novamente, é preciso pulverizar as formações para outras áreas também, além de a maioria estar concentrada nos bacharelados, com os mesmos cursos: direito, administração etc. É preciso incentivar a formação em áreas que estão gerando demanda e maior oportunidade de empregabilidade.
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O Brasil sempre foi excludente com relação ao ensino superior e até antes de 1996 era excludente até mesmo com as classes A e B. Havia poucas vagas. Quando o Paulo Renato assume como ministro da Educação no governo FHC, a educação era muito defasada em todos os níveis e no próprio sentido da inclusão, sem entrar nos méritos de qualidade, pois, comparando nossos indicadores com os dos norte-americanos na mesma época, tínhamos um século de atraso, praticamente. O objetivo era resolver o problema da inclusão tanto no ensino básico quanto no superior, então toma-se a decisão de universalizar o ensino básico, que trouxe consequências que pagamos até hoje, pois foi feita de qualquer jeito.
Agora, há acesso nas escolas públicas para todos, mas não há qualidade. Para o ensino superior, foi ampliada a oferta por meio da iniciativa privada, com isso começa a aumentar o acesso, mas esbarrando ainda na questão da mensalidade. Aí vem o governo do PT e continua a ampliar o acesso por meio das instituições privadas com programas como o ProUni e o Fies. Depois disso, já num cenário de crise, o governo Temer tenta ainda seguir com a oferta por meio de cursos a distância, mas depois tudo para, estamos assistindo a um regresso.
Infelizmente, o que a gente vê é falta de política pública e divisões como “eu não concordo com a iniciativa privada e apoio a ampliação pelas universidades públicas” ou “eu concordo e quero só instituições de tipos diferentes, etc.”, mas o importante é que existam políticas de inclusão e manutenção da expansão do setor. Hoje, não há nenhuma política, então vamos voltar a ser mais excludentes, cada vez mais afastando o jovem do ensino superior e essa conta virá lá na frente, repetindo o que já passamos uma vez: apagão de mão de obra.
Quando a economia começar a crescer novamente, precisaremos de profissionais qualificados para certas áreas e não teremos. Vamos esbarrar novamente na falta de capital humano nas áreas de tecnologia, principalmente. Vai ter apagão, essa conta vai chegar. Estamos sem perspectivas. As escolas e instituições de ensino superior devem continuar, elas têm essa capacidade muito forte de sobrevivência e de se reinventar, mas, do ponto de vista de acesso, não vejo perspectiva no curto prazo.
*O método VET tem por objetivo qualificar rapidamente o profissional para o mercado de trabalho, valorizando a formação prática. Entende-se como ensino profissionalizante.
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